Olhar a realidade de frente: A necessária, mas inegavelmente difícil, relação entre as magistraturas e a polícia, no âmbito da investigação criminal judicializada


O poder de gerir o modo e o momento da realização das diligências para a aquisição de elementos de prova, escapam, em princípio, às magistraturas que promovem ou autorizam as diligências a isso destinadas.


1. Um dos problemas mais delicados relativamente às atribuições e competências que na jurisdição penal exerce o Ministério Público (MP) é o que respeita às relações funcionais entre esta magistratura e os Órgãos de Polícia Criminal (OPC) e, mormente, a Polícia Judiciária (PJ).

Um sistema constitucional, como o nosso, em que o exercício da ação penal cabe, em primeira mão, ao MP (uma autoridade judiciária) implica uma relação clara entre este e a polícia, que deve cumprir as diligências ordenadas por esta magistratura ou, a pedido dela, pelo juiz de instrução criminal (JIC).

De um lado temos, portanto, duas magistraturas independentes do poder político e, do outro, um órgão de polícia (PJ) que depende organicamente do Governo.

Diz, com efeito, o artigo 3º n.º 2, do DL n.º 137/2019, de 13 de setembro (atualizado) referente à Estrutura Organizacional da Polícia Judiciária:

“(…) a PJ atua no processo sob a direção das autoridades judiciárias e na sua dependência funcional, sem prejuízo da respetiva organização hierárquica e autonomia técnica e tática.”

A referência à “autonomia técnica e tática” da PJ é, depois, repetida, algumas vezes, ao longo do referido diploma.

Não sendo dispensáveis, tal como levados à prática, tais conceitos criam, contudo, problemas e, de quando em vez, suscitam mesmo melindres.

Sem entrar em elucubrações teóricas, diria, simplesmente, que tal norma vem sendo interpretada como permitindo àquela polícia determinar o “timing” da execução das diligências investigatórias nos processos em que, por lei, lhe são deferidas as competências investigatórias e, bem assim, nos processos em que, não tendo tal competência, se lhe pede, também, colaboração para a execução de medidas concretas de investigação.

Assim, de modo algo simplista, afirmaria que, se ao MP compete, direta ou indiretamente, dirigir estrategicamente a investigação, à PJ incumbe, em geral e, com destaque nos crimes da sua competência exclusiva, determinar os meios a usar nas diligências de obtenção de prova, o número de agentes que nelas devem intervir e o momento da sua realização: nisto se traduz, afinal, a sua autonomia técnica e tática.

Pelo que, agindo, embora teoricamente, sob a orientação funcional do MP ou do juiz, o poder de gerir o modo e o momento da realização das diligências de aquisição de elementos de prova escapam, em princípio, às magistraturas que, respetivamente, determinam, promovem ou autorizam tais diligências.

Isso pode inviabilizar, de certo modo, em algumas circunstâncias, a orientação estratégica da investigação que compete ao MP determinar.

Note-se que ao MP não basta – ou não deveria bastar – uma verdade que possa apenas ser exibida em público.

A função do MP não se dirige, no essencial, a caucionar a segurança dos cidadãos, mas, agindo depois do crime ocorrido, a permitir que os tribunais façam Justiça, 

A verdade que ao MP importa – ou deveria importar – é, pois, sobretudo, aquela que pode ser comprovada em julgamento: nesta particularidade se situa, também, a desigual preocupação com os métodos de aquisição de elementos de prova entre esta magistratura e a PJ.

À PJ, como a qualquer polícia, importa – tratando-se, em especial, de criminalidade grave – garantir, antes do mais, o sentimento de paz pública.

Neste plano, é-lhe fundamental exibir, publicamente e quanto antes, a descoberta dos criminosos e a sua detenção, garantindo, deste modo, aos cidadãos a cessação da atividade criminosa: daí, também, a sua generosa política própria de informação pública sobre os casos em que intervém.

Só depois surgem, naturalmente, as preocupações de natureza mais processual com a validade dos métodos de recolha dos elementos de prova necessários à realização da Justiça em tribunal.

