Thomas Bernhard. Um leitor carnívoro

Thomas Bernhard. Um leitor carnívoro


“Toda a minha vida não fiz outra coisa senão arranjar problemas”, escreveu certa vez o mais blasfemo dos autores austríacos. “Não sou o tipo de pessoa que deixa os outros em paz”. Esta nota deve vir à cabeça para que ninguém vá ao engano ao abrir alguma das páginas desse escândalo contínuo que foi a…


Hoje, para se ler certos escritores, seria essencial exigir uma ética da leitura. Isto se se quiser assumir algum do risco que eles nos impõem, alguma da vergonha e do horror, e se for entendido como este pode ser um gesto cúmplice, deixando que, pelo menos de forma temporária, nos atravesse e comova a sua convicção mais profunda. Sabemos como essa classe a que vulgarmente se chama a burguesia, já não sustenta a sua grande literatura, indispôs-se por fim, virou-lhe costas e procurou libertar-se das suas recriminações. Sabemos também como as formas de censura se alteraram nas últimas décadas. Num dos seus ensaios, Maurice Blanchot nota como houve um período em que Baudelaire foi condenado, e a este sucedeu um outro em que passou a ser aceite, atraído para a Academia; um período em que Trotsky é assustador e não tem outro companheiro na literatura além de André Breton, e, depois, um período em que, enquanto revolucionário, ainda seria assustador, mas se vê reverentemente acolhido no Panteão dos escritores, tranquilizando-nos nesse papel de uma morte bela e pacífica.

Este tão escrupuloso crítico denunciou como, a partir de certa altura, a nossa forma de exclusão de um escritor ou de uma obra, o modo como dele nos defendemos, passa precisamente por essa tentativa de assimilar tudo, de tal modo que o que importa já não é a sua distância radical face ao resto da sociedade, pois quando o glorificamos, na verdade, o que estamos é a glorificar o nosso dom de compreensão universal. Através desse regime de unificação para a qual coopera cada sociedade e cada cultura, há um esforço de confiscar uma obra que nos desafia e perturba, lançar sobre ela essa incompreensão de tudo o que escapa à unidade, tudo o que nela as agride. Trata-se de um modo subtil e perverso de neutralizar essas obras, dando a impressão de que, ao anexá-las, se fez do poder de contestação infinita da literatura um cúmplice.

Como nos diz Blanchot, no final de um dia de televisão, através de um programa habilmente preparado (e aqueles que o preparam mostram-se sempre um tanto confusos, uma vez que trabalham dentro de um sistema, e é o sistema que está consciente), quando, depois de ter prestado atenção ao interrogatório manhoso de um escritor que pensa que é uma boa ideia falar sobre o que escreveu sem dar-se conta da armadilha em que está a cair, e de como isso mesmo o torna inofensivo, depois de ter ouvido um comentário político, discreto ou indiscreto, depois de ter assistido a uma sucessão de propostas mais ousadas ou insignificantes, o espectador vai para a cama dizendo para si mesmo que foi um bom dia, mas que, na verdade, nada aconteceu, e assim se alcançou o resultado pretendido. “Que ocorram eventos interessantes e até relevantes e, no entanto, que nada possa acontecer que nos perturbe é esta a filosofia de todo o poder estabelecido e, por trás dela, de todo o serviço cultural. Entretanto, é essencial que as obras turbulentas possam cooperar para que se alcance este resultado, para que a própria turbulência possa ser pacificada e transformada num motivo de interesse, num tema de entretenimento.”

Algo de semelhante nos é descrito e analisado em profundida pelo filósofo alemão Peter Sloterdijk, na sua Crítica da Razão Cínica: “Consideramos hoje normal encontrar nas nossas revistas – quase como num velho teatro do mundo – todos os domínios justapostos de uma forma contrastada: narrativas sobre a morte de massas no Terceiro Mundo entrecortadas por anúncios ao champanhe, reportagens sobre catástrofes ecológicas lado a lado com o último salão do automóvel. Os nossos cérebros estão treinados a sobrevoar com o olhar um campo de indiferenças de uma amplidão enciclopédica – em que o assunto tratado não é indiferente em si mesmo mas pela sua integração no fluxo de informações dos media. Sem se treinar durante muitos anos a embrutecer-se e a amolecer, nenhuma consciência humana poderia lidar com o que lhe impõem imagens e textos de uma única revista volumosa; e sem um exercício intenso, nenhum homem suportaria, sem arriscar a aparição de sintomas de desintegração mental, essa constante oscilação de acontecimentos importantes e de acontecimentos insignificantes, essas marés cheias e vazas das notícias que tanto pedem uma atenção extrema para, logo depois, estarem totalmente desactualizadas.”

