1. Não sei, confesso, se o conjunto de cidadãos indignados com o uso abusivo dos meios e interceção telefónica se inquieta apenas com aquelas que são feitas nos processos de acordo com os pedidos das autoridades judiciárias (MP) e as autorizações das autoridades judiciais (Juízes).
Quero com isto significar que, na verdade, não entendi ainda bem qual a verdadeira motivação e o alcance real daquelas preocupações, e elas podem ser várias e todas relevantes.
Será, sobretudo, o uso desproporcional ou irregular de tal procedimento no processo, ou, antes, o seu uso ilegal e por entidades não autorizadas?
Será simplesmente a questão do uso, ou, mais concretamente, o da divulgação ilegal do seu conteúdo, ainda antes do momento em que finda a fase confidencial do processo?
Será, enfim, tudo isso?
Com efeito, a inquietação com o denunciado uso abusivo de tais meios processuais de obtenção de prova – qualquer que seja a dimensão que dele privilegiemos – deve, sem dúvida, merecer uma atenção e um cuidado especial da sociedade e do legislador.
Só assim será possível corrigir o que for necessário, para compatibilizar a maior eficácia das investigações criminais com o maior respeito pelos direitos fundamentais e a privacidade dos cidadãos.
2. Entre nós, tais medidas são, no essencial, reguladas, no plano legal, pelos artigos 187 e 188 do Código de Processo Penal, artigo 6.º da Lei 5/2002 e artigos 17.º e 18.º da Lei 109/2009.
Nestes normativos se consagra um exigente regime judicial de apreciação da sua necessidade e um rigoroso, apertado e constante controlo judicial da renovação e do uso das interceções: não parece ser, pois, aí, que reside o problema.
O que, aparentemente, mais parece ter preocupado o já referenciado conjunto de personalidades – muitas delas tendo já sido alvo de tais medidas – é, creio, o que acreditam ser, afinal, um uso premeditado de tais meios para fins, outros, que não os das investigações criminais.
Refira-se, em todo o caso, que, mesmo a ser assim, nos situamos, sempre e ainda, no âmbito da autorização e concretização de escutas ordenadas no processo por um juiz.
Especialmente – como me parece, pelas declarações feitas aos media sobre a matéria – as que o juiz autoriza, no quadro de processos dirigidos à investigação de crimes de natureza económica e financeira.
Crimes, cujos suspeitos se situam, normalmente, entre os dirigentes empresariais e os políticos que, enquanto governantes, com aqueles negoceiam no âmbito da contratação pública.
Isto, em função de decisões políticas que, se mal-entendidas nos seus fundamentos e propósitos, podem, também, ser lidas à luz das tipificações necessariamente mais imprecisas de alguns dos crimes de natureza económica e financeira.
É verdade que, em rigor, tal tipo de preocupações – e as especulativas cabalas políticas com elas relacionadas – raramente se fundam em factos que, objetivamente, as justifiquem.
O que, ainda assim, as pode alimentar são, em alguns casos, as iniludíveis coincidências das revelações mediáticas de conteúdos de tais documentos processuais com alguns delicados ciclos da vida política nacional.
É, portanto, aí, e não especialmente no uso apropriado das interceções, que se situam, por norma, as dúvidas sobre a necessidade e as finalidades da opção por tais instrumentos de obtenção de prova.
Nesta matéria, convém, ainda uma vez, explicar que, embora a iniciativa lhe pertença, o grau de concretização da proposta do MP está decididamente condicionado pela apreciação que da sua necessidade, proporcionalidade, duração e eventual renovação o juiz do processo dela fizer.
A haver cabala seriam então necessários, como no tango, pelo menos dois bailarinos para dançar a mesma música – um procurador e um juiz, o que, convenhamos, parece pouco provável.
3. O simples facto de tais preocupações agitarem, ainda assim, toda uma plêiade de dirigentes económicos e políticos do nosso país – os que, num plano ou noutro de atividade, afinal, nos governam e traçam o nosso destino – terá, inevitavelmente, de ser tomada em consideração pelos órgãos de governo das magistraturas.
Tal inquietação deveria, por isso, levar os elementos escolhidos pelo Governo e pela Assembleia da República (AR) e que integram o Conselho Superior do Ministério Público e, bem assim, os elementos designados pelo Presidente da República e os escolhidos pela AR para integram o Conselho Superior da Magistratura (órgão de governo dos Juízes) a proporem uma medida inovadora.
