O apepinador de Adolfo


Este Europeu, como o de Inglaterra, em 1996, e o de França, em 2016, é para ser feito de comboio e ponto final.


LEIPZIG – Gosto de comboios. Gosto deste comboio onde me sento para viajar de Munique para Leipzig. Gosto de comboios desde miúdo, com um comboio elétrico dado pelo meu avô Acácio; ainda menino apaixonado pelo Vale de Vouga, o Vouguinha Queima-Fatos; em fedelho quando atravessei a Europa de lés a lés de interail, de  Lisboa a Istambul, atravessando a Itália e a Grécia, correndo a antiga Jugoslávia, a Áustria e a Hungria, a Suíça e esta Alemanha; fiz o caminho do transiberiano com Blaise Cendrars e La Petite Jeanne de France; focei por toda a Índia, do deserto de Buj ao sopé dos Himalaias em Leh e em Gangtok, mergulhei nos templos do Tâmil Nadu ao som dos tirantes; cruzei a Mongólia e a China, subi a custo o vale escarpado do Urubamba, no Peru, e mais e mais e mais, da Inglaterra, onde os orgulhosos British Royal Trains nos tratam como súbditos excelsos, ao Japão dos comboios-bala.

Este Europeu, como o de Inglaterra, em 1996, e o de França, em 2016, é para ser feito de comboio e ponto final. Claro que, quem viaja num comboio alemão acaba por se lembrar de Bertolt Brecht (companhia indispensável para uma estadia neste país) e do seu Comboio de Serviço. Se viajarem pelos suburbanos das grandes cidades da Índia, repararão que os indianos gostam muito de defecar nas linhas, acocorando-se com mestria nos carris. Não há muitos anos, quando os pica-bilhetes se esqueciam de trancar as portas dos lavabos nas paragens dos comboios, havia cargas de excrementos deixadas a esmo nas estações do Portugalzinho que já lá vai. O Comboio de Serviço era, no entender de Brecht, uma maravilha: «O comboio de serviço/
é uma obra-prima da técnica ferroviária./Os passageiros
têm apartamentos privativos. Pelas largas janelas/vêem os camponeses alemães mourejar pelos campos./Se por acaso transpirassem nesse momento/poderiam tomar banho/em cabines cobertas de ladrilhos». O humor de Bertolt era mais ácido do que fluorântimónico. Foi o maior apepinador de Adolfo e nunca parou de o ser. E, por isso, terminava assim: «Sem sair da cama os passageiros também podem/ligar o rádio, que transmite as grandes reportagens
sobre os erros dos outros regimes. Jantam,/se assim o desejarem, no respectivo apartamento,/e fazem as
respectivas necessidades/em privadas privativas revestidas de mármore.
Cagam
na Alemanha».

Quando o homem gordo como um pequeno planeta sentado na minha frente se levantou para ir aos lavabos, confesso que quase senti pena da Alemanha. O que vale é que este não é um Comboio de Serviço.

O apepinador de Adolfo


Este Europeu, como o de Inglaterra, em 1996, e o de França, em 2016, é para ser feito de comboio e ponto final.


LEIPZIG – Gosto de comboios. Gosto deste comboio onde me sento para viajar de Munique para Leipzig. Gosto de comboios desde miúdo, com um comboio elétrico dado pelo meu avô Acácio; ainda menino apaixonado pelo Vale de Vouga, o Vouguinha Queima-Fatos; em fedelho quando atravessei a Europa de lés a lés de interail, de  Lisboa a Istambul, atravessando a Itália e a Grécia, correndo a antiga Jugoslávia, a Áustria e a Hungria, a Suíça e esta Alemanha; fiz o caminho do transiberiano com Blaise Cendrars e La Petite Jeanne de France; focei por toda a Índia, do deserto de Buj ao sopé dos Himalaias em Leh e em Gangtok, mergulhei nos templos do Tâmil Nadu ao som dos tirantes; cruzei a Mongólia e a China, subi a custo o vale escarpado do Urubamba, no Peru, e mais e mais e mais, da Inglaterra, onde os orgulhosos British Royal Trains nos tratam como súbditos excelsos, ao Japão dos comboios-bala.

Este Europeu, como o de Inglaterra, em 1996, e o de França, em 2016, é para ser feito de comboio e ponto final. Claro que, quem viaja num comboio alemão acaba por se lembrar de Bertolt Brecht (companhia indispensável para uma estadia neste país) e do seu Comboio de Serviço. Se viajarem pelos suburbanos das grandes cidades da Índia, repararão que os indianos gostam muito de defecar nas linhas, acocorando-se com mestria nos carris. Não há muitos anos, quando os pica-bilhetes se esqueciam de trancar as portas dos lavabos nas paragens dos comboios, havia cargas de excrementos deixadas a esmo nas estações do Portugalzinho que já lá vai. O Comboio de Serviço era, no entender de Brecht, uma maravilha: «O comboio de serviço/
é uma obra-prima da técnica ferroviária./Os passageiros
têm apartamentos privativos. Pelas largas janelas/vêem os camponeses alemães mourejar pelos campos./Se por acaso transpirassem nesse momento/poderiam tomar banho/em cabines cobertas de ladrilhos». O humor de Bertolt era mais ácido do que fluorântimónico. Foi o maior apepinador de Adolfo e nunca parou de o ser. E, por isso, terminava assim: «Sem sair da cama os passageiros também podem/ligar o rádio, que transmite as grandes reportagens
sobre os erros dos outros regimes. Jantam,/se assim o desejarem, no respectivo apartamento,/e fazem as
respectivas necessidades/em privadas privativas revestidas de mármore.
Cagam
na Alemanha».

Quando o homem gordo como um pequeno planeta sentado na minha frente se levantou para ir aos lavabos, confesso que quase senti pena da Alemanha. O que vale é que este não é um Comboio de Serviço.