Manuel Alves. Um génio da moda

Manuel Alves. Um génio da moda


1952-2024. Um designer inovador e criativo.


Era considerado por muitos um génio. Era criativo e inovador. Há 10 anos, numa entrevista ao Só Visto, na RTP, a propósito do Portugal Fashion, admitia que não gostava muito de falar para as câmaras, apesar de ser um dos designers mais conhecidos do país. Defendia que a moda é um negócio e que, quem não entende isso, não deve ficar no ramo. Além disso, acreditava que o designer tem de vivenciar o mundo. «A moda pressupõe que o seu autor tenha experiências cognitivas, experiências do ponto de vista da expressão dos seus sentidos, de modo a que possa entender o seu universo», afirmava numa entrevista ao Jornal Têxtil em 2017. Por isso, para si, o mais importante era «adquirir conhecimento em todas as áreas possíveis». «Depois é ser muito trabalhador, ter aquela fibra de desejo, uma ambição, de poder fazer-se valer no mundo – esse desejo tem de ser autêntico», acreditava.

O designer português Manuel Alves, da dupla de moda Alves/Gonçalves que ficou conhecida como «os Manéis», morreu na terça-feira, aos 72 anos, no Hospital da Luz, vítima de cancro. «No coração dos seus familiares, amigos, alunos e clientes fica a memória do seu espírito livre e da estética irrepreensível que o transformaram numa referência incontornável da moda em Portugal», escreveu o atelier Alves/Gonçalves em comunicado.

40 anos de sucesso

Recorde-se que foi em 1984 que Manuel Alves estabeleceu dupla com José Manuel Gonçalves. Os dois abriram duas lojas de roupa no Bairro Alto, em Lisboa. Nessa altura, comercializavam as suas coleções masculinas e femininas. Passado um ano, o par lançou a primeira coleção em conjunto, apresentando as suas propostas no Palácio do Correio Velho. E esse foi apenas o início de muitas apresentações ao longo de 40 anos. Pouco tempo depois, já eram conhecidos em todo o país. Os artistas vestiram a elite nacional, várias personalidades conhecidas como Alexandra Lencastre e Bárbara Guimarães e cantores que se apresentaram na Eurovisão. Desenharam uniformes para várias empresas como a TAP e a Vodafone, figurinos para o cinema, teatro e bailado, criaram uma linha de cerâmica e uma outra de joias e de acessórios. Em 2008, criaram um selo para os Correios de Portugal.

Segundo o site oficial da marca – com a qual apresentaram coleções em ambas as semanas de moda nacionais, tanto na ModaLisboa como no Portugal Fashion –, além do seu percurso como criadores «trabalharam com a indústria, mais precisamente entre 1989 e 1992, criando várias marcas para o mercado nacional e internacional». «Como convidados do então ICEP, em 1993/94 e 95, os dois apresentaram coleções no Salão Gaudi, em Barcelona. No currículo internacional destacam-se ainda as presenças no SEHM e na IGEDO. No mesmo âmbito , foram convidados para ações de divulgação da moda portuguesa em Londres, Copenhaga e Washington», acrescenta o texto.

Tal como revelaram numa entrevista à F Luxury, a dupla não tinha regras no seu processo criativo. «Existe um planeamento ao qual ambos obedecemos», explicaram. Interrogados sobre se conseguiam definir com um estilo, os artistas afirmaram que preferiam que fossem os outros a identificá-lo. «Da nossa parte é só fazer aquilo de que mais se gosta», responderam. Nessa mesma conversa, admitiram ainda não acreditar em «moda nacional». «Acreditamos em pessoas cujo trabalho tem interesse independentemente da nacionalidade. Acreditamos que existem trabalhos periféricos, e quando se juntam periferias de diferentes nacionalidades, consegue-se um grande registo de trabalho», frisaram. A dupla lecionou design de moda na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa até 2013.

A exigência do artista

Manuel Alves nasceu em Montalegre, no distrito de Vila Real (Trás-os-Montes) e estudou Gestão. Segundo o próprio, foi parar ao mundo da moda por acidente. «Fui sempre um apaixonado por moda, e em determinada altura da minha vida tive oportunidade de conhecer muitas pessoas ligadas ao setor», recordava em 2001, numa conversa com o Público, lembrando ainda que os anos 70 foram um período de grande explosão da indústria a norte.

Até 1983 – antes de entrar no universo da moda de autor –, teve lojas de roupa para homem no Porto. Insatisfeito com as limitações da Invicta, viajou depois até à capital onde abriu uma loja no Bairro Alto. «O Porto não era só limitado por não se poder ir além do que sistematicamente se oferecia: não havia público que apostasse noutro tipo de proposta. A inovação tinha limites, e a mim não me apetecia ter limites», explicava à mesma publicação. Foi em Lisboa que surgiram as coleções femininas em parceria com José Manuel Gonçalves, dez anos mais novo. Os dois artistas eram muito exigentes no seu trabalho. Manuel Alves chegou mesmo a desmanchar um vestido de alta-costura Dior, da avó de uma cliente, para perceber «como é que aquela caixa era feita». No ano passado, naquela que foi a sua última entrevista recordava que era maravilhoso, porque «não se viam as varetas!».

Os designers estudaram Madame Vionnet, Yves Saint Laurent e as construções de Balenciaga. «Olhava para uma fotografia e dizia: ‘Eu consigo fazer’. E tentava, tentava até conseguir», garantia. Por isso, apostaram em peças estruturadas e viés. «Porque durante dois ou três dias o tecido está a descansar, porque é alinhavado de cima para baixo, e depois é que se passa para a mesa, são técnicas… Em Portugal, as pessoas tiveram pouco tempo para aprender, não sabem fazer e não entendem o trabalho que dá», lamentava. Além disso, Manuel Alves era bastante crítico da forma como os portugueses olham para a moda e desvalorizam as criações portuguesas. Para si, os designers portugueses não tinham impacto nas passadeiras vermelhas. «Continua a haver um deslumbramento muito grande com as marcas estrangeiras. A não ser quando há uma grande festa e não arriscam levar um vestido que outra convidada possa levar, aí vão ter com um designer de moda», queixava-se, argumentando que a moda de autor continuava a ser procurada unicamente para ocasiões especiais. «A maioria das pessoas quer é a marca, não o vestido», frisava, acrescentando que no país, «as pessoas só fazem roupa para festas, para o casamento e o aniversário». A dupla recebeu um Globo de Ouro Personalidade de Moda.