Essa, pelo contrário, é – ou deveria ser – uma preocupação predominante do MP.

É aqui que, portanto, se cruzam e confrontam, frequentemente, orientações e objetivos de intervenção entre esta magistratura e a PJ no decurso das investigações.

Tal configuração de poderes e competências e, bem assim, o sentido de oportunidade na realização das diligências de investigação – sobretudo quando a PJ age, mais livremente, no âmbito das competências delegadas por lei –, não raro cria, pois, fricções com a autoridade judiciária ou judicial que titula, nesse momento, o inquérito.

Essa questão, mesmo que nunca assumida e revelada, é uma das razões que tem levado por vezes o MP a atribuir a investigação a outros órgãos de polícia criminal (OPC) que aceitam seguir, mais regradamente, as diretivas dos procuradores titulares dos processos. 

Compreende-se, por isso, que a opinião pública informada pelos media – que não a esclarecem, todavia, destas muito particulares questões – acabe por atribuir ao MP iniciativas de ação que a ele, na realidade, não compete tomar e que, em alguns casos, não conhece e, em rigor, lhe escapam.

Há com efeito, uma zona cinzenta, nesta matéria que importaria urgentemente clarificar.

Tal elucidação, e a consequente resolução dos desacordos que gera, poderia passar, no entanto, pela exigência obrigatória de uma maior intervenção da hierarquia do MP no plano processual.

Uma intervenção não casuística, mas estatuída em termos gerais e a definir prudentemente – ou pelo legislador, ou pelos órgãos superiores o MP -, num regulamento geral das procuradorias.

A razão de ser desta proposta – mesmo que ainda não amadurecida teoricamente – funda-se nas exigências ditadas pela mais pura das realidades e na mais crua das exigências.

Ela resulta da necessidade, que não raro existe, de o procurador titular do inquérito – que, inevitavelmente, tem de manter uma relação próxima com os inspetores da PJ e os investigadores de outros OPC -, se poder socorrer, deste modo, do argumento da autoridade para, sem criar conflitos pessoais desnecessários com aqueles, intervir pronta e ponderadamente sobre tais opções da polícia.

Só deste modo, se pode evitar que o momento escolhido para realizar certas diligências ponha em causa a estratégia geral da investigação delineada pelo MP, tendo em vista o julgamento do caso e acautelar, ainda, outros interesses específicos da investigação que importam, em especial, à Justiça preservar.

Ajudará, ainda, a evitar que se crie na opinião pública uma ideia falsa dos verdadeiros motivos da investigação e, ainda, dos que conduzem, ou devem obstar, à concretização de certas diligências em momentos objetivamente sensíveis para o normal funcionamento das instituições democráticas.

2. Acontece, todavia, que procuradores mais novos e menos experientes são colocados, frequentemente, em situações melindrosas e, para eles – entregues a si próprios -, de difícil superação.

Necessitando, obviamente, do apoio dos OPC para levarem por diante as investigações, consideram (alguns) de melhor política institucional, não contrariar frontalmente quem, de facto, tem todo o poder sobre a gestão dos meios humanos e materiais para concretizar diligências essenciais à investigação.

Ficam, pois, paradoxalmente, numa posição de dependência de facto ante aqueles que, de acordo com a lei, deveriam dirigir.

Sejamos claros, quem, na verdade, detém os meios humanos e materiais para concretizar as operações que visam coligir elementos de prova de mais difícil alcance é quem opta e decide – na prática – a política criminal.

A consagração legal da autonomia técnica ou tática da PJ – órgão dependente do executivo – permite, assim, opções e soluções que podem, em muitos casos, condicionar o destino do inquérito.

Tais opções, escapam e, por vezes, fintam mesmo, na prática, os poderes processuais das magistraturas na condução dos inquéritos.