Seríamos tentados a pedir desculpas pela extensão destas passagens transcritas, não fossem elas momentos cruciais da leitura da sentença que nos vem conduzindo a uma pena capital, todo este enredo carcerário em que vamos sufocando. “Uma tremenda simultaneidade alastra na nossa consciência informe: aqui come-se; ali morre-se. Aqui tortura-se; ali, amantes célebres separam-se. Aqui fala-se da segunda viatura; ali, de uma catástrofe de seca que afecta países inteiros. Aqui, dão-se dicas para pagar menos impostos; ali, há a teoria económica da Escola de Chicago. Aqui milhares de pessoas fazem alvoroço num concerto pop; ali, uma mulher morta jaz no seu apartamento durante anos sem ser descoberta. Aqui dá-se o prémio Nobel da química, da física e da paz; ali, um comboio cai num rio com duas mil pessoas. Aqui nasce a filha de um actor; ali, as avaliações sobre o custo de uma experiência política cifram-se entre meio milhão e dois milhões (de homens). – Such is life. Tudo pode tornar-se notícia, tudo está disponível. O que está no primeiro plano, o que está em pano de fundo, o que é importante, o que não tem importância, o que é tendência, o que é episódico; tudo se integra numa linha uniforme, em que a uniformidade produz também a equivalência e a indiferença.”

Esta é a grande impostura da nossa época, essa obra de unificação que tudo degrada, que derrota o próprio esforço literário, as suas ênfases, esses processos narrativos que despertam a consciência para os desníveis e os mais aviltantes aspectos da realidade. “É neste sentido”, como frisa Blanchot, “que toda a literatura importante nos aparece como uma literatura de madrugada terminal: na sua noite o desastre vigia-nos, mas também nela se conserva sempre uma disponibilidade, ‘uma inclinação do não-eu, uma imaginação paciente nas armas que nos conduz a este estado de recusa incrível’ (René Char)”.

Uma ética da leitura nasce por isso desta recusa em permitir que tudo participe de um mesmo enredo, deixando-nos frios, indiferentes a tudo por igual. De outro modo, o leitor torna-se apenas mais outro agente do processo de neutralização das obras, não sabendo já definir exactamente o que distingue a literatura desse efeito atordoante da reportagem universal: “Assim, quando, de manhã, saio para a rua e os jornais do quiosque me interpelam, só tenho praticamente de escolher a indiferença preferida do dia”, nota Sloterdijk. “A minha escolha recairá neste homicídio ou naquela violação, neste terramoto ou naquele rapto? Todos os dias temos de reivindicar de novo o direito natural de não aprender milhões de coisas. Os media velam por que eu não tenha de recorrer a isso; e, simultaneamente, velam também por que milhões de notícias estejam prestes a atingir-me e eu não tenha de olhar para um título mais do que um instante sem que outra indiferença tenha conseguido atingir a minha consciência. Se conseguir atingir a minha consciência, leva-me também a ter de marcar em mim uma indiferença cínica relativamente à informação que me chegou. Hiperinformado, registo que só posso encolher os ombros ante a maior parte das coisas, pois a minha capacidade de participação, de revolta ou de co-reflexão é mínima relativamente ao que se me propõe e me lança apelo.”

