1. O mundo em que uma boa parte de nós se movimenta hoje, é muito diferente daquele que, enquanto adolescentes ou jovens adultos, desejámos e ajudámos a construir.
Aparentemente, a mudança mais significativa tem a ver com a maneira como os jovens de hoje olham para o mundo: o mundo deles e o dos outros.
Recordo, quando andaria aí pelos meus dezassete, dezoito anos, a sensação de pertencer a uma geração que, como tal, era oriunda sobretudo de uma camada social privilegiada, fundava, apesar disso, a sua maneira de ser e de estar em sociedade num sentimento profundo de solidariedade com e para quem a ela não pertencia.
Uma solidariedade geracional entre si própria e para si própria, mas também uma solidariedade para com os que a pobreza económica e social arredava do conhecimento e, portanto, da vida como ela já então podia, com dignidade, ser vivida por qualquer um.
Lembro-me, a propósito, de como uma minha irmã, mais nova do que eu – debilitada, embora, por uma doença que, felizmente, conseguiu curar –, depois de, ao fim da tarde, regressar de comboio da Faculdade de Letras em Lisboa, ia todas as noites dar aulas numa sociedade recreativa de Mem-Martins, a operárias e operários de uma fábrica de máquinas de escrever.
Feliz, conseguiu levar muitos alunos a exame para completarem o então quinto ano (hoje nono).
Essa sua ação só foi aliás possível devido à cumplicidade do meu pai – católico praticante e sempre generoso – que se ofereceu e esforçou por a ir buscar de carro ao fim das aulas, pelas onze da noite, para que a distância, o frio e a chuva, que eram muito mais frequentes então, não agravassem o seu estado de saúde.
O meu católico pai e a minha irmã, militando esta na esquerda, concluíram, pois, a nível doméstico, um compromisso histórico que, em Itália, no plano político nacional, Enrico Berlinguer e Aldo Moro desejaram realizar, mas não conseguiram, devido ao mais que suspeito assassinato deste último.
Para muitos de nós, a maneira de estar em sociedade, as escolhas de uma profissão – por exemplo – fundavam-se, então, numa opção que se queria coerente com o espírito de solidariedade ativa que prosseguíamos de diversas formas e motivados por distintas inspirações.
A minha opção e a de tantos outros da minha geração pelo MP, e não pela advocacia, resultou, na verdade, da vontade de cumprir com tal compromisso,
Um compromisso de representação dos mais fracos nos tribunais: os órfãos, os velhos, os trabalhadores, as vítimas de crimes graves, a sociedade que pagava caro a corrupção e o compadrio.
Procurávamos que as ideias que defendíamos e o que fazíamos tivesse efetivo sentido: para nós e para os outros.
Como diziam os então assim chamados “católicos progressistas”, procurávamos todos – mesmo com diferentes visões do mundo e cada um à sua maneira – dar um testemunho de vida.
Encontrar, enfim, uma coerência efetiva entre os valores que intelectualmente abraçáramos e que entendíamos só terem sentido se postos em prática.
Com a consciência de que vivíamos um quotidiano confortável, olhávamos, de olhos bem abertos, para o chocante quotidiano dos mais desfavorecidos, com um misto de vergonha própria e uma vontade efetiva de os arrancar da sua triste sorte.
Procurávamos, enfim, todos – mais ou menos de esquerda, devotos ou não – que as coisas mudassem realmente.
Tal ímpeto podia resultar da religião que, enquanto filhos dos nossos pais, professáramos e cujos valores, mesmo perdida a fé, assimiláramos e queríamos pôr em prática, mesmo que já em nome de uma ideologia política solidária e progressista.
Uma ideologia à qual muitos de nós chegáramos, não raro, a partir de uma crise religiosa e da dissonância a que assistíamos entre os valores socialmente promovidos como bons, e a evidência de uma realidade, que, por tal razão, nos parecia ainda mais injusta; enfim, ante a constatação da reinante hipocrisia social e política.
Diria mesmo que o que víamos, na sociedade portuguesa de então, nos parecia radicalmente contrário aos ensinamentos que nos comunicaram desde crianças e em que genuinamente acreditáramos.