Neste contexto, a evidentemente necessária “negociação” do uso e do momento do uso de tais meios de investigação, de que o MP não dispõe (nem o juiz), só pode, pois, resultar de uma determinação com autoridade e peso suficiente por parte do superior hierárquico do magistrado titular do processo e, se necessário, caso persistam os desentendimentos, de procuradores com posições na hierarquia desta magistratura mais levados.

Sem reforçar os poderes de direção funcional do MP no inquérito (e do JIC), fazendo intervir, obrigatória e responsabilizantemente a sua hierarquia na barganha, em que, demasiadas vezes, se torna a discussão sobre a oportunidade e prioridade no uso e no momento do uso dos meios operacionais necessários a uma concreta investigação, parece difícil atribuir e, mais, exigir toda a responsabilidades do que depois sucede apenas ao MP.

A solução diferente – que não advogamos – seria, como de  certa forma acontecia no antigo regime, a de fundir o MP na PJ, mas isso arredaria, de vez, a autonomia do MP e o seu dever de objetividade na condução dos inquéritos tendo em vista possibilitar um julgamento justo: daria, enfim, por outro lado, ao poder político, e a quem o ocupasse, a direção efetiva da ação penal.

A não ser que, como, em importante e recente documento, sugerem os procuradores-gerais adjuntos Maria José Morgado e Euclides Dâmaso  – na Sábado de 24/4/24 – , se encarregue, no essencial, a PJ de toda a responsabilidade da investigação por crimes graves, distanciando-se e quedando-se o MP na função principal de controlo ativo da legalidade da ação investigativa desta polícia, aceitando, que, no final, possa tal caso, ser ou não, levado a a julgamento, como acontece com o inglês Crown Prosecution Service.

Só que este – concorde-se ou não com ele – não é, mesmo que mitigado, o modelo que domina no espaço da UE e que, além disso, inspirou o Procurador Europeu.      

3. O MP é hoje, em Portugal – relembre-se -, o órgão que nos tribunais está  constitucionalmente encarregado de participar na execução da política criminal definida, legalmente, pelos órgãos de soberania e de exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade; leia-se: obrigatoriedade de, sem prejuízo das prioridades estabelecidas por lei, dar seguimento a todas as queixas e notícias do crime dignas desse nome, decidindo, no fim e de acordo com os factos apurados e a lei, o destino a dar aos autos.

É verdade que somos, hoje, confrontados com estórias singulares que, para tristeza de todos – embora sempre tenham ocorrido – se sabe sucederem, agora, com uma inusitada frequência.

Guardo, porém, na memória, uma boa seleção de antigas estórias igualmente desastrosas, que, embora podendo ilustrar esta afirmação, não devem, neste contexto, ser ainda reveladas, por receio de poderem ser deseducativas.

O conhecimento público das estórias mais recentes pode resultar de maior transparência e atenção dos media em relação aos assuntos da Justiça – que hoje, bem ou mal, toca com mais frequência poderes dantes intocáveis – ou, também, em alguns casos, da menor experiência de vida e envolvimento cívico com a defesa da Democracia de alguns magistrados, que são, na ausência de uma referência e suporte hierárquico, colonizados, isso sim, por uma cultura da investigação tipicamente policial.

Além de que, o não acompanhamento em julgamento dos casos que investigam afasta-os, irremediavelmente, dos valores próprios da cultura judicial.

A intensidade absorvente e o consequente afunilamento da vida universitária atual e a aparente neutralidade ideológica da escola da magistratura, terão, também, nesse alheamento dos princípios e valores que regem a Justiça, alguma responsabilidade.  

4. Se queremos, porém, com seriedade – e independentemente das razões e emoções que assistem a quem hoje, não sendo jurista, manifesta tal interesse nestas matérias – discutir e aperfeiçoar a Justiça penal e, nela, o modelo de investigação judicializada existente entre nós, não podemos meter a cabeça entre as orelhas e, prudentemente, ignorar a realidade das coisas, tal como ela é.

Tal como ela é e, realce-se, a quis – mesmo que advertido dos riscos que corria – o legislador ordinário.