"Estou no fundo de um buraco que os séculos escavaram", escreveu Beckett, e parece que, hoje, estamos todos lá enfiados com ele. Mas este sinal de reconhecimento de uma devastação íntima e coletiva é já qualquer coisa. Cesariny sintetizou esse efeito que produz toda a obra dirigida à consciência: “Rapto desobediência exaltação e morte”. Na tradição, cada escritor bebe esses sinais sediciosos e de ruptura, essas experiências-limite, esses sobressaltos da consciência, e, por isso, como nos diz Maurice Nadeau, “a literatura nasce de novo com cada indivíduo que escreve, e da vontade que ele tem de abolir toda a literatura anterior”. No entender deste outro crítico literário francês, “escrever é instalar-se na recusa, na solidão, acusar toda a escrita anterior, que parece falsa, inadequada, insincera, ‘literária’, no mau sentido da palavra”.

Em todas as épocas, a maioria dos artistas mostram-se demasiado seduzidos pelo poder, colaborando com esses produtos medíocres, entregando-se àquele mecanismo de decomposição sempre dirigido para a totalidade. Na impiedosa “comédia” em que se propõe ler os antigos mestres “de uma forma mais profunda do que é normal e com uma intensidade muito maior do que é normal e com um descaramento muito maior do que é normal”, Thomas Bernhard dedica-se a uma denúncia arrasadora destes processos de glorificação dos grandes artistas, dessa herança de estupefacção e benevolência. Ele aponta para o conteúdo ridículo dessa relação com os vultos e as obras que gozam de um prestígio absoluto, notando como “alguns artistas são simplesmente empolados, até se tornarem monstros que impressionam todo o mundo”. Isto até que, “de súbito, porém, uma cabeça incorrupta penetra nesse monstro impressionante e esse monstro impressionante estoira e desfaz-se em nada”.

Com aquele seu arrebatamento musical, a prosa sustentada e que vai repetindo as mesmas ideias em inúmeras variações, não apenas para obrigar a que a atenção do leitor se detenha, mas para que sinta o ferrete dessas expressões fulcrais, reagindo também assim a esse efeito de dispersão, produzindo uma forma de eloquência absorvente, ele faz questão de crivar a consciência, de tal modo que esses ecos se constituam como um processo de afinação do próprio pensamento, num andamento sinfónico cuidadosamente elaborado, como regista o tradutor José A. Palma Caetano.

O próprio Bernhard se referiu à escrita como um meio de “produzir velocidade”, deixando claro que isto “nada tem a ver com escrever depressa”, mas que é “na escrita mais lentamente trabalhada que se atinge a velocidade absoluta”. Este seu esforço é também uma forma de resgate, pois ao ir modelando e tornando cada vez mais impressivo o efeito das suas frases, fazendo ressaltar o seu conteúdo semântico, Bernhard está a impor-nos a força da sensação contra a fraqueza do pensamento. A intensidade da sua escrita é o resultado de um doloroso investimento numa forma estética que procura articular o discurso como uma arma, de forma a rechaçar essa estrutura imbecilizante dos discursos e noções que hoje engole todos os aspectos da vida em sociedade. No fundo, e compreendendo como a civilização europeia estava prestes a ser devorada por este inferno obtuso que, hoje, nos tem cativos, Bernhard entendeu que teria de se empenhar no resgate do leitor, e percebe que o desafio que a literatura e as artes na generalidade enfrentam hoje é bem mais complexo, uma vez que é preciso produzir uma intensidade capaz de suspender os efeitos de encadeamento de uma indústria que se dirige à própria consciência, asfixiando-a.

Ele empenha-se, por isso, em afastar-se de tudo, como nos diz Ernesto Sampaio, ir sempre na direcção contrária e criar um sistema de pensamento que o proteja da agressão exterior. A arte não é mais um luxo mas uma questão de sobrevivência, de aguentar as investidas incessantes desses mecanismo alienantes que a sociedade coloca diante de nós sob as formas mais variadas e apetecíveis. Aquela intensidade que arrasta tudo, aquela escrita que se nos força com o ímpeto de uma voz criando uma paisagem de angústia tão minuciosa, as suas torrentes impetuosas, tudo isso é um modo de provocar essa interrupção, elevando o leitor a uma outra frequência. E isto é feito levando em conta a imensa dificuldade de superar o ruído do mundo.

