Telemóvel: O aparelho-maravilha


Nunca, como hoje, o direito à privacidade – e, portanto, a nossa liberdade – esteve tão em perigo. O pesadelo orwelliano, descrito em 1984, acabou, afinal, por se realizar na sociedade capitalista e liberal de um modo radical e sem retorno.


1. Num mundo de segredos que, verdadeiramente, não são segredo para ninguém, encarar o telemóvel que seguramos na mão e passar a olhar para ele com desconfiança tem tanto de sensato como de inútil.

Tudo, ou quase, o que se passa na nossa vida de importante está nele registado, constituindo, por isso, tal aparelho-maravilha um auxiliar precioso para a nossa vida quotidiana.

 As possibilidades que ele hoje nos dá, mesmo fora de casa, ou do local de trabalho, de gerirmos quase todas as nossas tarefas diárias poupa-nos tempo e devolve-nos, assim, muita da liberdade que hoje nos permite usufruir do que mais necessitamos: tempo.

Nele podemos, inclusive, ver cinema e coligir as listas de música da nossa preferência, que ouvimos quando, por exemplo, fazemos exercício, corremos ou, simplesmente, relaxamos.

Mas tal aparelho-maravilha constitui, também, um perigo real para a parte da nossa vida que exige privacidade e intimidade.

Não por acaso, o renomado jurista italiano Stefano Rodotà, numa entrevista a Paolo Conti, jornalista do Corriere della Sera, permitiu que dessem ao livro que publicou o título: Privacy e Libertà: os dois conceitos estão, com efeito, intimamente ligados. 

Nunca, como hoje, o direito à privacidade – e, portanto, a nossa liberdade – esteve tão em perigo.

O pesadelo orwelliano, descrito em 1984, acabou, afinal, por se realizar na sociedade capitalista e liberal de um modo radical e sem retorno.

2. As novas tecnologias digitais, que tanto nos facilitam a vida, são também as que potenciam a exposição total dos nossos corpos e almas a todos e, inclusive, a quem menos nos interessa. 

No telemóvel guardamos hoje, por exemplo, os documentos identificadores oficiais indispensáveis à nossa vida de cidadão, por via de plataformas adequadas registamos e verificamos as receitas e exames médicos que realizámos, arquivamos as fotos de família, armazenamos mensagens trocadas com familiares, amigos, inimigos, conhecidos e desconhecidos, localizamos e movimentamos as nossas contas bancárias.

Para o bem e para o mal, toda a nossa vida burocrática e pessoal passa pelo telemóvel.

Daí, a facilidade de sofrermos burlas informáticas por sua via. 

Além de que, a sua perda é preocupante e pode mesmo ser perigosa.

Mais grave, ainda, pode ser o seu furto, pois, dependendo da intenção com que foi realizado, em causa pode estar não apenas o valor económico do objeto em si mesmo, mas muito mais, mesmo muito mais.

Em suma, a introdução no seu conteúdo, por qualquer forma, não autorizada!

Toda a informação nele contida, ou através dele acessível, pode condicionar toda a vida pessoal, familiar, patrimonial e profissional do seu proprietário.

No que respeita a um político ou a um empresário, o desapossamento forçado de tal aparelho comporta riscos enormes.

Em mãos indevidas, o intruso pode aceder a credenciais de acesso à vida financeira, à saúde do proprietário, ou mesmo do sistema de gestão de um uma unidade de saúde, podendo comprometê-lo ou comprometer a saúde de um outro utente!

Em outras mãos, por exemplo, nas mãos de um perito, o telemóvel pode revelar as deslocações realizadas pelo seu dono e os lugares que frequentou, o teor das mensagens pessoais e profissionais que recebeu ou enviou: pode revelar tudo aquilo que o seu proprietário gostaria de evitar que fosse conhecido

3. Tal conhecimento permite, em alguns casos, o exercício de chantagem direta sobre o proprietário ou possuidor do aparelho, como, mais gravemente, pode condicionar o seu comportamento através de ameaças aos entes queridos, que ele, além de dar a conhecer, pode, inclusive, localizar.

Alguns telemóveis têm instaladas aplicações que permitem, ainda, governar certos mecanismos e funcionalidades domésticas, como o sistema de segurança, o aquecimento, as regas, as televisões, o próprio fogão da cozinha ou a simples máquina de fazer sopa.

Essas funcionalidades e o seu mau uso, propositado ou involuntário, podem ocasionar desastres terríveis, ou concretizar mesmo atentados dirigidos aos proprietários dos edifícios onde estão instaladas.