Daí que, muitas leis, diretivas e propostas de reforma sejam, porém, frequentemente destinadas a, antes do mais, equilibrar interesses, preconceitos e estórias de agravos, do que a resolver problemas que a realidade tornou evidentes.

Recordo, a propósito, a criação de um tribunal que, não obstante a sua constitucionalidade duvidosa, nasceu de uma emulação corporativa, mesmo que, antes do nascimento, e no desenho que dele, então, foi feito, lhe tivessem sido logo apontados os problemas que criaria e que, de facto, acabou por criar.

Muitas de tais propostas ignoram, pois, manifestamente – e nunca saberemos se de propósito, ou a que propósito – a realidade que se considera necessário mudar.

E, sem esta bem focada, nada de útil poderá sair das mudanças que todos queremos eficazes, mas também respeitadoras dos direitos humanos.

O perigo que, nos agitados, confusos e perigosos dias de hoje, todos corremos é, todavia, o de, desta forma, basear as reformas que muitos de nós – profissionais do foro e cidadãos – consideram necessárias, nas anedotas, mais ou menos trágicas, que a cada um de nós, ou aos nossos amigos, já aconteceram.

A mim, embora na qualidade de testemunha, aconteceu-me – admito – um episódio supinamente ridículo, mas que denotava já a ascendência crescente de um perigoso e inadmissível sentimento de arrogância e hostilidade corporativa por parte de alguns jovens justiceiros; enfim, talvez revelasse, apenas, a má educação de quem, no tribunal, o protagonizou.

Tal tentativa de achincalhamento público fez-me, em todo ocaso, reavaliar, desde então, o que pensava das estórias contadas por outros, e que eu, de algum modo, menosprezava.

Contudo, se, na busca de novas e mais eficazes soluções para os problemas da Justiça penal, cedermos aos encargos levianos trazidos por estas e outras bem mais sérias estórias, serão os populistas de todo o género e inspiração, que, mais cedo do que tarde, enterrarão o Estado de Direito e a Democracia.   

Olhar a realidade de frente: A necessária, mas inegavelmente difícil, relação entre as magistraturas e a polícia, no âmbito da investigação criminal judicializada


O poder de gerir o modo e o momento da realização das diligências para a aquisição de elementos de prova, escapam, em princípio, às magistraturas que promovem ou autorizam as diligências a isso destinadas.


1. Um dos problemas mais delicados relativamente às atribuições e competências que na jurisdição penal exerce o Ministério Público (MP) é o que respeita às relações funcionais entre esta magistratura e os Órgãos de Polícia Criminal (OPC) e, mormente, a Polícia Judiciária (PJ).

Um sistema constitucional, como o nosso, em que o exercício da ação penal cabe, em primeira mão, ao MP (uma autoridade judiciária) implica uma relação clara entre este e a polícia, que deve cumprir as diligências ordenadas por esta magistratura ou, a pedido dela, pelo juiz de instrução criminal (JIC).

De um lado temos, portanto, duas magistraturas independentes do poder político e, do outro, um órgão de polícia (PJ) que depende organicamente do Governo.

Diz, com efeito, o artigo 3º n.º 2, do DL n.º 137/2019, de 13 de setembro (atualizado) referente à Estrutura Organizacional da Polícia Judiciária:

“(…) a PJ atua no processo sob a direção das autoridades judiciárias e na sua dependência funcional, sem prejuízo da respetiva organização hierárquica e autonomia técnica e tática.”

A referência à “autonomia técnica e tática” da PJ é, depois, repetida, algumas vezes, ao longo do referido diploma.

Não sendo dispensáveis, tal como levados à prática, tais conceitos criam, contudo, problemas e, de quando em vez, suscitam mesmo melindres.

Sem entrar em elucubrações teóricas, diria, simplesmente, que tal norma vem sendo interpretada como permitindo àquela polícia determinar o “timing” da execução das diligências investigatórias nos processos em que, por lei, lhe são deferidas as competências investigatórias e, bem assim, nos processos em que, não tendo tal competência, se lhe pede, também, colaboração para a execução de medidas concretas de investigação.