Por isso Bernhard enfrenta a linguagem e a criação literária como uma verdadeira guerra, e percebe, como assinalou Michel Schneider, que onde a linguagem escrita não chega, só a música pode encontrar ainda um rumo, desferir um golpe inesperado que rompe com o transe desse inferno de segunda categoria.

Sentimo-lo a cumular esses efeitos como quem avança estrategicamente através dos subúrbios deste inferno que são obra da estupidez, da venalidade e da cupidez humanas. O seu estilo é uma refutação desses ritmos abjectos, do quadro de “imbecilidade à escala do mundo”. E, assim, ele procede como um compositor, absorvido nessas sequências que, precisamente por produzirem uma visão de tal modo angustiante, exigem o recurso aos poderes exaltantes e demenciais da música. “Com minúcias a raiar o neurótico, este experimenta vezes sem conta a independência de uma frase, o equilíbrio da mão sobre o teclado”, refere Ernesto Sampaio. “O seu uso reiterado do ‘ostinato’, da imitação, do ‘fugato’, não resulta apenas de um propósito estilístico, mas da sua formação musical, fundamentada nos estudos que fez de canto, violino e musicologia, e decisiva para a sua concepção narrativa.”

Trata-se de resgatar a atenção degradada de um leitor que foi capturado por uma trama frenética de curiosidades, um efeito cumulativo de informações e relações de factos que se esgotam em si mesmas, e que são incapazes de sustentar um olhar prolongado, vagaroso e crítico. Trata-se de resgatar o leitor ao transe mediático, a esse imenso “pudim de leitura insípido, mas sem dificuldades de digestão”. A prodigiosa articulação dos seus textos esforça-se assim por recuperar o antigo fôlego narrativo, e, deste modo, confia na arte como um modo de restituir-nos à saúde: através da escrita, Bernhard procura uma respiração capaz de se desembaraçar da persistência dessas canções e coros que dão voz à imbecilidade.

A velocidade que ele impõe, aquela cadência repetitiva é própria de um gesto de restauro, uma aplicação meticulosa, que institui “uma espécie de contraponto entre a morte e a palavra”, como nos diz Sampaio. “O seu sentido da arte nada tem a ver com o deleite, mas sim com o sentido da finalidade, já que o próprio escritor se transforma em instrumento para repetir uma palavra quantas vezes forem necessárias, com o propósito de martelar e lacerar um mundo insofrível. Por isso o ‘da capo’ lhe serve para voltar ao coração dos lugares e à presença evocativa de certos objectos, aos quartos dos sanatórios, onde a doença o ajudou a criar uma metalinguagem análoga à da música, isto é, transcrita em valores temporais no âmbito de uma estrutura de vozes, através das quais tenta demonstrar que o caos não existe e tudo está, fatalmente ou não, organizado segundo regras infamemente precisas.”

Apesar de todo este ânimo regenerador, é indiscutível que o ódio é como um instinto que foi provando a sua utilidade nos inúmeros embates entre este sobrevivente e o exército de funcionários que hoje cobre a face a da terra. A esse instinto ficou ele a dever o efeito tumultuoso e inesquecível da sua escrita, pois a música não seria nada sem aquela sanha que o fazia expor a mediocridade, denunciar o cálculo sórdido e todos os signos da impostura e desses motivos com os quais se decoram as montras culturais.

Desde a sua morte, em 1989, começou o processo de glorificação da sua obra, nas linhas daquilo que Artaud assinalou a propósito de um outro espírito que de forma semelhante se entregou ao mesmo gozo infame: “… se a atitude de Maldoror é aceitável num livro, só o é depois da morte do poeta, e cem anos mais tarde, quando os explosivos do coração verídico do poeta tiverem tido tempo de se acalmar. Porque quando ele estava vivo, eram demasiado fortes. Foi assim que Baudelaire, Edgar Poe, Gérard de Nerval e o impensável conde de Lautréamont se calaram. Porque tínhamos medo que a sua poesia saísse dos livros e subvertesse a realidade… E fechámos a boca ao jovem Lautréamont para acabar logo com a agressividade crescente de um coração catastroficamente indisposto pela vida quotidiana, e que acabaria por levar para todo o lado, a prazo, a cautela cínica e insólita dos seus incansáveis esfolamentos”.