Há, por conseguinte, todo um conjunto de interesses passíveis de ser afetados pela apropriação indevida e maléfica de um aparelho de telemóvel, designadamente por quem souber desbloquear o acesso, entrar nos segredos que guarda e pretender, depois, usá-los com propósitos criminais ou de puro voyeurismo.

E hoje há, como sabemos, peritos – piratas informáticos, por exemplo – para quem a decifração dos códigos e chaves que dão acesso aos distintos programas e informação que estes revelam é, aparentemente, fácil.

4. Pior ainda, é o facto de, mesmo não estando a usar o telemóvel, tais aparelhos permitirem saber muito do que fazemos e, sobretudo, dizemos, em qualquer conversa que, numa sala ou gabinete, tenhamos com amigos ou profissionais com quem temos de nos relacionar.

O telemóvel, mesmo aparentemente desativado, pode funcionar como um microfone e permitir a outros tomar conhecimento do que pensamos e dizemos em privado.

O que vou contar de seguida aconteceu-me, já há tempos, na sede da Eurojust, em Haia.

E isto é tão mais grave quanto esta agência está apetrechada com meios de segurança fiáveis, que se destinam a proteger em permanência os dados pessoais relativos aos processos nela guardados e a impedir o acesso aos computadores e telemóveis de serviço.

Acontece que, como profissionais da Justiça, os membros dos diferentes gabinetes nacionais têm, com frequência, que reunir para analisar e decidir as questões jurídicas que certos casos colocam.

Para o fazerem, têm naturalmente, de se referir, nas discussões orais que travam sobre tais processos, à factualidade que deles consta e, portanto, também, às pessoas – implicados em atividades criminais, magistrados e polícias do seu ou de outros países – a que eles respeitam ou que com eles lidam.

Estávamos, como disse, no meu gabinete, vários magistrados portugueses para discutir um assunto de serviço, quando, no final da reunião, um de nós descobriu que se havia esquecido da chave de casa dentro dela.

Toda esta conversa decorreu oralmente e nenhum de nós, nesse momento, usou ou tinha o seu telemóvel de serviço ou pessoal ligado.

E, todavia, para o espanto de todos, quando cada um regressou ao seu gabinete constatou que havia recebido no seu telemóvel – de serviço e pessoal – diversas mensagens de anúncios de chaves, de fechaduras e de empresas para as instalar.

Tínhamos, portanto, sido escutados, mesmo não tendo usado os telemóveis pessoais e de serviço, sendo estes, já de si, mais protegidos e encriptados.

Mais tarde, falando com os técnicos da agência encarregados da segurança informática e da proteção de dados, fomos informados que o que nos acontecera não era invulgar.

 Por tal razão, em reuniões militares, não bastava desligar os aparelhos ou retirar-lhes as baterias, mas era já exigível que tais aparelhos fossem deixados e guardados fora dos locais das conferências.

A nossa fé na proteção de dados e nos inúmeros procedimentos e atuações prescritas para os proteger – de que, de resto, o Regulamento da agência é exaustivo – ficou, pois, em crise.

5. Quem, hoje, discute, com justa indignação – mas alguma ingenuidade – a quebra da privacidade e a fuga de informação pessoal e profissional deveria, pois, estar mais atento às condicionantes técnicas que envolvem tão grave problema.

 Os normativos europeus e nacionais sobre a proteção de dados, mesmo os mais exigentes, valem menos do que a habilidade de um bom hacker, e todos nós sabemos isso através da estória recente da atuação de alguns deles.

6. Suponhamos que um juiz, um procurador, ou um agente policial enviam do seu computador uma peça processual para outro colega com credenciais de acesso a tal documento, para poder discutir com ele a correção da mesma.

Nada lhe garante, pois, em face do que antes contámos, que alguém que a ela não deveria ter acesso, possa de tal documento tomar conhecimento.

7. As normas e procedimentos que a UE e os países que a compõem estabelecem sobre esta matéria, designadamente as relacionadas com a proteção de dados pessoais, mantêm uma importância real, mas, reconheçamos, correm sempre atrás do prejuízo.

Em muitos casos, dificultam mais o trabalho das autoridades judiciais e policiais que investigam a mais grave criminalidade do que, realmente, conseguem impedir o acesso, ilegal, dos hackers que trabalham para as redes criminosas ou para as agências de inteligência estrangeiras.

A verdade é que, desde que o episódio das chaves e fechaduras aconteceu e me assustou verdadeiramente, comecei a guardar maior distância do meu telemóvel maravilha.