Assim, de modo algo simplista, afirmaria que, se ao MP compete, direta ou indiretamente, dirigir estrategicamente a investigação, à PJ incumbe, em geral e, com destaque nos crimes da sua competência exclusiva, determinar os meios a usar nas diligências de obtenção de prova, o número de agentes que nelas devem intervir e o momento da sua realização: nisto se traduz, afinal, a sua autonomia técnica e tática.

Pelo que, agindo, embora teoricamente, sob a orientação funcional do MP ou do juiz, o poder de gerir o modo e o momento da realização das diligências de aquisição de elementos de prova escapam, em princípio, às magistraturas que, respetivamente, determinam, promovem ou autorizam tais diligências.

Isso pode inviabilizar, de certo modo, em algumas circunstâncias, a orientação estratégica da investigação que compete ao MP determinar.

Note-se que ao MP não basta – ou não deveria bastar – uma verdade que possa apenas ser exibida em público.

A função do MP não se dirige, no essencial, a caucionar a segurança dos cidadãos, mas, agindo depois do crime ocorrido, a permitir que os tribunais façam Justiça, 

A verdade que ao MP importa – ou deveria importar – é, pois, sobretudo, aquela que pode ser comprovada em julgamento: nesta particularidade se situa, também, a desigual preocupação com os métodos de aquisição de elementos de prova entre esta magistratura e a PJ.

À PJ, como a qualquer polícia, importa – tratando-se, em especial, de criminalidade grave – garantir, antes do mais, o sentimento de paz pública.

Neste plano, é-lhe fundamental exibir, publicamente e quanto antes, a descoberta dos criminosos e a sua detenção, garantindo, deste modo, aos cidadãos a cessação da atividade criminosa: daí, também, a sua generosa política própria de informação pública sobre os casos em que intervém.

Só depois surgem, naturalmente, as preocupações de natureza mais processual com a validade dos métodos de recolha dos elementos de prova necessários à realização da Justiça em tribunal.

Essa, pelo contrário, é – ou deveria ser – uma preocupação predominante do MP.

É aqui que, portanto, se cruzam e confrontam, frequentemente, orientações e objetivos de intervenção entre esta magistratura e a PJ no decurso das investigações.

Tal configuração de poderes e competências e, bem assim, o sentido de oportunidade na realização das diligências de investigação – sobretudo quando a PJ age, mais livremente, no âmbito das competências delegadas por lei –, não raro cria, pois, fricções com a autoridade judiciária ou judicial que titula, nesse momento, o inquérito.

Essa questão, mesmo que nunca assumida e revelada, é uma das razões que tem levado por vezes o MP a atribuir a investigação a outros órgãos de polícia criminal (OPC) que aceitam seguir, mais regradamente, as diretivas dos procuradores titulares dos processos. 

Compreende-se, por isso, que a opinião pública informada pelos media – que não a esclarecem, todavia, destas muito particulares questões – acabe por atribuir ao MP iniciativas de ação que a ele, na realidade, não compete tomar e que, em alguns casos, não conhece e, em rigor, lhe escapam.

Há com efeito, uma zona cinzenta, nesta matéria que importaria urgentemente clarificar.

Tal elucidação, e a consequente resolução dos desacordos que gera, poderia passar, no entanto, pela exigência obrigatória de uma maior intervenção da hierarquia do MP no plano processual.

Uma intervenção não casuística, mas estatuída em termos gerais e a definir prudentemente – ou pelo legislador, ou pelos órgãos superiores o MP -, num regulamento geral das procuradorias.

A razão de ser desta proposta – mesmo que ainda não amadurecida teoricamente – funda-se nas exigências ditadas pela mais pura das realidades e na mais crua das exigências.