Agora já vamos assistindo à forma como tantos daqueles que buscam por todos os meios o prestígio assinalam a sua admiração também pelo extenso cardápio que Bernhard nos entregou, sugerindo-nos formas bastante dolorosas de engolirmos a nossa má consciência. São esses mesmos que se assumem como parte de uma elite cultural e intelectual que pretendem reclamar o seu exemplo à medida que o cadáver arrefece e se desintegra. E, no entanto, precisam de construir uma imagem de distinção ou dignidade, de modo a poderem recusar aquela virulência com que travou um sem número de polémicas contra outros pequenos militantes de uma arte conformista. Assim, reclamam estas obras de forma a constituírem uma espécie de álibi, enquanto prosseguem a sua mesquinha escalada no sentido de se cumularem de honras.

A este respeito, é bastante esclarecedora a intervenção de Bernhard quando, em 1965, lhe foi concedido o prémio de Literatura da Cidade Livre de Bremen. Assim começava o seu discurso de agradecimento: “Não consigo achar graça ao vosso conto dos Músicos de Bremen, não quero contar nada, não quero cantar, não quero pregar, mas uma coisa é certa: já não é tempo de contos, sejam sobre cidades, sobre Estados, sejam científicos ou até mesmo filosóficos. Acabou-se o mundo dos espíritos. O próprio universo deixou de ser um conto. A Europa, a mais bela, está morta; eis a verdade e a realidade. A realidade, tal como a verdade, não é um conto, e a verdade nunca foi um conto.”

Hoje, a larga maioria dos artistas, se elege esta ou aquela causa, apenas o faz no sentido de manter a charada, servindo-se das causas mais distantes, de forma a nunca indispor as máfias locais, que dominam os diferentes sectores culturais e as entidades gestionárias que distribuem bolsas, prémios e outras benesses. Este princípio táctico que sempre só aponta para alvos longínquos levou Sartre a sinalizar como “o mal é a substituição sistemática do abstracto pelo concreto”. Ou seja, dar os nomes aos bois, e amaldiçoar este ambiente cultural cuja norma sistemática passa por ignorar, humilhar e exilar os seus melhores espíritos, isto até ser hora de lhes reclamar as cinzas.

O desafio que Bernhard exigia aos seus contemporâneos era o de reconhecerem que deviam proceder a um ajuste de contas com a hipocrisia que fez do Estado moderno uma máquina de massacre sistemático: “Viver sem contos de fadas é mais difícil, por isso é tão difícil viver no século XX. Por outro lado, não fazemos mais que existir, não vivemos, ninguém vive, mas é formoso existir no século XX.”

Aquela geração tinha visto a humanidade desmascarar-se, e não podia prosseguir como se nada fosse. “Eu próprio não sou um conto, não saio de um mundo de conto de fadas. Sobrevivi a uma longa guerra, vi morrer centenas de milhares de pessoas e outras continuar a viver, passando sobre os cadáveres.”

Nascido em 1931, Bernhard passou a infância e a adolescência na Áustria pré-nazi e nazi, e, como assinalou George Steiner, foi naquele país que as exalações pantanosas do nazismo começaram por vir à tona. “Foi nas ruas de Viena anterior a 1914 que Adolf Hitler se alimentou abundantemente das teorias raciais, dos ressentimentos histéricos e do antissemitismo com que viria a construir a sua demonologia. Quando o nazismo regressou à terra natal, na Primavera de 1938, o fervor com que foi acolhido ultrapassou a intensidade com que fora saudade na própria Alemanha. Um nacional-socialismo que assume formas espectrais, o ressentimento histérico, os impulsos antissemitas só ligeiramente atenuados e uma singular poção obscurantista – em parte de origem eclesiástica, em parte de origem rural”.

