A história não se repete, mas às vezes rima estranhamente


Se olharmos para o mapa das democracias no mundo, verificaremos que, com a exceção da Índia, cada vez menos excecional, a democracia está presente apenas ou quase só, nos países que integram o referido “Ocidente”.


Comecemos pelas praias da Normandia onde os antigos aliados celebraram há dias os 80 anos do célebre desembarque de 6 de junho de 1944. Estavam todos presentes, menos os russos. Não há maneira de dar a volta ao texto: como seria possível convidar Vladimir Putin, o ditador psicopata, quando ele tem um mandato de captura internacional às costas? Como seria possível convidá-lo no momento em que as forças russas prosseguem uma guerra de agressão contra a Ucrânia, essa sim, nossa aliada e amiga?

Em 1944 a Europa estava em guerra, uma guerra brutal a que chamamos a segunda guerra mundial, mesmo mundial, porque além da Europa, desenrolou-se no Norte de África e médio oriente e na Ásia.

A guerra asiática (em que Portugal, muito contra a sua vontade, participou, com a ocupação de Timor pelos Japoneses) começou de facto em 1937, na China, com a agressão japonesa que primeiro ocupou o norte da China, depois Xangai, e depois toda a China Central, incluindo Nanking, a capital da China.

Foi esta guerra de agressão japonesa a um país que os americanos consideravam amigo, bem como a ocupação japonesa da Indochina francesa, em 1940, que determinou que os EUA tenham decretado um embargo às exportações de petróleo e seus derivados, bem como minério de ferro, para o Japão.

O estrangulamento que este embargo ocasionou à economia japonesa, foi a principal causa da guerra de agressão que o Império Japonês iniciou na Ásia, tendo em poucos meses, entre 8 de dezembro de 1941 e março de 1942, atacado e ocupado um imenso círculo de terras e arquipélagos (Malásia, Birmânia, Indochina, Filipinas, Indonésia, e por aí fora até quase chegarem a norte à Índia e a sul à Austrália). Os americanos, os ingleses e os australianos demoraram os quatro anos seguintes a desalojá-los dessas conquistas, à custa de milhões de mortos e destruições sem fim.

Na Europa, o desembarque da Normandia permitiu abrir uma terceira frente contra o império hitleriano (a leste a Rússia batalhava há anos e a Itália já era um campo de batalha) e abrir uma via direta para Berlim, através do norte da França, Bélgica, Holanda e Alemanha).

A guerra na Europa acabou em abril de 1945, depois de sofrimentos infindos e mortes sem fim, uma verdadeira hecatombe a que os historiadores chamaram o Armaguedão.

O que é que se ganhou? A derrota do nazismo e do fascismo, o fim de duas tiranias desumanas, o fim da ideia de que a força faz a razão e quem mais pode mais manda.

O mundo subsequente foi um mundo baseado em regras e leis internacionais, um mundo em que o direito internacional se propunha substituir a força.

Mas esse mundo começou a desfazer-se debaixo dos nossos olhos: a agressão russa à Ucrânia, depois da ocupação da Crimeia, à qual mal reagimos, as permanentes ameaças do chineses aos seus vizinhos, que procuram intimidar e condicionar, a ameaça de invasão de Taiwan, presente desde há anos, as variadas intervenções armadas que a Rússia de Putin foi fazendo nos seus vizinhos e antigos participantes na União Soviética, a forma descarada como se comportou na Síria, onde por sua vez os turcos agem como se estivessem ainda no império Otomano…

O respeito pelas regra desvanece-se perante os nossos olhos, os fracos estão cada vez mais à mercê dos fortes, a ameaça nuclear protege os agressores da reação dos terceiros, invertendo o paradigma da guerra fria que consistia na dissuasão mutua através do sistema MAD (mutual assured destruction).

Por seu turno, os EUA tornam-se numa nação cada vez mais propensa ao isolacionismo, mais fechada sobre si própria, sobre os seus próprios demónios. O “Ocidente” como entidade, parece cada vez mais uma ficção.

No entanto, se olharmos para o mapa das democracias no mundo, verificaremos que, com a exceção da Índia, cada vez menos excecional, a democracia está presente apenas ou quase só, nos países que integram o referido “Ocidente”. É muito pouco, mas por ser tão pouco, mais precioso e digno de preservação e carinho.