Ela resulta da necessidade, que não raro existe, de o procurador titular do inquérito – que, inevitavelmente, tem de manter uma relação próxima com os inspetores da PJ e os investigadores de outros OPC -, se poder socorrer, deste modo, do argumento da autoridade para, sem criar conflitos pessoais desnecessários com aqueles, intervir pronta e ponderadamente sobre tais opções da polícia.

Só deste modo, se pode evitar que o momento escolhido para realizar certas diligências ponha em causa a estratégia geral da investigação delineada pelo MP, tendo em vista o julgamento do caso e acautelar, ainda, outros interesses específicos da investigação que importam, em especial, à Justiça preservar.

Ajudará, ainda, a evitar que se crie na opinião pública uma ideia falsa dos verdadeiros motivos da investigação e, ainda, dos que conduzem, ou devem obstar, à concretização de certas diligências em momentos objetivamente sensíveis para o normal funcionamento das instituições democráticas.

2. Acontece, todavia, que procuradores mais novos e menos experientes são colocados, frequentemente, em situações melindrosas e, para eles – entregues a si próprios -, de difícil superação.

Necessitando, obviamente, do apoio dos OPC para levarem por diante as investigações, consideram (alguns) de melhor política institucional, não contrariar frontalmente quem, de facto, tem todo o poder sobre a gestão dos meios humanos e materiais para concretizar diligências essenciais à investigação.

Ficam, pois, paradoxalmente, numa posição de dependência de facto ante aqueles que, de acordo com a lei, deveriam dirigir.

Sejamos claros, quem, na verdade, detém os meios humanos e materiais para concretizar as operações que visam coligir elementos de prova de mais difícil alcance é quem opta e decide – na prática – a política criminal.

A consagração legal da autonomia técnica ou tática da PJ – órgão dependente do executivo – permite, assim, opções e soluções que podem, em muitos casos, condicionar o destino do inquérito.

Tais opções, escapam e, por vezes, fintam mesmo, na prática, os poderes processuais das magistraturas na condução dos inquéritos.

Neste contexto, a evidentemente necessária “negociação” do uso e do momento do uso de tais meios de investigação, de que o MP não dispõe (nem o juiz), só pode, pois, resultar de uma determinação com autoridade e peso suficiente por parte do superior hierárquico do magistrado titular do processo e, se necessário, caso persistam os desentendimentos, de procuradores com posições na hierarquia desta magistratura mais levados.

Sem reforçar os poderes de direção funcional do MP no inquérito (e do JIC), fazendo intervir, obrigatória e responsabilizantemente a sua hierarquia na barganha, em que, demasiadas vezes, se torna a discussão sobre a oportunidade e prioridade no uso e no momento do uso dos meios operacionais necessários a uma concreta investigação, parece difícil atribuir e, mais, exigir toda a responsabilidades do que depois sucede apenas ao MP.

A solução diferente – que não advogamos – seria, como de  certa forma acontecia no antigo regime, a de fundir o MP na PJ, mas isso arredaria, de vez, a autonomia do MP e o seu dever de objetividade na condução dos inquéritos tendo em vista possibilitar um julgamento justo: daria, enfim, por outro lado, ao poder político, e a quem o ocupasse, a direção efetiva da ação penal.

A não ser que, como, em importante e recente documento, sugerem os procuradores-gerais adjuntos Maria José Morgado e Euclides Dâmaso  – na Sábado de 24/4/24 – , se encarregue, no essencial, a PJ de toda a responsabilidade da investigação por crimes graves, distanciando-se e quedando-se o MP na função principal de controlo ativo da legalidade da ação investigativa desta polícia, aceitando, que, no final, possa tal caso, ser ou não, levado a a julgamento, como acontece com o inglês Crown Prosecution Service.

Só que este – concorde-se ou não com ele – não é, mesmo que mitigado, o modelo que domina no espaço da UE e que, além disso, inspirou o Procurador Europeu.      