Bernhard não estava disposto a colaborar nesse delírio de que tudo não passara de um capítulo negro e que, de algum modo, depois de toda a devastação provocada pelo nazismo e pela guerra estes teriam servido de lição para que algo naqueles contornos não voltasse a repetir-se. É essa a mais insuportável de todas as mentiras, e ele não só não a engole como se empenha em fazer da sua obra um verdadeiro pesadelo para todos aqueles que continuam a servir-se do poder e a perpetuar aquele sistema sadicamente repressivo que ele enfrentou nos anos de escola, numa instituição em Salzburgo dirigida de início por sacerdotes católicos, a seguir por um nazi, e mais tarde novamente por padres. Bernhard faz questão de deixar claro a nenhuma diferença que sentiram as crianças entre a direcção do nazi e a dos padres, e como esta nunca foi outra coisa senão uma “máquina destinada à mutilação das mentes”.

Se não para de crescer o número daqueles que pretendem branquear as situações mais sujas, como se o espectáculo infame do século XX não passasse de um mero desvio, de um lapso demencial, a Bernhard cumpre assinalar como tudo faz parte de uma intriga devastadora, evidenciando, como notou Magris, essa “rigorosa e hierarquizada ordem do mal”.

Em Antigos Mestres, que acaba de ser reeditado pela Documenta, o grande alvo são todos esses traficantes de prestígio, esses burlões e intriguistas que confiscam as grandes obras para seu próprio benefício, tecendo o tal enredo admirativo e que, na verdade, apenas serve para pacificar todas as tensões, de modo a que a arte, e a literatura em particular, perca o seu efeito de denúncia. Bernhard serve-se de uma acção narrativa bastante ténue, quase inexistente, um encontro entre três cúmplices no Museu de História de Arte, sendo que isso é apenas a pauta para que ele vá garatujando a sua sinfonia demolidora, dando largas à sua voragem imprecadora, lançando-se numa diatribe após a outra, para infamar esses funcionários que se reproduzem a um ritmo vertiginoso como células cancerígenas e que fazem com que qualquer Nação soçobre face à obesidade mórbida do Estado, à forma como este se expande e toma conta de todos os aspectos da vida social e cultural, aniquilando uma a uma todas as pessoas à medida que as converte em funcionários da sua imensa burocracia. “Quando vemos os milhões de pessoas do Estado que se atropelam nas grandes cidades, sentimos náuseas, porque também sentimos náuseas quando vemos o Estado. Todos os dias, quando acordamos, sentimos náuseas deste nosso Estado e, quando saímos para a rua, sentimos náuseas das pessoas do Estado que povoam este Estado. A humanidade é um Estado gigantesco, do qual, se formos sinceros, sentimos náuseas sempre que acordamos.”

Dado que o encontro ocorre nas salas de um museu, aqueles que se acham sob a mira de Bernhard são “todos esses palradores de história de arte que todos os dias aqui vêm e enchem os ouvidos das pessoas com o seu cretinismo histórico-artístico”. O narrador é Atzbacher que na maior parte do tempo se limita a reproduzir as sulfúricas teses de Reger, um erudito musicólogo e a personagem que assume clara preponderância e que arrasta aquele seu discípulo e admirador, ao mesmo tempo que conta com a admiração e cumplicidade de Irrsigler, o vigilante do museu. Os três personagens sustentam um artifício narrativo que, sendo embora bastante precário, também ilustra aquela fragilidade de um espírito que, devido à sua exigência e lucidez, se vê isolado: “O que não falamos nós com pessoas que não nos interessam minimamente, disse ele, só porque precisamos de ouvintes. Precisamos de ouvintes e de um porta-voz, disse ele. Andamos durante toda a vida à procura do porta-voz ideal e não o encontramos, porque o porta-voz ideal não existe. (…) Fazemos de uma pessoa extremamente simples o nosso porta-voz e, depois de termos feito dessa pessoa extremamente simples o nosso porta-voz, procuramos um outro porta-voz, uma outra pessoa que sirva para isso, para nosso porta-voz, disse ele. Depois da morte da minha mulher, tenho ao menos o Irrsigler. (…) Irrsigler sabe mais que esses asquerosos peroradores da história de arte que todos os dias destroem para toda a vida, com o seu palavreado, dezenas de classes escolares que vão impelindo à sua frente. Os historiadores de arte são os verdadeiros destruidores da arte, disse Reger. Os historiadores de arte arengam tanto tempo sobre a arte que acabam por, com a sua arenga, a levar à morte. A arte é levada à morte pelos historiadores de arte.”