O caminho que seguimos desde as praias da Normandia até hoje, pejado de gente que morreu pela nossa liberdade, impõe-nos que olhemos com desvelo e, se necessário, sacrifício, para a preservação das nossas democracias, dos nossos estados de direito e até, dos nossos estados sociais, sendo que hoje é indissociável da democracia a ideia dos direitos que a sociedade atribui a cada um, de entre os quais, o direito à habitação, à saúde, à educação, a um trabalho digno e decentemente remunerado, à liberdade de cada um dispor de si próprio e da sua própria vida, de constituir família como melhor entender, de amar como melhor lhe convier, e tantos outros direitos que constituem o nosso “acquis democrático”, do qual não devemos nem podemos prescindir.

Neste mundo, a Europa, com todos os seus consabidos defeitos e demónios históricos, é um farol de liberdade e estabilidade. Ou uma ilha…

Cabe-nos a nós proteger, não a nossa insularidade ou uma qualquer “fortaleza Europa”, mas os nossos direitos e valores.

Cabe-nos protegê-los dos Putins, dos Xis e dos Trumps deste mundo, e para isso temos de ser mais fortes, mais bem armados, mais capazes de proteger os nossos amigos e aliados. Nos anos que antecederam a segunda guerra mundial, em Inglaterra, Churchill procurou por todos os meios convencer os seus compatriotas a armarem-se. A única coisa que conseguiu foi uma profunda renovação da Royal Air Force (RAF), decisiva na vitória da batalha de Inglaterra. Os colapsos iniciais das forças aliadas deveram-se em grande medida à impreparação e falta de compreensão do caráter inerentemente agressivo do regime nazi. É nisso que estamos hoje. Impreparação e aparente falta de compreensão dos atuais regimes russo e chinês.

Tenhamos presente que aqueles que hoje apelam à “paz”, são os mesmos que no início dos anos oitenta declaravam que era melhor ser vermelho do que morto, numa alusão a uma eventual defesa de um ataque da União Soviética.

Quando olhamos para a guerra da Ucrânia, temos tendência a esquecer que Hitler, a princípio declarava que “só” queria a integração da Áustria no Reich, “só” queria a integração no Reich dos alemães étnicos dos Sudetas, “só” queria o fim do corredor de Dantzig, que dividia as Alemanhas ocidentais da Prússia Alemã de leste. “Só” queria essas coisas, até fazer deflagrar uma guerra mundial.

Lembremo-nos hoje das lições da história. A história não se repete, mas por vezes rima estranhamente.

Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça,
Subscritor do Manifesto por uma Democracia de Qualidade

A história não se repete, mas às vezes rima estranhamente


Se olharmos para o mapa das democracias no mundo, verificaremos que, com a exceção da Índia, cada vez menos excecional, a democracia está presente apenas ou quase só, nos países que integram o referido “Ocidente”.


Comecemos pelas praias da Normandia onde os antigos aliados celebraram há dias os 80 anos do célebre desembarque de 6 de junho de 1944. Estavam todos presentes, menos os russos. Não há maneira de dar a volta ao texto: como seria possível convidar Vladimir Putin, o ditador psicopata, quando ele tem um mandato de captura internacional às costas? Como seria possível convidá-lo no momento em que as forças russas prosseguem uma guerra de agressão contra a Ucrânia, essa sim, nossa aliada e amiga?

Em 1944 a Europa estava em guerra, uma guerra brutal a que chamamos a segunda guerra mundial, mesmo mundial, porque além da Europa, desenrolou-se no Norte de África e médio oriente e na Ásia.

A guerra asiática (em que Portugal, muito contra a sua vontade, participou, com a ocupação de Timor pelos Japoneses) começou de facto em 1937, na China, com a agressão japonesa que primeiro ocupou o norte da China, depois Xangai, e depois toda a China Central, incluindo Nanking, a capital da China.

Foi esta guerra de agressão japonesa a um país que os americanos consideravam amigo, bem como a ocupação japonesa da Indochina francesa, em 1940, que determinou que os EUA tenham decretado um embargo às exportações de petróleo e seus derivados, bem como minério de ferro, para o Japão.

O estrangulamento que este embargo ocasionou à economia japonesa, foi a principal causa da guerra de agressão que o Império Japonês iniciou na Ásia, tendo em poucos meses, entre 8 de dezembro de 1941 e março de 1942, atacado e ocupado um imenso círculo de terras e arquipélagos (Malásia, Birmânia, Indochina, Filipinas, Indonésia, e por aí fora até quase chegarem a norte à Índia e a sul à Austrália). Os americanos, os ingleses e os australianos demoraram os quatro anos seguintes a desalojá-los dessas conquistas, à custa de milhões de mortos e destruições sem fim.

Na Europa, o desembarque da Normandia permitiu abrir uma terceira frente contra o império hitleriano (a leste a Rússia batalhava há anos e a Itália já era um campo de batalha) e abrir uma via direta para Berlim, através do norte da França, Bélgica, Holanda e Alemanha).

