O tempo passa a chover


Hoje não caminho para nenhum estádio, não regressarei a casa como um gato encharcado a sacudir os pêlos da infelicidade.


BOCHUM – Que o Tempo passa a correr é uma realidade que quase se transformou num lugar comum. Que o tempo passa a chover é uma realidade que persegue na Alemanha, de Munique a Leipzig, de Gelsenkirchen a Bochum. Gotas grossas batem na janela do meu quarto e um trovão rebenta ao longe. Nunca me fez impressão andar à chuva e nunca usei guarda-chuva porque era tempo perdido e da chuva guardava pouco. Também não caí nunca no exagero de O’Neill que, num dia como este, ao sair de casa, ouviu a voz do pai: «Alexandre, leva o guarda-chuva que está mau tempo». E ele: «Não pai, não levo». E o pai: «Mau. Alexandre, estou a dizer-te para levares o guarda-chuva!» E o filho, teimoso: «Não levo. E não só não levo como nunca mais cá ponho os pés».

A chuva deu de comer a muitos poetas não fosse ela assim melancólica como o tempo e como o Tempo. O brasileiro Olegário Mariano punha chuva em quase todos os seus poemas: «Choveu tanto esta tarde/Que as árvores estão pingando de contentes/As crianças pobres em grande alarde/Molham os pés nas poças reluzentes». Não vejo nem crianças nem nada reluzente na Ferdinandstrasse, onde me instalo. As árvores pingam mas de tristes neste dia em que o Verão se esqueceu de começar. Fernando Pessoa também não se deixou passar por entre os pingos da chuva: «Chove longínqua e indistintamente/Como uma coisa certa que nos minta/Como um grande desejo que nos mente/Chove. Nada em mim sente…» Não sentir não é fácil, penso enquanto reprimo um bocejo e olho o céu escuro. Maço-me. Entedio-me. Leio e escrevo. Hoje não caminho para nenhum estádio, não regressarei a casa como um gato encharcado a sacudir os pêlos da infelicidade. «Chove na rua já de si molhada/Duma vida que é chuva e não parece/Chove grossa e constante/Uma paz que há de ser/Uma gota invisível e distante/Na janela a escorrer», escreveu o Torga. Há sempre água a escorrer na vidraça dos meus olhos. Tragam-me um balde! O meu reino por um balde! Mas agora a Alemanha chora? Coisa tão pouco alemã. Cerrado como o aço, o céu contraria-me a vontade de andar só por andar. Fico olhando a chuva mas não tenho vontade de rimar nem comigo mesmo. Dizem que é a noite mais curta do ano. Mentira! O dia nasceu há muito e continua a ser noite. «O dia de chuva é propício à filosofia, ao amor, à rasgação de papéis», disse a propósito Drummond de Andrade. Boa! Vou rasgar papéis. Vou rasgar todos os papéis que encontrar a começar pelo papel higiénico. Mas, desculpem, não tenho jeito para filosofar. Toda a gente parece ter algo para dizer sobre a chuva e eu aqui sem nada para dizer.

O tempo passa a chover


Hoje não caminho para nenhum estádio, não regressarei a casa como um gato encharcado a sacudir os pêlos da infelicidade.


BOCHUM – Que o Tempo passa a correr é uma realidade que quase se transformou num lugar comum. Que o tempo passa a chover é uma realidade que persegue na Alemanha, de Munique a Leipzig, de Gelsenkirchen a Bochum. Gotas grossas batem na janela do meu quarto e um trovão rebenta ao longe. Nunca me fez impressão andar à chuva e nunca usei guarda-chuva porque era tempo perdido e da chuva guardava pouco. Também não caí nunca no exagero de O’Neill que, num dia como este, ao sair de casa, ouviu a voz do pai: «Alexandre, leva o guarda-chuva que está mau tempo». E ele: «Não pai, não levo». E o pai: «Mau. Alexandre, estou a dizer-te para levares o guarda-chuva!» E o filho, teimoso: «Não levo. E não só não levo como nunca mais cá ponho os pés».

A chuva deu de comer a muitos poetas não fosse ela assim melancólica como o tempo e como o Tempo. O brasileiro Olegário Mariano punha chuva em quase todos os seus poemas: «Choveu tanto esta tarde/Que as árvores estão pingando de contentes/As crianças pobres em grande alarde/Molham os pés nas poças reluzentes». Não vejo nem crianças nem nada reluzente na Ferdinandstrasse, onde me instalo. As árvores pingam mas de tristes neste dia em que o Verão se esqueceu de começar. Fernando Pessoa também não se deixou passar por entre os pingos da chuva: «Chove longínqua e indistintamente/Como uma coisa certa que nos minta/Como um grande desejo que nos mente/Chove. Nada em mim sente…» Não sentir não é fácil, penso enquanto reprimo um bocejo e olho o céu escuro. Maço-me. Entedio-me. Leio e escrevo. Hoje não caminho para nenhum estádio, não regressarei a casa como um gato encharcado a sacudir os pêlos da infelicidade. «Chove na rua já de si molhada/Duma vida que é chuva e não parece/Chove grossa e constante/Uma paz que há de ser/Uma gota invisível e distante/Na janela a escorrer», escreveu o Torga. Há sempre água a escorrer na vidraça dos meus olhos. Tragam-me um balde! O meu reino por um balde! Mas agora a Alemanha chora? Coisa tão pouco alemã. Cerrado como o aço, o céu contraria-me a vontade de andar só por andar. Fico olhando a chuva mas não tenho vontade de rimar nem comigo mesmo. Dizem que é a noite mais curta do ano. Mentira! O dia nasceu há muito e continua a ser noite. «O dia de chuva é propício à filosofia, ao amor, à rasgação de papéis», disse a propósito Drummond de Andrade. Boa! Vou rasgar papéis. Vou rasgar todos os papéis que encontrar a começar pelo papel higiénico. Mas, desculpem, não tenho jeito para filosofar. Toda a gente parece ter algo para dizer sobre a chuva e eu aqui sem nada para dizer.