Seguem-se os professores que “não sabem o que é arte, por isso também não o podem dizer nem ensinar aos seus alunos e não os conduzem para a arte, mas afastam-nos da arte no seu abjecto e sentimental artesanato vocal e instrumental, que forçosamente produz nos alunos uma profunda aversão”.

A demolição é de tal ordem, de tal modo destemperada, que a irrisão nos leva ao riso, mas não se trata propriamente de uma sátira, não estão aqui os elementos da troça ou do escárnio, mas de algo mais radical. Não é também uma paródia, e se chegamos ao riso é por não restar mais nada, por não haver outra saída. De algum modo, no fim, se o esforço de caracterização se torna de tal modo impiedoso, incapaz de se compadecer seja de quem for, a comédia parece ser esse último grau de compreensão de uma realidade, quando não somos já capazes de qualquer forma de adesão ou simpatia. Manifestando o seu ódio pelas festividades, por toda a cadeia cerimoniosa destas sociedades ritualmente hipócritas, Bernhard ergue o seu hino à hostilidade, corroendo e caricaturando, ridicularizando tudo e todos. Trata-se de uma forma de evidenciar todas essas formas de dissimulação, todo esse movimento implacável de contrafacção e de inércia, todas essas formas de horror mais ou menos conscientes, todo esse patetismo revoltante. A partir de certo ponto, a Bernhard resta-lhe deitar-se no chão e escutar o mundo enquanto este gira em putrefacção. Por isso, este é um diálogo surdo e toda a veemência retórica de Bernhard revela sobretudo um sentido de derrota face à bestial hipocrisia da sociedade.

Ele leva a sua acusação até ao limite, e depois desse limite não lhe resta mais nada, ficando claro que quando aqui se fala de inferno, não se trata de uma metáfora. “Mas os professores não são só, no que se refere à arte, os impedidores e os destruidores, os professores sempre foram, em suma, os impedidores da vida e da existência, em vez de ensinarem a vida aos jovens, de lhes proporcionarem a decifração da vida, de lhes tornarem a vida numa riqueza verdadeiramente inesgotável da sua própria natureza, matam neles a vida, fazem tudo para lha matar. A maior parte dos nossos professores são pobres criaturas, cuja missão na vida parece consistir em trancar a vida aos jovens e torná-la por fim numa horrível deprimência. Também para a profissão de professor só vão as cabeças mesquinhas, perversas e sentimentais, da classe média mais baixa. Os professores são os fâmulos do Estado e quando, como no caso deste Estado austríaco hoje, se trata de um Estado totalmente aleijado espiritual e moralmente e que não ensina senão o embrutecimento e a depravação e o caos que constitui um perigo público, os professores são naturalmente aleijados espiritual e moralmente e embrutecidos e depravados e caóticos. Este Estado católico não tem qualquer noção de arte e, por conseguinte, os professores deste Estado também não têm ou não têm de ter qualquer noção, e isto é que é deprimente. Estes professores ensinam o que é este Estado católico e o que este os encarrega de ensinar: a tacanhez e a brutalidade, a baixeza e a infâmia, a abjecção e o caos. Destes professores os alunos não têm a esperar senão a hipocrisia do Estado católico e do poder estatal católico”…

Por fim, Bernhard atira-se aos artistas estatais, estes que não fazem outra coisa senão enaltecer a falsidade e a mentira através dessa arte encomendada pelo Estado e que decora as paredes dos museus e é enaltecida todos os dias pelo seu sistema de propaganda. Muito poucos escapam a este impetuoso trabalho de demolição, só alguns verdadeiros mestres, mas esses acabam também por ser vítimas da nossa necessidade de produzir aquela obra de unificação. “Nós desfazemos os chamados grandes, decompomo-los com o tempo, anulamo-los, disse ele, os grandes pintores, os grandes músicos, os grandes escritores, porque não podemos viver com a sua grandeza, porque pensamos e pensamos tudo até ao fim, disse ele.”