* Procurador-geral adjunto jubilado, antigo membro nacional da Eurojust e ex-líder do Sindicato dos Magistrados do MP

Telemóvel: O aparelho-maravilha


Nunca, como hoje, o direito à privacidade – e, portanto, a nossa liberdade – esteve tão em perigo. O pesadelo orwelliano, descrito em 1984, acabou, afinal, por se realizar na sociedade capitalista e liberal de um modo radical e sem retorno.


1. Num mundo de segredos que, verdadeiramente, não são segredo para ninguém, encarar o telemóvel que seguramos na mão e passar a olhar para ele com desconfiança tem tanto de sensato como de inútil.

Tudo, ou quase, o que se passa na nossa vida de importante está nele registado, constituindo, por isso, tal aparelho-maravilha um auxiliar precioso para a nossa vida quotidiana.

 As possibilidades que ele hoje nos dá, mesmo fora de casa, ou do local de trabalho, de gerirmos quase todas as nossas tarefas diárias poupa-nos tempo e devolve-nos, assim, muita da liberdade que hoje nos permite usufruir do que mais necessitamos: tempo.

Nele podemos, inclusive, ver cinema e coligir as listas de música da nossa preferência, que ouvimos quando, por exemplo, fazemos exercício, corremos ou, simplesmente, relaxamos.

Mas tal aparelho-maravilha constitui, também, um perigo real para a parte da nossa vida que exige privacidade e intimidade.

Não por acaso, o renomado jurista italiano Stefano Rodotà, numa entrevista a Paolo Conti, jornalista do Corriere della Sera, permitiu que dessem ao livro que publicou o título: Privacy e Libertà: os dois conceitos estão, com efeito, intimamente ligados. 

Nunca, como hoje, o direito à privacidade – e, portanto, a nossa liberdade – esteve tão em perigo.

O pesadelo orwelliano, descrito em 1984, acabou, afinal, por se realizar na sociedade capitalista e liberal de um modo radical e sem retorno.

2. As novas tecnologias digitais, que tanto nos facilitam a vida, são também as que potenciam a exposição total dos nossos corpos e almas a todos e, inclusive, a quem menos nos interessa. 

No telemóvel guardamos hoje, por exemplo, os documentos identificadores oficiais indispensáveis à nossa vida de cidadão, por via de plataformas adequadas registamos e verificamos as receitas e exames médicos que realizámos, arquivamos as fotos de família, armazenamos mensagens trocadas com familiares, amigos, inimigos, conhecidos e desconhecidos, localizamos e movimentamos as nossas contas bancárias.

Para o bem e para o mal, toda a nossa vida burocrática e pessoal passa pelo telemóvel.

Daí, a facilidade de sofrermos burlas informáticas por sua via. 

Além de que, a sua perda é preocupante e pode mesmo ser perigosa.

Mais grave, ainda, pode ser o seu furto, pois, dependendo da intenção com que foi realizado, em causa pode estar não apenas o valor económico do objeto em si mesmo, mas muito mais, mesmo muito mais.

Em suma, a introdução no seu conteúdo, por qualquer forma, não autorizada!

Toda a informação nele contida, ou através dele acessível, pode condicionar toda a vida pessoal, familiar, patrimonial e profissional do seu proprietário.

No que respeita a um político ou a um empresário, o desapossamento forçado de tal aparelho comporta riscos enormes.

Em mãos indevidas, o intruso pode aceder a credenciais de acesso à vida financeira, à saúde do proprietário, ou mesmo do sistema de gestão de um uma unidade de saúde, podendo comprometê-lo ou comprometer a saúde de um outro utente!

Em outras mãos, por exemplo, nas mãos de um perito, o telemóvel pode revelar as deslocações realizadas pelo seu dono e os lugares que frequentou, o teor das mensagens pessoais e profissionais que recebeu ou enviou: pode revelar tudo aquilo que o seu proprietário gostaria de evitar que fosse conhecido

3. Tal conhecimento permite, em alguns casos, o exercício de chantagem direta sobre o proprietário ou possuidor do aparelho, como, mais gravemente, pode condicionar o seu comportamento através de ameaças aos entes queridos, que ele, além de dar a conhecer, pode, inclusive, localizar.

Alguns telemóveis têm instaladas aplicações que permitem, ainda, governar certos mecanismos e funcionalidades domésticas, como o sistema de segurança, o aquecimento, as regas, as televisões, o próprio fogão da cozinha ou a simples máquina de fazer sopa.

Essas funcionalidades e o seu mau uso, propositado ou involuntário, podem ocasionar desastres terríveis, ou concretizar mesmo atentados dirigidos aos proprietários dos edifícios onde estão instaladas.

