O Mistério de Shillerstrasse


Havia uma espécie de batalha entre dois grupos que atiravam cadeiras de plástico e garrafas de cerveja um ao outro, pouco importava se estavam cheias se vazias.


LEIPZIG – Foi preciso chegar a Leipzig para dormir. A Shillerstrasse de Munique fez-me lembrar os tempos em que vivi no Bairro Alto mas para pior. O meu quarto ficou para a frente o que me alterou particularmente o sossego, não apenas porque a rua está em obras, e com aqueles aborrecidos caminhos traçados a contraplacado por entre destroços, como todos os bares das vizinhanças se abrem nessa direção, e neste caso o verbo foi mesmo abrir e não fechar apesar de as horas irem passando aborrecidamente de cada vez que caía na asneira de espreitar o telemóvel. Para compensar, por entre alguns cânticos definitivamente roucos e embriagados – «For you’ll take the high road and I take the low road/And I’ll bei n Scotland afore ye» -, de sotaque inconfundível, alguém teve a bonita ideia de começar a uivar como um coiote. Depois misturaram-se mais sons como se numa orquestra dirigida pelo Chapeleiro Louco da Alice: vidros partidos, portas a fecharem-se com força, insultos, cacarejos que bem podiam ser gargalhadas, relinchos entremeados com conversas aos berros, sirenes de carros de polícia ao longe tanto pareciam aproximar-se como afastar-se. O defeito profissional fez com que me vestisse e descesse à rua. A Shillerstrasse estava um caos. Havia uma espécie de batalha entre dois grupos que atiravam cadeiras de plástico e garrafas de cerveja um ao outro, pouco importava se estavam cheias se vazias. Lembrei-me da frase de Shiller que Beethoven levou para a Nona Sinfonia: «E um dia os homens voltarão a ser irmãos». E foi então que o vi. O rapaz deitado no passeio coberto com trapos e um cãozinho ao lado. Por mais de uma vez levou com estilhaços mas não se mexeu. Tentei dizer-lhe que estava a dormir num sítio perigoso, mas o sono dele era mais do que sono: inerte, de olhos semi-abertos, enroscado sobre si mesmo. O cão ganiu baixinho. Insisti para nada. Depois duas garrafas voaram em minha direção e achei que estava na hora de me retirar de um campo de guerra que não era minha. Ainda abanei o sujeito, mas nem um som. A polícia acabou por vir e talvez tenha tido uma hora de silêncio em descanso, cortado pelo teimoso uivo do coiote. Eram seis da manhã quando saí do hotel para a estação. A Shillerstrasse estava vazia. O rapaz enrolado em trapos vagueava como um fantasma por entre destroços passeando o seu cão. Pelo céu claro, o dia ameaçava ser bonito. Mas fiquei com a sensação de que isso não lhe ia servir para nada.

O Mistério de Shillerstrasse


Havia uma espécie de batalha entre dois grupos que atiravam cadeiras de plástico e garrafas de cerveja um ao outro, pouco importava se estavam cheias se vazias.


LEIPZIG – Foi preciso chegar a Leipzig para dormir. A Shillerstrasse de Munique fez-me lembrar os tempos em que vivi no Bairro Alto mas para pior. O meu quarto ficou para a frente o que me alterou particularmente o sossego, não apenas porque a rua está em obras, e com aqueles aborrecidos caminhos traçados a contraplacado por entre destroços, como todos os bares das vizinhanças se abrem nessa direção, e neste caso o verbo foi mesmo abrir e não fechar apesar de as horas irem passando aborrecidamente de cada vez que caía na asneira de espreitar o telemóvel. Para compensar, por entre alguns cânticos definitivamente roucos e embriagados – «For you’ll take the high road and I take the low road/And I’ll bei n Scotland afore ye» -, de sotaque inconfundível, alguém teve a bonita ideia de começar a uivar como um coiote. Depois misturaram-se mais sons como se numa orquestra dirigida pelo Chapeleiro Louco da Alice: vidros partidos, portas a fecharem-se com força, insultos, cacarejos que bem podiam ser gargalhadas, relinchos entremeados com conversas aos berros, sirenes de carros de polícia ao longe tanto pareciam aproximar-se como afastar-se. O defeito profissional fez com que me vestisse e descesse à rua. A Shillerstrasse estava um caos. Havia uma espécie de batalha entre dois grupos que atiravam cadeiras de plástico e garrafas de cerveja um ao outro, pouco importava se estavam cheias se vazias. Lembrei-me da frase de Shiller que Beethoven levou para a Nona Sinfonia: «E um dia os homens voltarão a ser irmãos». E foi então que o vi. O rapaz deitado no passeio coberto com trapos e um cãozinho ao lado. Por mais de uma vez levou com estilhaços mas não se mexeu. Tentei dizer-lhe que estava a dormir num sítio perigoso, mas o sono dele era mais do que sono: inerte, de olhos semi-abertos, enroscado sobre si mesmo. O cão ganiu baixinho. Insisti para nada. Depois duas garrafas voaram em minha direção e achei que estava na hora de me retirar de um campo de guerra que não era minha. Ainda abanei o sujeito, mas nem um som. A polícia acabou por vir e talvez tenha tido uma hora de silêncio em descanso, cortado pelo teimoso uivo do coiote. Eram seis da manhã quando saí do hotel para a estação. A Shillerstrasse estava vazia. O rapaz enrolado em trapos vagueava como um fantasma por entre destroços passeando o seu cão. Pelo céu claro, o dia ameaçava ser bonito. Mas fiquei com a sensação de que isso não lhe ia servir para nada.