Sparwasser e a menina do Coppertone


Nos jogos de rua que escolhia ser sempre o Jairzinho, acho que era por ninguém se atrever a querer ser o Pelé nos jogos de rua que os nossos jogos de rua estavam cheios de Rivelinos e Tostões e Clodoaldos


HAMBURGO – O comboio deslizava paralelo ao mar; um azul profundo entrava-me pelos olhos em forma de ondas. Lembro-me do que valia nesse Verão um cromo do Jairzinho, acho que era por não me atrever a querer ser o Pelé nos jogos de rua que escolhia ser sempre o Jairzinho, acho que era por ninguém se atrever a querer ser o Pelé nos jogos de rua que os nossos jogos de rua estavam cheios de Rivelinos e Tostões e Clodoaldos

(Jairzinho só havia um! Era eu!)

e nem um Pelé para amostra.

Mas nesse Verão o Pelé não entrava nos cromos, por isso não contava.

O Jairzinho entrava e era difícil como só me lembro de ter sido mais tarde o Nicolau da Académica e, antes dele, o Caló do União de Tomar.

A menina do anúncio do Coppertone também não entrava nos jogos de rua e eu também gostava muito da menina do anúncio da Coppertone: o cãozinho preto puxando o fato de banho, um bocadinho do rabo a ver-se-lhe branco na pele torrada, o seu ar espantado, as sardas nas bochechas. Nesse tempo eu era muito sensível a sardas nas bochechas.

Disseram-me mais tarde, muito mais tarde, ou li num lado qualquer, que a menina da Coppertone era a Jodie Foster. Não sei se é verdade ou não. Para mim há-de ser sempre a menina da Coppertone e, ao fundo, como num cenário de cinema antigo, passa a senhora dos bolos com uma caixa vermelha na cabeça, fazemos um intervalo no jogo das caricas correndo como automóveis nas pistas desenhadas na areia à força de piparotes, o cheiro doce das bolas de Berlim e das almofadas e dos jesuítas faz-me fome para depois do banho, o mar azul pelo corpo dentro na baía de Cascais, a minha mãe besuntando-me as costas de creme sem que eu conseguisse fugir a tempo.

O creme devia ser Coppertone, era como se a minha mãe me besuntasse com um bocado peganhento da Jodie Foster, as coisas que a gente fazia por um rim de chocolate quentinho, por um livro do Sandokan, o Tigre da Malásia, da Romano Torres a oito escudos, por um pacote de cromos do Mundial de 74, saía o Sparwasser da Alemanha Oriental, saía o Bonev da Bulgária, o Grabowski da Alemanha Ocidental, o Rep da Holanda, mas nada do Jairzinho que tinha deixado crescer o cabelo em forma de bola à volta da cabeça e já não era nada como o Jairzinho do Mundial de 70, já não era nada como o verdadeiro Jairzinho. A gente sabia de cor uma canção que ia assim: «Do meio do gramado/Vem a bola p’rá Tostão/Tostão p’rá Rivelino/Está formada a contorção/Rivelino p’rá Pelé/Olha aí olhó negão/Olélé, olálá, ‘tão botando p’rá quebrá’» – embora não soubéssemos nem de cor nem de maneira alguma o que era o diabo da contorção, e eu preocupava-se com a possibilidade, na altura bem menos académica do que agora se possa pensar, de um dia a menina da Coppertone se chegar ao pé de mim e me perguntar com o descaramento próprio de quem tem sardas nas bochechas:

–        Ouve lá, o que é a contorção?,

e eu atrapalhado, a fastar o cãozinho preto antes que ele me puxasse também os calções e me deixasse um bocadinho do rabo à mostra para que a malta da corrida das caricas gozasse à brava, incapaz de lhe dar uma resposta com sentido.