A guerra na Europa acabou em abril de 1945, depois de sofrimentos infindos e mortes sem fim, uma verdadeira hecatombe a que os historiadores chamaram o Armaguedão.

O que é que se ganhou? A derrota do nazismo e do fascismo, o fim de duas tiranias desumanas, o fim da ideia de que a força faz a razão e quem mais pode mais manda.

O mundo subsequente foi um mundo baseado em regras e leis internacionais, um mundo em que o direito internacional se propunha substituir a força.

Mas esse mundo começou a desfazer-se debaixo dos nossos olhos: a agressão russa à Ucrânia, depois da ocupação da Crimeia, à qual mal reagimos, as permanentes ameaças do chineses aos seus vizinhos, que procuram intimidar e condicionar, a ameaça de invasão de Taiwan, presente desde há anos, as variadas intervenções armadas que a Rússia de Putin foi fazendo nos seus vizinhos e antigos participantes na União Soviética, a forma descarada como se comportou na Síria, onde por sua vez os turcos agem como se estivessem ainda no império Otomano…

O respeito pelas regra desvanece-se perante os nossos olhos, os fracos estão cada vez mais à mercê dos fortes, a ameaça nuclear protege os agressores da reação dos terceiros, invertendo o paradigma da guerra fria que consistia na dissuasão mutua através do sistema MAD (mutual assured destruction).

Por seu turno, os EUA tornam-se numa nação cada vez mais propensa ao isolacionismo, mais fechada sobre si própria, sobre os seus próprios demónios. O “Ocidente” como entidade, parece cada vez mais uma ficção.

No entanto, se olharmos para o mapa das democracias no mundo, verificaremos que, com a exceção da Índia, cada vez menos excecional, a democracia está presente apenas ou quase só, nos países que integram o referido “Ocidente”. É muito pouco, mas por ser tão pouco, mais precioso e digno de preservação e carinho.

O caminho que seguimos desde as praias da Normandia até hoje, pejado de gente que morreu pela nossa liberdade, impõe-nos que olhemos com desvelo e, se necessário, sacrifício, para a preservação das nossas democracias, dos nossos estados de direito e até, dos nossos estados sociais, sendo que hoje é indissociável da democracia a ideia dos direitos que a sociedade atribui a cada um, de entre os quais, o direito à habitação, à saúde, à educação, a um trabalho digno e decentemente remunerado, à liberdade de cada um dispor de si próprio e da sua própria vida, de constituir família como melhor entender, de amar como melhor lhe convier, e tantos outros direitos que constituem o nosso “acquis democrático”, do qual não devemos nem podemos prescindir.

Neste mundo, a Europa, com todos os seus consabidos defeitos e demónios históricos, é um farol de liberdade e estabilidade. Ou uma ilha…

Cabe-nos a nós proteger, não a nossa insularidade ou uma qualquer “fortaleza Europa”, mas os nossos direitos e valores.

Cabe-nos protegê-los dos Putins, dos Xis e dos Trumps deste mundo, e para isso temos de ser mais fortes, mais bem armados, mais capazes de proteger os nossos amigos e aliados. Nos anos que antecederam a segunda guerra mundial, em Inglaterra, Churchill procurou por todos os meios convencer os seus compatriotas a armarem-se. A única coisa que conseguiu foi uma profunda renovação da Royal Air Force (RAF), decisiva na vitória da batalha de Inglaterra. Os colapsos iniciais das forças aliadas deveram-se em grande medida à impreparação e falta de compreensão do caráter inerentemente agressivo do regime nazi. É nisso que estamos hoje. Impreparação e aparente falta de compreensão dos atuais regimes russo e chinês.

Tenhamos presente que aqueles que hoje apelam à “paz”, são os mesmos que no início dos anos oitenta declaravam que era melhor ser vermelho do que morto, numa alusão a uma eventual defesa de um ataque da União Soviética.

Quando olhamos para a guerra da Ucrânia, temos tendência a esquecer que Hitler, a princípio declarava que “só” queria a integração da Áustria no Reich, “só” queria a integração no Reich dos alemães étnicos dos Sudetas, “só” queria o fim do corredor de Dantzig, que dividia as Alemanhas ocidentais da Prússia Alemã de leste. “Só” queria essas coisas, até fazer deflagrar uma guerra mundial.

Lembremo-nos hoje das lições da história. A história não se repete, mas por vezes rima estranhamente.

Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça,
Subscritor do Manifesto por uma Democracia de Qualidade