Mariana (nome fictício) tem 27 anos e considera que está “viciada” no telemóvel. Principalmente, no Instagram e no TikTok. “Tudo começou como uma brincadeira e também por distração, quando era miúda, mas os anos foram passando e, sinceramente, já não consigo passar um segundo sem o telemóvel. Mesmo quando não estou a mexer nele por causa do trabalho, por exemplo, tenho de o ter bem perto de mim para não me sentir ansiosa”, explica a jovem que trabalha numa empresa conhecida e, por isso, prefere preservar a sua identidade.
O “vício”, como lhe chama, já atingiu proporções que considera “graves”. Há cerca de dois anos, o telemóvel que tinha na altura avariou-se e, quando entendeu que o problema não seria solucionado na hora, optou por comprar outro dispositivo em vez de esperar. “Não podia ficar um ou mais dias sem o telemóvel. Seria horrível. Preferi gastar esse dinheiro a sofrer por não ir às redes sociais, por não falar com os meus amigos… A verdade é que me senti mal depois e disse a mim mesma: ‘Mariana, tens um problema’”, confessa.
Mas esta problemática não afeta somente Mariana. Mais de 45% dos portugueses passam mais de três horas diárias nos seus dispositivos móveis para atividades não relacionadas com o trabalho, segundo um estudo da NOVA Information Management School (NOVA IMS), que considera estes dados “preocupantes”. O estudo destaca que um em cada cinco portugueses está em risco de desenvolver dependência do telemóvel, sendo esta proporção ainda mais elevada entre os jovens de 18 a 34 anos – faixa etária onde Mariana está inserida –, onde o risco atinge 38%.
Além disso, mais de 70% dos inquiridos admitem dedicar uma parte significativa do seu tempo a plataformas de entretenimento. Foi observado que as redes sociais e aplicações de entretenimento são especialmente propensos a incentivar a dependência, com a maioria dos inquiridos (mais de 70%) a reconhecer um uso substancial dessas plataformas. Este facto sugere uma forte correlação entre a utilização dessas aplicações e o aumento do risco de dependência dos telemóveis.
Quem passa pelo mesmo que Mariana é Francisco (nome fictício), de 30 anos, que considera que as aplicações de encontros constituem o seu maior problema e culpa-as mesmo por não conseguir ter um relacionamento estável. “Quando era mais novo, ia para o Omegle com os meus amigos e passávamos lá horas a falar com desconhecidos. E foi aí que comecei a conhecer raparigas e a dar-lhes o meu número para que falássemos fora do site”, diz o jovem sobre a plataforma que foi encerrada no final de 2023, ano em que recebeu mais de 70 milhões de visitas. É de referir que a idade mínima para utilizar o Omegle era de 13 anos e, por isso, adolescentes contactavam com adultos e, muitas das vezes, eram vítimas de abuso online ou até mesmo presencialmente.
“Acho que, à custa do Omegle e, no geral, da internet, explorei a minha sexualidade de uma forma inadequada e talvez precoce. Esse tempo passou e, à medida que os telemóveis evoluíram, tornei-me viciado em aplicações como o Tinder. Parece que não consigo estabelecer uma conexão real com alguém._Estou sempre à procura de pessoas novas, de sentimentos novos e é cansativo”, desabafa o jovem. “Não é que haja uma idade certa para fazer algo, mas sinto que com 30 anos devia ter um relacionamento estável e tal não está a acontecer”, sublinha, lamentando que “tantas crianças e tantos adolescentes” tenham acesso às redes sociais de “forma livre e sem o acompanhamento de adultos”.
Infelizmente, Mariana e Francisco não estão sozinhos. Em janeiro deste ano, um estudo divulgado alertou para os comportamentos que precedem a dependência digital, enfatizando que responder a e-mails e mensagens em várias plataformas, além de publicar e reagir a fotos, vídeos e comentários nas redes sociais, podem contribuir para esse cenário preocupante. Conduzido como parte do projeto de pesquisa Scroll, Logo Existo, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia em colaboração com o Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências, contou com a participação de 1.704 residentes em Portugal, maiores de 16 anos, entre setembro de 2022 e outubro de 2023. Os resultados indicam que 63,9% dos participantes manifestaram preocupação com o que acontece na internet e procuram estar online regularmente, enquanto 41,3% demonstram a mesma preocupação em relação às redes sociais.
Os jovens adultos, especialmente entre os 25 e 34 anos, são os mais afetados, mas também foi observado um significativo interesse entre os adultos mais velhos, com 65 anos ou mais. O estudo revelou que 43,5% dos inquiridos usaram a internet como uma forma de escapismo emocional, enquanto aproximadamente 40,1% recorreram às redes sociais para o mesmo fim. Além disso, mais de um quarto dos participantes admitiu sentir irritação e ansiedade quando não conseguem aceder à internet (28,5%), com uma percentagem significativa a ter sentimentos semelhantes em relação às redes sociais (20,4%). A pesquisa também apontou que 20,8% dos entrevistados perderam a noção do tempo enquanto navegavam na internet, e 17,5% nas redes sociais.