A minha avó e as minhas tias tomavam chá na esplanada do Hotel Albatroz, um barco passava ao longe absolutamente decidido a contornar o Bugio, o sol batia-me na cabeça e derretia o gelado de morango e pêssego da Santini, o Sandokan desembainhava a cimitarra numa das florestas do Bornéu infestada de piratas e dacoitas e panteras, não havia ninguém à vista com ar de que estivesse disposto a trocar o Rivera da Itália

(cheguei a ter sete Riveras!)

pelo Peter Lorimer da Escócia, ou o Lato da Polónia

(cheguei a ter nove Latos!)

pelo raio do cabeça de bola do Jairzinho que andava há um ror de dias a fazer-me negaças com o seu rectângulo em branco na caderneta, não havia mesmo ninguém à vista às duas horas da tarde na praia dos pescadores, talvez um casal de ingleses velhinhos atravessando a rua lá para os lados da lota, talvez uma menina caminhando devagar pela areia.

O Sparwasser marcou o golo com que a Alemanha Oriental venceu a Alemanha Ocidental e o hino da Alemanha Oriental era tão lindo que eu adorava que eles ganhassem muitas medalhas nos Jogos Olímpicos.

Entretanto ficava com medo que ela viesse na minha direcção, ficava com medo que por debaixo do chapéu branco estivessem as bochechas sardentas da Jodie Foster

(nesse tempo eu sabia lá quem era a Jodie Foster; nesse tempo havia lá alguém que soubesse quem era a Jodie Foster…),

ficava com medo que ela chegasse ao pé de mim com o cãozinho preto a saltitar-lhe nos calcanhares e me fizesse aquela pergunta terrível e embaraçosa:

–        Ouve lá, o que é a contorção?

Imaginava-me corado, mudo, arregalando os olhos para ela sem saber o que responder-lhe, perdido no travesso encantamento das suas sardas, perdido no meu embaraço pateta, perdido no azul inquieto em forma de ondas, os olhos azuis da minha avó e das minhas tias espetados nas minhas costas, afiados como a cimitarra do Sandokan, o Tigre da Malásia, e eu incapaz de falar o que quer que fosse, incapaz de deixar de esbugalhar os olhos, incapaz de impedir que a boca se me abrisse de espanto, incapaz de soltar a minha vontade guardada lá no fundo de lhe dizer:

– Gosto de ti!

Sparwasser e a menina do Coppertone


Nos jogos de rua que escolhia ser sempre o Jairzinho, acho que era por ninguém se atrever a querer ser o Pelé nos jogos de rua que os nossos jogos de rua estavam cheios de Rivelinos e Tostões e Clodoaldos


HAMBURGO – O comboio deslizava paralelo ao mar; um azul profundo entrava-me pelos olhos em forma de ondas. Lembro-me do que valia nesse Verão um cromo do Jairzinho, acho que era por não me atrever a querer ser o Pelé nos jogos de rua que escolhia ser sempre o Jairzinho, acho que era por ninguém se atrever a querer ser o Pelé nos jogos de rua que os nossos jogos de rua estavam cheios de Rivelinos e Tostões e Clodoaldos

(Jairzinho só havia um! Era eu!)

e nem um Pelé para amostra.

Mas nesse Verão o Pelé não entrava nos cromos, por isso não contava.

O Jairzinho entrava e era difícil como só me lembro de ter sido mais tarde o Nicolau da Académica e, antes dele, o Caló do União de Tomar.

A menina do anúncio do Coppertone também não entrava nos jogos de rua e eu também gostava muito da menina do anúncio da Coppertone: o cãozinho preto puxando o fato de banho, um bocadinho do rabo a ver-se-lhe branco na pele torrada, o seu ar espantado, as sardas nas bochechas. Nesse tempo eu era muito sensível a sardas nas bochechas.

Disseram-me mais tarde, muito mais tarde, ou li num lado qualquer, que a menina da Coppertone era a Jodie Foster. Não sei se é verdade ou não. Para mim há-de ser sempre a menina da Coppertone e, ao fundo, como num cenário de cinema antigo, passa a senhora dos bolos com uma caixa vermelha na cabeça, fazemos um intervalo no jogo das caricas correndo como automóveis nas pistas desenhadas na areia à força de piparotes, o cheiro doce das bolas de Berlim e das almofadas e dos jesuítas faz-me fome para depois do banho, o mar azul pelo corpo dentro na baía de Cascais, a minha mãe besuntando-me as costas de creme sem que eu conseguisse fugir a tempo.