3. O MP é hoje, em Portugal – relembre-se -, o órgão que nos tribunais está  constitucionalmente encarregado de participar na execução da política criminal definida, legalmente, pelos órgãos de soberania e de exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade; leia-se: obrigatoriedade de, sem prejuízo das prioridades estabelecidas por lei, dar seguimento a todas as queixas e notícias do crime dignas desse nome, decidindo, no fim e de acordo com os factos apurados e a lei, o destino a dar aos autos.

É verdade que somos, hoje, confrontados com estórias singulares que, para tristeza de todos – embora sempre tenham ocorrido – se sabe sucederem, agora, com uma inusitada frequência.

Guardo, porém, na memória, uma boa seleção de antigas estórias igualmente desastrosas, que, embora podendo ilustrar esta afirmação, não devem, neste contexto, ser ainda reveladas, por receio de poderem ser deseducativas.

O conhecimento público das estórias mais recentes pode resultar de maior transparência e atenção dos media em relação aos assuntos da Justiça – que hoje, bem ou mal, toca com mais frequência poderes dantes intocáveis – ou, também, em alguns casos, da menor experiência de vida e envolvimento cívico com a defesa da Democracia de alguns magistrados, que são, na ausência de uma referência e suporte hierárquico, colonizados, isso sim, por uma cultura da investigação tipicamente policial.

Além de que, o não acompanhamento em julgamento dos casos que investigam afasta-os, irremediavelmente, dos valores próprios da cultura judicial.

A intensidade absorvente e o consequente afunilamento da vida universitária atual e a aparente neutralidade ideológica da escola da magistratura, terão, também, nesse alheamento dos princípios e valores que regem a Justiça, alguma responsabilidade.  

4. Se queremos, porém, com seriedade – e independentemente das razões e emoções que assistem a quem hoje, não sendo jurista, manifesta tal interesse nestas matérias – discutir e aperfeiçoar a Justiça penal e, nela, o modelo de investigação judicializada existente entre nós, não podemos meter a cabeça entre as orelhas e, prudentemente, ignorar a realidade das coisas, tal como ela é.

Tal como ela é e, realce-se, a quis – mesmo que advertido dos riscos que corria – o legislador ordinário.

Daí que, muitas leis, diretivas e propostas de reforma sejam, porém, frequentemente destinadas a, antes do mais, equilibrar interesses, preconceitos e estórias de agravos, do que a resolver problemas que a realidade tornou evidentes.

Recordo, a propósito, a criação de um tribunal que, não obstante a sua constitucionalidade duvidosa, nasceu de uma emulação corporativa, mesmo que, antes do nascimento, e no desenho que dele, então, foi feito, lhe tivessem sido logo apontados os problemas que criaria e que, de facto, acabou por criar.

Muitas de tais propostas ignoram, pois, manifestamente – e nunca saberemos se de propósito, ou a que propósito – a realidade que se considera necessário mudar.

E, sem esta bem focada, nada de útil poderá sair das mudanças que todos queremos eficazes, mas também respeitadoras dos direitos humanos.

O perigo que, nos agitados, confusos e perigosos dias de hoje, todos corremos é, todavia, o de, desta forma, basear as reformas que muitos de nós – profissionais do foro e cidadãos – consideram necessárias, nas anedotas, mais ou menos trágicas, que a cada um de nós, ou aos nossos amigos, já aconteceram.

A mim, embora na qualidade de testemunha, aconteceu-me – admito – um episódio supinamente ridículo, mas que denotava já a ascendência crescente de um perigoso e inadmissível sentimento de arrogância e hostilidade corporativa por parte de alguns jovens justiceiros; enfim, talvez revelasse, apenas, a má educação de quem, no tribunal, o protagonizou.

Tal tentativa de achincalhamento público fez-me, em todo ocaso, reavaliar, desde então, o que pensava das estórias contadas por outros, e que eu, de algum modo, menosprezava.

Contudo, se, na busca de novas e mais eficazes soluções para os problemas da Justiça penal, cedermos aos encargos levianos trazidos por estas e outras bem mais sérias estórias, serão os populistas de todo o género e inspiração, que, mais cedo do que tarde, enterrarão o Estado de Direito e a Democracia.