Este é um livro terrível e imensamente divertido, que prova, como já Nietzsche assinalara, que a obra de arte emerge, não tanto do milagre de uma imaginação criadora, mas do poder de um juízo audaz que escolhe, ordena e tria os elementos de que a obra se forma, lançando um olhar severo e forçando a realidade a uma recomposição, a sentir ela mesma vergonha, de forma a que alguma coisa assim possa transformar-se.

Voltando ao início e àquela noção de que é preciso garantir que o homem que lê se sinta intensamente vivo e compelido, para este autor de uma obra que é “um escândalo contínuo”, como nos diz João Barrento, e uma denúncia de uma sociedade de gerentes da arte, que separa a ética da estética, trata-se acima de tudo de activar esse processo de leitura comprometida, que rompe com esse quadro unificador e que achata tudo. “… eu nunca li na minha vida um único livro do princípio ao fim, a minha maneira de ler é a de um folheador altamente talentoso, isto é, de um homem que prefere folhear a ler, que portanto folheia dúzias ou talvez mesmo centenas de páginas, antes de ler uma única; mas, quando esse homem lê uma página, lê-a tão profundamente como nenhum outro e pondo nessa leitura a maior paixão que se possa imaginar. Fique a saber a saber que eu sou mais folheador que leitor e gosto tanto de folhear como de ler, na minha vida folheei milhões de vezes mais do que li, mas tive sempre no folhear pelo menos tanta satisfação e um tão autêntico prazer espiritual como na leitura. Realmente é melhor ler, em suma, só três páginas de um livro de quatrocentas páginas mil vezes mais profundamente que o leitor normal, que lê tudo, mas nem uma única página de forma profunda, disse ele. É melhor ler doze linhas de um livro com a maior intensidade e penetrar nele por inteiro, como se poderá dizer, do que ler todo o livro como o leitor normal, que no fim sabe tão pouco do livro que acabou de ler como uma viajante de avião da paisagem que sobrevoa. Este nem sequer distingue os contornos. Assim as pessoas lêem hoje tudo à pressa, lêem tudo e não sabem nada. Eu entro num livro e instalo-me nele, inteiramente, pense bem, numa ou duas páginas de um trabalho filosófico, como se estivesse a entrar numa paisagem, numa área da natureza, numa estrutura de um Estado, num pormenor da Terra, se quiser, para penetrar por completo e não apenas a meio gás ou meio ânimo nesse pormenor da Terra, para o explorar e, depois de explorado com toda a profundidade que me é possível, daí tirar conclusões sobre o geral. Quem lê tudo, não entende nada, disse ele. Não é necessário ler todo o Goethe, todo o Kant, nem mesmo é necessário ler todo o Schopenhauer; algumas páginas do Werther, algumas páginas das Afinidades Electivas e no fim sabemos mais sobre os dois livros do que se os tivéssemos lido do princípio ao fim, o que em qualquer dos casos nos priva do mais puro deleite. Mas para se chegar a esta drástica autolimitação é preciso ter tanta coragem e tanta capacidade intelectual que só muito raramente isso é possível e nós mesmos só muito raramente o conseguimos; a pessoa que lé é, como a carnívora, de um abjecta voracidade e arruína, como a carnívora, o estômago e toda a saúde, a cabeça e toda a existência intelectual. Mesmo um ensaio filosófico, compreendemo-lo melhor quando não o devoramos por completo de uma só vez, mas apenas debicamos um pormenor, a partir do qual, se tivermos sorte, chegamos depois ao todo. O maior prazer é o que nos proporcionam os fragmentos, do mesmo modo que sentimos também na vida o maior prazer quando a consideramos como fragmento, e como se nos afigura horrível a sua totalidade e no fundo a perfeição acabada. Só quando temos a felicidade de fazer de um todo, de algo acabado ou mesmo perfeito, um fragmento e o começamos a ler, sentimos nisso um autêntico deleite e talvez mesmo o máximo deleite. A nossa época já há muito que, no seu todo, se tornou insuportável, disse ele, e só onde se vê o fragmento a conseguimos suportar. A totalidade e a perfeição são para nós insuportáveis, disse ele.”