«Trainspotting»


Solidão, minha velha companheira de uma vida inteira. Vou no comboio do dia a dia sem saber ao certo o meu destino depois de a morte ter quebrado as barreiras da minha defesa e me ter enchido os dias de gente que já se foi no comboio do nunca mais.


FRANKFURT – Vou no comboio como Torga, mecanizado e duro como sou neste dia. Vou no comboio estrénuo de Álvaro de Campos, escrevendo rangendo os dentes. Vou no comboio de Balise Cendrars com a Petite Jeanne de France. Escrevo rangendo os dentes, rodas, engrenagens, um r-r-r-r-r eterno. Vou obcecado como  Irvine Welsh em Trainspoting, obcecado por qualquer coisa menor que não sei explicar o que é, mesmo que Welsh não se preocupasse com esse pormenor meio bacoco de fixar horários e linhas e quisesse falar de bebedeiras e de heroína. Por falar em bebedeiras, vou com os olhos fixos no céu em bebedeiras de azul como Gedeão. Viajo com a minha escrita e com as minhas leituras e com as minhas memórias de poemas inteiros que o meu pai, com a sua voz suave de carinhos, me ensinou a dizer de cor. A Alemanha do lado de fora da janela. E do lado de dentro deste comboio alemão já não é do Führer como o comboio de Brecht. Vou com saudades do tempo em que viajava ao teu encontro, de Lisboa a Aveiro, passeávamos de mão dada pela Avenida Lourenço Peixinho, íamos de camioneta para a Barra, éramos felizes porque nos tínhamos um ao outro e a nossa escandalosa juventude misturada e ninguém morria nesse tempo em que o amor ainda era inocente como o despontar do lírio entre os abrolhos de Gonçalves Crespo. Vou agora e sou sozinho. Solidão, minha velha companheira de uma vida inteira. Vou no comboio do dia a dia sem saber ao certo o meu destino depois de a morte ter quebrado as barreiras da minha defesa e me ter enchido os dias de gente que já se foi no comboio do nunca mais. Sei, como Fernando Pessoa dizia dos barcos, que há comboios para todos os apeadeiros menos para a vida não doer.

«Trainspotting»


Solidão, minha velha companheira de uma vida inteira. Vou no comboio do dia a dia sem saber ao certo o meu destino depois de a morte ter quebrado as barreiras da minha defesa e me ter enchido os dias de gente que já se foi no comboio do nunca mais.


FRANKFURT – Vou no comboio como Torga, mecanizado e duro como sou neste dia. Vou no comboio estrénuo de Álvaro de Campos, escrevendo rangendo os dentes. Vou no comboio de Balise Cendrars com a Petite Jeanne de France. Escrevo rangendo os dentes, rodas, engrenagens, um r-r-r-r-r eterno. Vou obcecado como  Irvine Welsh em Trainspoting, obcecado por qualquer coisa menor que não sei explicar o que é, mesmo que Welsh não se preocupasse com esse pormenor meio bacoco de fixar horários e linhas e quisesse falar de bebedeiras e de heroína. Por falar em bebedeiras, vou com os olhos fixos no céu em bebedeiras de azul como Gedeão. Viajo com a minha escrita e com as minhas leituras e com as minhas memórias de poemas inteiros que o meu pai, com a sua voz suave de carinhos, me ensinou a dizer de cor. A Alemanha do lado de fora da janela. E do lado de dentro deste comboio alemão já não é do Führer como o comboio de Brecht. Vou com saudades do tempo em que viajava ao teu encontro, de Lisboa a Aveiro, passeávamos de mão dada pela Avenida Lourenço Peixinho, íamos de camioneta para a Barra, éramos felizes porque nos tínhamos um ao outro e a nossa escandalosa juventude misturada e ninguém morria nesse tempo em que o amor ainda era inocente como o despontar do lírio entre os abrolhos de Gonçalves Crespo. Vou agora e sou sozinho. Solidão, minha velha companheira de uma vida inteira. Vou no comboio do dia a dia sem saber ao certo o meu destino depois de a morte ter quebrado as barreiras da minha defesa e me ter enchido os dias de gente que já se foi no comboio do nunca mais. Sei, como Fernando Pessoa dizia dos barcos, que há comboios para todos os apeadeiros menos para a vida não doer.