Ensinamentos que só tinham sentido, na precisa medida em que exigiam de nós ações concretas que permitissem superar a dura realidade desse tempo e não apenas contribuir para a amenizar.
Por essa razão, muitos – mesmo muitos – buscaram e produziram uma rutura com a maneira de viver dos pais e a maneira destes de estar na vida.
Pais que, não raramente, não compreendiam tal inquietação nem a revolta dos filhos.
A expressão de tal rutura atingia, por vezes, aspetos dramáticos para ambas partes: filhos e pais.
Em outros casos, mesmo que incompreendida, tal fratura era tolerada, na perspetiva de que o tempo e a idade se encarregariam de corrigir os desmandos provocados por tal busca do absoluto, fosse ele de natureza religiosa, política, artística ou cultural.
Foi, de facto, o que, depois, aconteceu a um grande número dos que, connosco, então militaram pela justiça social.
A incompreensão a que aludimos acentuava-se, porém, mais precisamente, entre pais que, provindo de uma condição social e económica mais modesta, e tendo-se esforçado por subir na vida e por legar aos filhos uma situação social e uma vida melhor, não compreendiam como estes repudiavam, afinal, o futuro que para eles projetaram e que lhes parecia radiante.
Um futuro feliz que, no fundo, não podiam imaginar de outro modo que não o que fosse igual aos dos que os exploravam e contra os quais sempre haviam lutado.
2. Vem estas memórias a propósito de uma curiosa reflexão – mesmo que em tom ligeiro – que Carmo Afonso desenvolveu em conversa breve, um destes dias, num canal de televisão.
Explicava ela que o fenómeno do crescimento da direita conservadora e da extrema direita entre os jovens resultava da assunção – errada mas, para eles, credível – de pertencem já a um mundo diferente.
Um mundo que não se identifica mais com o que foi o dos pais.
Um mundo que tem tanto de aparentemente real, como de verdadeiramente falacioso.
Um mundo que nem a estética neorrealista, existencialista ou qualquer outra expressão político cultual do século XX consegue, hoje, retratar.
Um mundo em que, contudo, só a luta que os pais travaram contra a mais evidente injustiça social, então dominante, permitiu conquistar direitos tão importantes que nem tais jovens – individualistas e liberais – conseguem imaginar o mundo sem eles.
Refiro-me, por exemplo, ao sistema universal de saúde pública hoje existente.
Refiro-me, ainda, a um sistema de ensino universal público – da primária à universidade –, e que permitiu aos filhos dos que por ele lutaram completar, hoje, o ensino superior, finalizando mestrados e doutoramentos, que de imediato os projetam para um status diferente do dos pais.
Um status enganador, embora, que lhes consente apenas, atualmente, a ilusão de uma vida copiada dos que sempre se opuseram, ativa ou passivamente, aos direitos que seus pais tiveram de conquistar.
Uma vida enganadora, na medida em que que só a podem gozar enquanto os pais forem vivos e lhes custeiem as despesas maiores, ou os acomodem em casa, sem outros dispêndios com comida e habitação.
Um mundo, enfim, em que muitos se perdem numa visão consumista, assegurada pelo continuado empenho dos pais e pelo pocket money em que se transformaram os débeis e injustos salários que lhes pagam, enquanto licenciados, mestrados e doutorados.
Salários muitas vezes inferiores aos que os pais auferem como operários especializados e as mães enquanto caixas de supermercado, de limpezas, ou de cozinha de restaurante.
Enver Hoxa e o seu igualitarismo radical triunfaram, tarde, em Portugal.
Um mundo sem segurança de continuidade laboral, que não lhes permite projetar futuro e família, casamentos e filhos.
Um mundo que, todavia, na aparência, igualiza todos, tanto nos bares da moda e nos festivais de música que frequentam, como nas t-shirt, pólos e jeans que vestem.
Um mundo que os convence, assim, já terem superado a condição heroica, mas socialmente menorizada de “trabalhadores”, que os pais exibiam ainda, pois, em alguns casos, podem trabalhar para outros (cuja cara não veem) a partir do quarto da casa paterna.