Há, por conseguinte, todo um conjunto de interesses passíveis de ser afetados pela apropriação indevida e maléfica de um aparelho de telemóvel, designadamente por quem souber desbloquear o acesso, entrar nos segredos que guarda e pretender, depois, usá-los com propósitos criminais ou de puro voyeurismo.

E hoje há, como sabemos, peritos – piratas informáticos, por exemplo – para quem a decifração dos códigos e chaves que dão acesso aos distintos programas e informação que estes revelam é, aparentemente, fácil.

4. Pior ainda, é o facto de, mesmo não estando a usar o telemóvel, tais aparelhos permitirem saber muito do que fazemos e, sobretudo, dizemos, em qualquer conversa que, numa sala ou gabinete, tenhamos com amigos ou profissionais com quem temos de nos relacionar.

O telemóvel, mesmo aparentemente desativado, pode funcionar como um microfone e permitir a outros tomar conhecimento do que pensamos e dizemos em privado.

O que vou contar de seguida aconteceu-me, já há tempos, na sede da Eurojust, em Haia.

E isto é tão mais grave quanto esta agência está apetrechada com meios de segurança fiáveis, que se destinam a proteger em permanência os dados pessoais relativos aos processos nela guardados e a impedir o acesso aos computadores e telemóveis de serviço.

Acontece que, como profissionais da Justiça, os membros dos diferentes gabinetes nacionais têm, com frequência, que reunir para analisar e decidir as questões jurídicas que certos casos colocam.

Para o fazerem, têm naturalmente, de se referir, nas discussões orais que travam sobre tais processos, à factualidade que deles consta e, portanto, também, às pessoas – implicados em atividades criminais, magistrados e polícias do seu ou de outros países – a que eles respeitam ou que com eles lidam.

Estávamos, como disse, no meu gabinete, vários magistrados portugueses para discutir um assunto de serviço, quando, no final da reunião, um de nós descobriu que se havia esquecido da chave de casa dentro dela.

Toda esta conversa decorreu oralmente e nenhum de nós, nesse momento, usou ou tinha o seu telemóvel de serviço ou pessoal ligado.

E, todavia, para o espanto de todos, quando cada um regressou ao seu gabinete constatou que havia recebido no seu telemóvel – de serviço e pessoal – diversas mensagens de anúncios de chaves, de fechaduras e de empresas para as instalar.

Tínhamos, portanto, sido escutados, mesmo não tendo usado os telemóveis pessoais e de serviço, sendo estes, já de si, mais protegidos e encriptados.

Mais tarde, falando com os técnicos da agência encarregados da segurança informática e da proteção de dados, fomos informados que o que nos acontecera não era invulgar.

 Por tal razão, em reuniões militares, não bastava desligar os aparelhos ou retirar-lhes as baterias, mas era já exigível que tais aparelhos fossem deixados e guardados fora dos locais das conferências.

A nossa fé na proteção de dados e nos inúmeros procedimentos e atuações prescritas para os proteger – de que, de resto, o Regulamento da agência é exaustivo – ficou, pois, em crise.

5. Quem, hoje, discute, com justa indignação – mas alguma ingenuidade – a quebra da privacidade e a fuga de informação pessoal e profissional deveria, pois, estar mais atento às condicionantes técnicas que envolvem tão grave problema.

 Os normativos europeus e nacionais sobre a proteção de dados, mesmo os mais exigentes, valem menos do que a habilidade de um bom hacker, e todos nós sabemos isso através da estória recente da atuação de alguns deles.

6. Suponhamos que um juiz, um procurador, ou um agente policial enviam do seu computador uma peça processual para outro colega com credenciais de acesso a tal documento, para poder discutir com ele a correção da mesma.

Nada lhe garante, pois, em face do que antes contámos, que alguém que a ela não deveria ter acesso, possa de tal documento tomar conhecimento.

7. As normas e procedimentos que a UE e os países que a compõem estabelecem sobre esta matéria, designadamente as relacionadas com a proteção de dados pessoais, mantêm uma importância real, mas, reconheçamos, correm sempre atrás do prejuízo.

Em muitos casos, dificultam mais o trabalho das autoridades judiciais e policiais que investigam a mais grave criminalidade do que, realmente, conseguem impedir o acesso, ilegal, dos hackers que trabalham para as redes criminosas ou para as agências de inteligência estrangeiras.

A verdade é que, desde que o episódio das chaves e fechaduras aconteceu e me assustou verdadeiramente, comecei a guardar maior distância do meu telemóvel maravilha.

* Procurador-geral adjunto jubilado, antigo membro nacional da Eurojust e ex-líder do Sindicato dos Magistrados do MP