Refiro-me à realização de uma “auditoria temática” conjunta sobre a razoabilidade, os procedimentos, a oportunidade e as opções tomadas pelos magistrados a este propósito.
Só membros dos ditos Conselhos, dado o seu estatuto, poderiam superintender, na verdade, uma tal iniciativa, uma vez que a informação necessária se situa em processos, muitos deles ainda em curso.
A única dúvida que, neste aspeto, me resta é a de saber se uma tal iniciativa se deve dirigir apenas às interceções que têm como alvo tal tipo de suspeitos – gestores e políticos – ou se deveria, além deles, incidir, também, sobre as interceções que se fazem relativamente aos suspeitos dos crimes de terrorismo, tráfico de seres humanos, de droga e criminalidade informática.
Como as regras são, na quase totalidade, as mesmas, importaria saber como são aplicadas nos diferentes casos, e se a sua fundamentação, frequência e duração variam em função da qualidade dos crimes e dos seus agentes.
4. Conhecendo, mesmo que apenas perfunctoriamente, os modelos de interceção de alguns países, parece-me natural, e mesmo necessário, que o legislador português possa beneficiar, igualmente, de um estudo de direito comparado sobre este tema.
Isto, de modo a que se possam confrontar, depois, as conclusões da “auditoria temática” com as garantias e os modelos legais existentes no nosso sistema e nos dos outros países da Europa e do mundo.
Seria, por exemplo, interessante comparar as garantias do modelo português com as dos modelos em que a investigação criminal é atribuída às polícias sem intervenção de autoridades judiciárias, como sucede no modelo inglês.
Neste, as escutas são determinadas, realizadas e controladas apenas pela polícia de investigação.
Esta não necessita, para as realizar, de nenhuma autorização, intervenção e escrutínio de uma autoridade judiciária ou judicial.
Por isso, tais interceções podem durar o que durarem, sem que, além do controlo feito no seio da polícia, mais nenhuma autoridade possa intervir.
É certo que, ao contrário do que sucede entre nós, tais interceções apenas se dirigem a facilitar a obtenção, pela polícia, de elementos de prova e não podem constituir elas próprias – as suas transcrições – um elemento de prova.
Tal facto em nada evita, porém, a devassa incontrolada da vida privada dos alvos das escutas e o possível – mas aí inimaginável – uso indevido do seu conteúdo.
Haverá notícias de isso ter ocorrido nesse país?
5. A preocupação manifestada pelo já referido conjunto de personalidades revela-se, naturalmente, ainda mais pertinente quando, em paralelo, a imprensa divulgou (Público, 4 de julho) que, no chamado caso das gémeas, uma equipa de jornalismo de uma televisão portuguesa acedeu a informação relevante através do uso de câmaras escondidas.
João Miguel Tavares denuncia, em artigo editado em tal jornal, a existência de uma escuta e gravação com câmara escondida, realizada por jornalistas de uma cadeia de televisão nacional, de uma conversa em off tida pela mãe das gémeas.
Tal notícia, verdadeira ou falsa, não mereceu, porém – e estranhamente, diga-se – qualquer sobressalto de algum dos jornalistas mais críticos dos alegados abusos perpetrados pelas autoridades judiciais e judiciárias.
Tão pouco, alguma das personalidades mais ativas na objeção aos poderes e comportamentos de juízes e procuradores nesta matéria se referiu a esse facto.
E, contudo, o caso é grave em si mesmo e pelo precedente que cria.
Atente-se que o mesmo pode acontecer, por exemplo, à porta de um tribunal, relativamente a qualquer conversa que um arguido tenha com o seu advogado sobre o processo de que é alvo.
6. Não irei, aqui, discorrer sobre se aquelas escutas e correlativas gravações jornalísticas constituem, ou não, um crime, de acordo com que o que a nossa lei penal e a lei brasileira dispõem sobre o caso: isso é matéria da competência das autoridades judiciárias e judiciais, mormente do MP brasileiro e do português.
Não irei, também, discutir a deontologia dos jornalistas que assim procederam: isso deve resultar da iniciativa dessa classe.
Não posso, porém, deixar de constatar o que, de revelador, existe neste, até agora, estranho silêncio sobre tal notícia.
Afinal, as coincidências – e as cabalas que as justificam e são por elas geradas – acontecem em todos os campos.
Vou, pois, rematar este texto com a citação de um conhecido pensamento de uma personalidade que, a respeito de liberdades e garantias cívicas, não era conhecida, propriamente, pela sua inquietação e coerência: “em política, o que parece é!”.