Alta Velocidade. Um sonho antigo que teima em ver a luz ao fundo do túnel

Alta Velocidade. Um sonho antigo que teima em ver a luz ao fundo do túnel


Depois de muitos avanços e recuos, o projeto de Alta Velocidade irá finalmente avançar. Especialistas lamentam decisão tardia e há quem critique a opção pela bitola ibérica.


Decisões “rápidas, ponderadas, fundamentadas e estratégicas”. Foi desta forma que Luís Montenegro anunciou uma série de investimentos para Portugal, nomeadamente a ligação ferroviária de Alta Velocidade (AV) entre Lisboa e Madrid, depois de muitos avanços e recuos que marcaram os últimos anos nesta área. “Esta Ligação de Alta Velocidade, que dá cumprimento ao Programa Nacional de Investimentos 2030 e ao Plano de Trabalho do Corredor Atlântico, permitirá ainda impulsionar de forma decisiva o setor ferroviário, em Portugal. E contribui igualmente para concretizar o objetivo estabelecido pela Comissão Europeia na Estratégia de Mobilidade Inteligente e Sustentável de duplicar o tráfego ferroviário de passageiros de alta velocidade, dando também execução ao EU Green Deal e ao Acordo de Paris sobre alterações climáticas”, revelou o Governo.

Ao i, Rosário Macário, professora e investigadora do Instituto Superior Técnico lamenta as decisões tardias e que afeta a própria recuperação da rede ferroviária nacional e que, no seu entender, “é uma rede que é suposta ser estruturante do território”, mas que “fomos deixando degradar, havendo um desequilíbrio em favor da rodovia e muito pouco investimento na ferrovia”. 

De acordo com a responsável, “há regiões no interior que podiam estar mais bem servidas de ferrovia e, por isso, poderiam ter tido outro desenvolvimento económico e que não tiveram porque estão de alguma forma muito isoladas, o que acaba por condicionar naturalmente o desenvolvimento económico da região”. E recorda uma tese de doutoramento em relação à Beira Interior que analisa o impacto que as acessibilidades têm ou não tiveram no desenvolvimento desta região por falta de acessibilidades. “Isso é um fator conhecido, ainda assim, os sucessivos governos foram protelando os investimentos na ferrovia, abandonando algumas linhas. A linha do Oeste, por exemplo, é hoje uma linha que está com imenso potencial. Há muita gente a mudar-se para a Zona Oeste, Trás os Montes a mesma coisa. E do ponto de vista das políticas públicas, pecámos muito por não ter feito um investimento substancial na rede ferroviária, como aliás os espanhóis fizeram”.

Já em relação à alta velocidade, Rosário Macário chama a atenção para o facto de estarmos agora a investir e “com grande interesse” por conta também dos fundos europeus e das redes transeuropeias. E não hesita: “O atraso na AV é menor do que em relação à rede ferroviária de uma maneira geral”.

Quem também lamenta este atraso é José Furtado, engenheiro civil, especialista em planeamento estratégico de infraestruturas de transporte, ao afirmar que Portugal começou a estudar o projeto de alta velocidade ao mesmo tempo que os espanhóis que estudavam Madrid/Sevilha. “Isso foi na década de 80, veja o atraso que temos. Ao mesmo tempo, fez-se um grupo de missão para acertar com espanhóis uma série de coisas e até hoje nada. Andámos a discutir anos e anos se a saída era por Badajoz ou se era noutro sítio e, mais uma vez, até hoje nada”, disse ao nosso jornal. 

Uma opinião partilhada por José Ribeiro e Castro. “É evidente que estamos a ser enganados. Ou, então, a incompetência bate recordes mundiais. Não é possível chegarmos ao fim desta legislatura em 2029 e, depois de termos feito 40 anos como membros da UE (em 2026), continuarmos desconectados do mercado eléctrico europeu e uma ilha ferroviária, esquecida, atrasada e distante. Não é aceitável que, para as autoestradas, houvesse meios em excesso e, para a ferrovia, tudo parece faltar: vontade, investimento, inteligência, capacidade executiva. Está na hora de darmos o salto em frente. Quem agarra nesta agenda?”, questiona num artigo de opinião publicado na edição desta terça-feira no i (pág. 25).