Um mundo que é constituído por um arquipélago de territórios individuais – o quarto, mundo fechado dos filhos, namoradas e namorados que, longe de juntar, isola socialmente e acirra conflitos inevitáveis.
Sim, é este o mundo de enganadores espelhos, cujas origens os pais se esforçaram, com frequência, por esquecer e encobrir, e de que, não raro, os filhos nem querem ouvir falar, pois se julgam já num nível social e cultural superior; são agora colaboradores ou empresários em nome individual.
É, por ora, aí que, precisamente, pescam os liberalismos, tão cintilantes quanto desapiedados, e onde, não tardará muito, pescarão, ainda mais do que hoje, os radicais da extrema-direita quando o castelo das cartas maravilhosas do neoliberalismo desabar sem salvação.
E tal desastre tem hora marcada: a da morte inevitável dos pais e, com esta, o fim das ajudas económicas que estes – eles, sim, trabalhadores, e não colaboradores – ainda prodigalizam aos filhos para que possam alardear a vida que, em rigor, não podem pagar.
Na verdade, e como diz o ditado popular: não há pior cego do que o que não quer ver.
Talvez resida aí a razão pela qual a ideia da solidariedade ativa na conquista de direitos – não de esmolas, prémios, regalias ou privilégios – e na luta para os tornar efetivos pareça, de momento, não motivar muitos desses jovens.
Todavia, sem um novo sopro de solidariedade ativa e combativa, não haverá tão cedo, entre nós, na nossa sociedade, salários respeitáveis e condignos, autonomia dos filhos maiores no seio das famílias, casa aprazíveis para os jovens casais viverem na cidade que sempre foi deles.
Sem este tipo de solidariedade ativa diária e militante por uma vida digna para todos, crescerá, temo, o campo fértil onde vai medrar a solidariedade negra dos guerreiros, a trágica fraternidade da guerra e da morte, encomendada pelos que delas estão – ou se julgam – longe.
Na verdade, já se ouvem alto e repetidamente, os estridentes hinos militares apelando para a guerra.
3. Retomar, mesmo que em moldes novos, sem sectarismos doutrinais ou religiosos, o trabalho cultural anteriormente desenvolvido pelas e nas sociedades populares, profissionais, recreativas ou de vizinhos pode, contudo, ajudar, desde já, a compensar o isolamento crescente dos jovens trabalhadores no seu artificial meio laboral atual e, mais importante ainda, o isolamento dos jovens da realidade da vida.
Não constituindo uma solução mágica para mudar o mundo de repente, pode ajudar a criar laços de solidariedade social idênticos aos que antes existiam entre os jovens que aspiravam e lutavam, não por um mundo igual ao dos que os exploravam, mas por uma a sociedade diferente, mais justa e igualitária.
Ainda agora, nas festas dos santos populares, pude constatar como, em tais sociedades de bairro, esse espírito de solidariedade alegre continua presente e militante.
Mesmo os sindicatos, as organizações sociais, atualmente ainda as mais dinâmicas, têm agora de procurar modelos de recrutamento e intervenção novos e diferentes: têm de passar a ser, além de uma organização de luta bem dirigida, um espaço privilegiado de cultura, convivialidade e bem-estar.
Modelos de intervenção sindical que reforcem a convivialidade dos seus membros – e mesmo dos que o não são – e os laços de amizade vivida ao vivo, não apenas nas manifestações, mas também no dia-a-dia da alegria que só a ação solidária faz nascer.
Importa, pois, aproveitar integralmente o espaço físico, político e cultural, que eles proporcionam.
A vida só pode e merece ser sentida e ter sentido em sociedade.
Só pode e merece, porém, ser bem vivida se o que fizermos se projetar, quotidianamente, na vida dos outros, de molde a que estes se envolvam, também, com alegria e esperança, na construção de um mundo realmente melhor.
Tinha razão, de facto, Carmo Afonso quando apontou como razão do afastamento dos jovens de hoje da esquerda, o facto de as aspirações destes se reverem mais no sonho que os pais para eles traçaram e que, afinal, era igual ou imitado do modelo de vida daqueles contra quem estes tiveram de lutar quando tinham a idade dos filhos.