A dependência de internet e redes sociais afetou uma pequena parte dos entrevistados, com 1% a relatarem dependência da internet e das redes sociais. O estudo enfatiza que esses comportamentos aditivos podem levar a mudanças de humor, ansiedade, isolamento e outros sintomas preocupantes, independentemente da idade, género, situação de emprego, estado civil, educação ou renda.
E os mais novos?
Atualmente, as crianças são extremamente proficientes no uso de tecnologia desde tenra idade. Mas a disponibilidade generalizada de tecnologia tanto em casa quanto na escola pode ter impactos negativos significativos. Segundo um estudo da Hubside.Store conduzido pela Boutique research e citado pela SapoTek, 95% das crianças portuguesas com dez anos ou mais já possuem o seu próprio telemóvel. Mesmo entre aquelas com menos de dez anos, 34% já têm este dispositivo.
O estudo baseia-se numa pesquisa online realizada com 500 pais e mães que têm filhos entre os sete e dezassete anos. Destaca-se que metade das crianças recebe o primeiro smartphone aos dez anos, coincidindo frequentemente com a entrada no segundo ciclo escolar. Durante o ensino primário, aproximadamente 23% das crianças até aos nove anos já possuem um telemóvel. Alguns pais expressam a intenção de dar um smartphone aos filhos apenas quando estes completam doze anos. Entre as razões para essa decisão, quatro em cada dez pais mencionaram sentir pressão social para que os seus filhos tenham um telemóvel. Durante a época natalícia, há também uma tendência crescente de oferecer telemóveis como presentes.
Apesar de darem acesso à tecnologia desde cedo, os pais demonstram preocupações significativas. Por isso, quatro em cada cinco pais impõem limites rigorosos ao uso dos telemóveis pelos filhos e 34% proíbem o seu uso durante a noite como medida de controlo parental. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda limites claros para o uso de dispositivos móveis por crianças, aconselhando a evitar a exposição a ecrãs portáteis antes de um ano e meio de idade. Porém, continuam a acontecer verdadeiras tragédias. A título de exemplo, os desafios online de cariz suicida continuam a fazer vítimas. Em 2022, um menino de 8 anos morreu depois de ter engolido ímanes para cumprir o ‘Magnet Challenge’ e o relatório da autópsia foi divulgado há pouco tempo.
Carlos Fernandes da Silva, diretor do Departamento de Educação e Psicologia da Universidade de Aveiro, explica que “a curiosidade natural das crianças e adolescentes, juntamente com o desejo de identificação com grupos que representem uma alternativa à sua história pessoal e familiar (grupos de referência) e a falta de orientação dos pais sobre pensamento crítico no uso das redes sociais são fatores que explicam a adesão a desafios perigosos”.
Destaca, em declarações ao i, que “o fascínio pelo desconhecido pode superar o medo, pois a libertação de adrenalina ao enfrentar desafios pode ser vista como excitante, mesmo que envolva riscos e ameaças”. O psicólogo clínico, doutorado em Psicologia Clínica pela Universidade de Coimbra e especializado em Neurociências pela Universidade de Oxford, sugere que, para algumas crianças e jovens, participar nestes desafios “pode funcionar como um mecanismo de enfrentamento perante situações difíceis, como bullying ou violência doméstica”. No entanto, noutros casos, a participação pode estar relacionada com a procura de aceitação em certos grupos de referência. Carlos Fernandes da Silva adverte que simplesmente “proibir o acesso das crianças às redes sociais pode apenas adiar o inevitável” e estas podem acabar por usar as plataformas de forma clandestina, aumentando os riscos. É crucial que os pais acompanhem de perto e orientem os seus filhos, não de maneira repressiva, mas encorajando uma reflexão crítica sobre o que veem e fazem online.
Para além do ‘Magnet Challenge’, existem outros desafios que assustam os encarregados de educação. Após o Desafio da Baleia Azul, surgiu outro jogo perigoso conhecido como Desafio Momo. Nasceu a partir da escultura ‘Ubume’, criada pelo artista japonês Keisuke Aisawa, que retrata uma figura feminina com olhos arregalados, cabelos longos e um sorriso perturbador. A escultura foi adotada como foto de perfil em contas chamadas Momo em diversas redes sociais, onde indivíduos exploram a sua aparência para assustar e manipular pessoas, geralmente jovens, através de desafios macabros.
O jogo conecta a lenda urbana japonesa da Ubume, um espírito feminino associado à morte durante o parto, com a figura de Momus na mitologia grega. Momus, conhecido como Momo em grego, era personificado como uma figura de sátira e crítica social na Grécia Antiga, transformando-se ao longo dos séculos num anti-herói mordaz e malicioso nas obras literárias renascentistas. Essas contas Momo são utilizadas por pessoas que procuram disseminar medo e controlar comportamentos, destacando-se como um exemplo preocupante de como a arte e a mitologia podem ser distorcidas para propósitos negativos nas plataformas digitais.
Deste modo, Carlos Fernandes da Silva, que já foi galardoado com o Prémio Ibérico de Psicologia, enfatiza a importância de ensinar as crianças e os adolescentes a pensar estrategicamente, utilizando uma abordagem que considera as forças, fraquezas, oportunidades e ameaças (matriz SWOT). Para, desta forma, utilizarem a internet de forma mais cuidadosa e, mais especificamente, não caírem tão facilmente nas mãos dos curadores do desafios suicidas online.