Ordem para avançar 

Mas depois de muitos impasses, a palavra de ordem é para avançar. O secretário de Estado das Infraestruturas já veio defender como necessário o “foco na execução” do plano de investimentos assumido por Portugal, que “privilegia o modo ferrovia”, e definir uma “visão integrada para a logística, intermodal” no setor dos transportes. 

“Precisamos de garantir que vamos executar tudo aquilo que nos comprometemos a fazer, há um plano de investimento muito ambicioso, que privilegia o modo ferrovia, é uma prioridade para o país a descarbonização dos transportes, e temos de os executar”, revelou Hugo Espírito Santo.

Entretanto, a Infraestruturas de Portugal adiou em quase três semanas o prazo para a entrega de candidaturas para a construção e manutenção do primeiro troço da linha de alta velocidade entre Porto e Lisboa, “por motivos técnicos”. E, segundo o anterior Governo, os custos do investimento no eixo Lisboa-Valença rondam os sete a oito mil milhões de euros.

Contas que não convencem José Furtado que pertence ao consórcio que tem defendido Alverca como a melhor localização para o futuro aeroporto de Lisboa. “A nossa solução poupa seis mil milhões na ferrovia e dispensa a ponte Chelas/Barreiro porque não é preciso. Essa infraestrutura só existe por causa do aeroporto”. 

Já Rosário Macário lembra que a situação financeira que tem vindo a condicionar estes projetos, continua a ser a mesma, mas só está agora a avançar porque há dinheiro europeu e que vem das redes transeuropeias. “Não nos tornámos ricos nesta última década, o problema continua a ser o mesmo, a diferença é que atualmente podemos aproveitar estes fundos externos e obviamente isso é uma vantagem e favorece naturalmente o país. Agora não podemos é obcecar-nos com a Alta Velocidade e esquecer que é necessário também ter uma rede de boa velocidade, que não tem de ser de Alta Velocidade, para servir o território do país, de forma a que, do ponto de vista económico, Portugal não seja apenas a língua litoral do oceano”. 

O que está em cima da mesa 

A ideia é que este projeto se apresente como uma alternativa de transporte ferroviário competitivo (nomeadamente com o avião), em que uma viagem Porto/Lisboa irá demorar 1h15, enquanto a ligação Lisboa/Madrid será de 3 horas, anunciando-se como “uma alternativa ferroviária competitiva aos 40 voos diários entre Lisboa e Madrid e de cerca de 20 entre Porto e Lisboa”.

Em termos de impacto nacional, vai reduzir o tempo de percurso Lisboa-Elvas para cerca de 2h em 2025 e para cerca de 1h em 2034, quando todo o percurso estiver operacional. “Presentemente, a ligação entre Évora e Elvas está em construção, devendo entrar ao serviço em 2025. Terão ainda de ser construídas a terceira travessia do Tejo em Lisboa (TTT) até ao oceirão e a ligação entre o Poceirão e Elvas”, explicou o Executivo.

Na ligação entre Lisboa e Madrid, a AV reduzirá o tempo de percurso para 6h em 2027 e para 3h em 2034, quando todo o percurso estiver operacional.”Desta linha está construída a ligação Badajoz-Placencia e Toledo-Madrid, em construção e ligação Évora-Elvas (Caia) e a ligação Placencia-Talayuela (que entrará ao serviço em 2027), e a construir a TTT, a ligação Poceirão-Évora e a ligação Talayuela-Toledo”, acrescentando ainda que “a calendarização dos investimentos será compatibilizada com Espanha, para garantir uma execução coordenada e atempada do projeto, otimizando plenamente a disponibilidade de financiamento europeu”.

Polémica em torno das bitolas 

A solução adotada em Portugal é a construção em bitola ibérica e uma das justificações que tem sido dada diz respeito à possibilidade dos atuais comboios de longo-curso, Alfa Pendular e Intercidades, poderem circular na nova linha, ao mesmo tempo, que dá a possibilidade de usufruir dos benefícios desta nova linha à medida que cada troço é concluído, já que o projeto será desenvolvido de forma faseada. Ao contrário do que aconteceria se o Governo optasse pela bitola europeia, uma vez que não é compatível com a rede convencional existente. Na adoção desta solução, os novos comboios ficariam confinados a essa linha, não podendo fazer serviços na rede convencional, por exemplo, até Braga, Guimarães ou Faro.