O creme devia ser Coppertone, era como se a minha mãe me besuntasse com um bocado peganhento da Jodie Foster, as coisas que a gente fazia por um rim de chocolate quentinho, por um livro do Sandokan, o Tigre da Malásia, da Romano Torres a oito escudos, por um pacote de cromos do Mundial de 74, saía o Sparwasser da Alemanha Oriental, saía o Bonev da Bulgária, o Grabowski da Alemanha Ocidental, o Rep da Holanda, mas nada do Jairzinho que tinha deixado crescer o cabelo em forma de bola à volta da cabeça e já não era nada como o Jairzinho do Mundial de 70, já não era nada como o verdadeiro Jairzinho. A gente sabia de cor uma canção que ia assim: «Do meio do gramado/Vem a bola p’rá Tostão/Tostão p’rá Rivelino/Está formada a contorção/Rivelino p’rá Pelé/Olha aí olhó negão/Olélé, olálá, ‘tão botando p’rá quebrá’» – embora não soubéssemos nem de cor nem de maneira alguma o que era o diabo da contorção, e eu preocupava-se com a possibilidade, na altura bem menos académica do que agora se possa pensar, de um dia a menina da Coppertone se chegar ao pé de mim e me perguntar com o descaramento próprio de quem tem sardas nas bochechas:

–        Ouve lá, o que é a contorção?,

e eu atrapalhado, a fastar o cãozinho preto antes que ele me puxasse também os calções e me deixasse um bocadinho do rabo à mostra para que a malta da corrida das caricas gozasse à brava, incapaz de lhe dar uma resposta com sentido.

A minha avó e as minhas tias tomavam chá na esplanada do Hotel Albatroz, um barco passava ao longe absolutamente decidido a contornar o Bugio, o sol batia-me na cabeça e derretia o gelado de morango e pêssego da Santini, o Sandokan desembainhava a cimitarra numa das florestas do Bornéu infestada de piratas e dacoitas e panteras, não havia ninguém à vista com ar de que estivesse disposto a trocar o Rivera da Itália

(cheguei a ter sete Riveras!)

pelo Peter Lorimer da Escócia, ou o Lato da Polónia

(cheguei a ter nove Latos!)

pelo raio do cabeça de bola do Jairzinho que andava há um ror de dias a fazer-me negaças com o seu rectângulo em branco na caderneta, não havia mesmo ninguém à vista às duas horas da tarde na praia dos pescadores, talvez um casal de ingleses velhinhos atravessando a rua lá para os lados da lota, talvez uma menina caminhando devagar pela areia.

O Sparwasser marcou o golo com que a Alemanha Oriental venceu a Alemanha Ocidental e o hino da Alemanha Oriental era tão lindo que eu adorava que eles ganhassem muitas medalhas nos Jogos Olímpicos.

Entretanto ficava com medo que ela viesse na minha direcção, ficava com medo que por debaixo do chapéu branco estivessem as bochechas sardentas da Jodie Foster

(nesse tempo eu sabia lá quem era a Jodie Foster; nesse tempo havia lá alguém que soubesse quem era a Jodie Foster…),

ficava com medo que ela chegasse ao pé de mim com o cãozinho preto a saltitar-lhe nos calcanhares e me fizesse aquela pergunta terrível e embaraçosa:

–        Ouve lá, o que é a contorção?

Imaginava-me corado, mudo, arregalando os olhos para ela sem saber o que responder-lhe, perdido no travesso encantamento das suas sardas, perdido no meu embaraço pateta, perdido no azul inquieto em forma de ondas, os olhos azuis da minha avó e das minhas tias espetados nas minhas costas, afiados como a cimitarra do Sandokan, o Tigre da Malásia, e eu incapaz de falar o que quer que fosse, incapaz de deixar de esbugalhar os olhos, incapaz de impedir que a boca se me abrisse de espanto, incapaz de soltar a minha vontade guardada lá no fundo de lhe dizer:

– Gosto de ti!