Também o vice-presidente da Infraestruturas de Portugal defendeu a nível nacional a criação de uma linha de Alta Velocidade com bitola ibérica que permite que qualquer comboio possa utilizá-la, sem provocar constrangimentos com incompatibilidades e assinalou que qualquer mudança terá de partir, primeiro, de Espanha. “A bitola europeia está em França e tem de vir de França para Espanha e de Espanha para Portugal, nunca pode ser ao contrário”, disse Carlos Fernandes, afirmando que estas mudanças estão dependentes de acordos, dando o exemplo da eletrificação da linha da Beira Alta.

Argumentos que não convencem José Furtado que defende que a Península Ibérica seja pensada como um todo, já que as ligações de Alta Velocidade devem ser analisadas até 600 quilómetros, uma vez que, diz que é aí que é competitiva. “Temos de olhar para a nossa ligação Lisboa-Corunha que são 500 e tal quilómetros e Lisboa/ Madrid que são 650 km, mas isso implica que seja tudo pensado em bitola europeia”. E lamenta a decisão do Governo. “Trata-se de uma teimosia. A ligação Lisboa/ Madrid tem de ser em bitola europeia. A própria Comunidade Europeia está a fomentar a ligação entre capitais em bitola europeia e, como tal, não faz sentido manter este finca pé que não tem razão de ser”. 

No entanto Rosário Macário desvaloriza esta polémica, considerando que se trata de “uma ficção”, referindo que do ponto de vista tecnológico esta diferença entre bitolas está ultrapassada. “Já há formas tecnológicas de passar da bitola ibérica para bitola europeia sem qualquer problema. E é óbvio que Portugal, pelas características que tem, precisa de se alinhar com as opções de Espanha porque é com Espanha que vamos ter a interoperabilidade principal. Os espanhóis estão a usar bitola ibérica e nesse aspeto a decisão é correta, Portugal alinhou-se com as decisões de Espanha. Ainda que neste momento não faz absolutamente diferença nenhuma, porque tecnologicamente está garantida a conversão. Ou seja, um comboio hoje pode passar de uma bitola para a outra com uma solução tecnológica, sem ser necessário construir ou reconstruir as bitolas”.

E quando questionada sobre o que diferencia estas duas soluções, a professora e investigadora do Instituto Superior Técnico diz apenas que se trata da distância entre carris. “Hoje já há mecanismos tecnológicos que permitem ao comboio adaptar de uma largura de carril para outra largura de carreira e fazê-lo ao longo de uma viagem, sem que isso obrigue à mudança de carril. É utilizado um terceiro carril para fazer esse ajuste. Não faz sentido haver esta discussão. Essa discussão é um entretém como outro qualquer”, esclarece. 

Um sonho antigo 

O atraso em avançar com o projeto de Alta Velocidade tem sido alvo de duras acusações entre os partidos nos últimos anos. O pontapé de saída deste investimento foi dado em 1999 por António Guterres, foi relançado por José Sócrates, em 2009, mas o pedido de resgate financeiro fez com que nunca tenha saído do papel. 

O sonho voltou a ser recuperado por António Costa em 2018 quando numa entrevista ao jornal espanhol ABC disse que o dossiê estava adiado “por muito tempo” porque era um “tabu na política portuguesa”. E foi ainda com o ex-primeiro-ministro, no início deste ano, que foi lançado o concurso para a construção e manutenção do primeiro troço da linha de alta velocidade, que ligará o Porto a Oiã (Aveiro), num total de 71 quilómetros e que inclui 12 quilómetros em túnel e 19 quilómetros em pontes, e tem um valor máximo de adjudicação de 2,14 mil milhões de euros, dos quais 480 milhões financiados através de fundos comunitários. 

Mas apesar deste sonho ser antigo, Rosário Macário admite que o projeto por si só não vai fazer com que as viagens de avião terminem, até porque lembra que somos um país periférico, ainda assim, reconhece que a rede de Alta Velocidade vai contribuir para a descarbonização. Não basta fazer a rede de Alta Velocidade. É necessário tomar todo um conjunto de outras medidas que proporcionem, do ponto de vista das políticas públicas, se reduza a utilização do modo rodoviário poluente. Há neste momento um conjunto de medidas em cima da mesa, não só no ferroviário, mas também no rodoviário, na eletrificação, etc. que no seu conjunto irão contribuir para a redução da carbonização. Obviamente, que a Alta Velocidade terá um papel muito importante na ligação Lisboa-Porto e na ligação Lisboa-Madrid”, salienta.