1. Tivemos eleições, temos nova composição da Assembleia da República (AR) e, também, um novo Governo.
Inevitavelmente, recomeçou a falar-se da «reforma da Justiça».
Sempre assim acontece.
Todos percebem, no entanto, que essa formulação – a reforma da Justiça – não corresponde, em rigor, a nenhuma ideia global, coerente e verdadeiramente inovadora que incida simultânea e coerentemente sobre leis substantivas, processuais e de organização judiciária.
Tal quimera de reforma não reflete – qualquer que seja a maioria do momento – uma ideia pensada e uma proposta de fundo capaz de revolucionar radicalmente a área do poder judicial, tal como este está definido e pensado na Constituição (CRP).
Para que uma reforma de grande amplitude e alcance pudesse ocorrer, seria necessário rever a CRP e os princípios humanistas e civilizacionais em que ela se inspira, e se inspira, ainda – mesmo que consideravelmente debilitados -, a maior parte dos sistemas de Justiça europeus.
Tal reforma radical, por que alguns anseiam, não parece, porém, poder acontecer, uma vez que ela implicaria, igualmente, a possibilidade um acordo político muito alargado, o que a atual composição da AR não consente, nem, sobretudo, aconselha.
Sobra-nos, portanto, a hipótese da formulação de propostas relativas a aspetos específicos do sistema de Justiça.
Como, num plano mais genérico, referiu o Presidente da República no discurso de investidura do Governo, face às atuais circunstâncias, o máximo que se pode almejar é, neste campo, como em outros, a formulação de um plano coerente de pequenas, mesmo que incisivas, alterações, que, consensualmente, permitam otimizar repostas aos problemas mais urgentes dos cidadãos.
2. Áreas da Justiça existem, também, que, dependendo, desde logo e mais diretamente da orientação política do Governo, permitirão, por essa mesma razão, a tomada de iniciativas e resultados rápidos.
Refiro-me, mais claramente, à renovação do modelo de formação de magistrados ministrado no CEJ e à necessidade – que sempre defendi – de abrir a docência e o seu corpo de formadores permanentes a áreas exteriores às magistraturas: outros juristas, outros profissionais, outros saberes.
Só assim se criaria uma dialética e uma aproximação – jurídica, cultural e ontologicamente pluralista – à sociedade real, tal como ela é hoje no país, que não passasse, necessariamente, pela leitura ortodoxamente normativa que dela faz, por exemplo, a Coletânea de Jurisprudência.
Só assim se permitiria, também, uma visão mais aberta e menos dogmática, que ajudasse os futuros magistrados a romper o colete de força de um positivismo, mais ou menos estrito, em que foram formados e onde uma excedentária hierarquia paralela – a inspeção – os quer manter.
Refiro-me a uma leitura jurídica dos problemas sociais, económicos e políticos que se não resuma a preocupações de natureza securitária – de resto mais próprias das polícias do que das magistraturas – que, em demasiados casos, prevalece, indevidamente, na leitura e aplicação da lei.
Uma leitura outra da lei e dos factos, que se fundamente, antes do mais, nos princípios e valores humanistas vertidos na CRP e nas declarações e cartas internacionais e europeias de direitos humanos.
Não basta arguir ou reclamar a independência individual de juízes e o respeito pela consciência jurídica dos procuradores, na assunção da responsabilidade pelas decisões que tomam: importa, sim, assegurar que elas escapam, ainda, aos ditames de uma qualquer polícia de pensamento.
E, convenhamos, os tempos estão, hoje, propícios a tais imposições.
3. Por outro lado, devido à impreterível necessidade de compatibilizar o nosso sistema processual penal com alguns avanços recentes do Direito europeu e algumas das suas exigências quanto a estas mesmas matérias, podem, facilmente, ser consensualizadas e concretizadas algumas reformas absolutamente indispensáveis.
O campo democrático da AR ainda é, significativamente, maioritário para alcançar tais consensos.
Refiro-me a reformas que, na sua simplicidade aparente, podem, apesar disso, ajudar a mudar aspetos fundamentais do funcionamento da Justiça penal.
É, por exemplo, o caso da imperiosa necessidade de rever a competência processual das duas magistraturas para emitir mandados de detenção europeus (MDE), conformando-a com a jurisprudência unânime do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) sobre este específico assunto.
Este tribunal europeu vem defendendo, em alguns casos com sérios fundamentos, a ideia de que só a um juiz deve competir emitir os MDE.
Como tais mandados são, contudo – e também de acordo com o Direito europeu –, uma simples extensão dos previa e obrigatoriamente emitidos mandados de detenção nacionais (MDN), importaria, talvez, em coerência de princípios, rever a competência de ambas as magistraturas para, também, emitir estes últimos.
Na verdade, os fundamentos do TJUE que justificam a competência do juiz para emitir MDE aplicam-se, sem mais, aos MDN.
Nada há, pois, de específico, no que respeita a exigências de garantias nos primeiros que não se verifique, também, nos últimos.
Além de que, mesmo no plano lógico da importância relativa das garantias processuais nacionais com implicações constitucionais, não se compreende como, para que se realizem determinado tipo de buscas e de interceções de comunicações, seja – e bem – exigível um mandado de um juiz e, para ordenar a detenção de alguém, o não seja.
A manutenção da integridade do nosso sistema pode vir, um dia, a surpreender-nos se for suscitado um Habeas Corpus contra a detenção de um perigoso criminoso ou de alguém a quem se imputem crimes graves de natureza económica ou financeira.
4. Esta simples reforma – que se traduziria efetivamente num reforço de garantias individuais, que, acreditamos, todas as forças democráticas aceitariam – permitiria, além disso, evitar os aspetos mais delicados e chocantes que ocorreram, ante o olhar espantado dos portugueses, em casos recentes e que resultaram, em parte, da solução processual ainda em vigor no nosso país quanto a esta mesma matéria.
Se coubesse ao juiz – sempre ao mesmo juiz e instrução na fase do inquérito – a competência para emitir os MDN e este tivesse, desde o princípio, acompanhado ou autorizado todas as medidas de investigação que mais fazem perigar as liberdades constitucionais, verificar-se-iam, seguramente, menos incongruências e contradições no desenvolvimento normal dos processos.
E esse desenvolvimento normal dos processos é essencial à credibilidade pública da Justiça.
Recordemos, a propósito, que só Portugal e um outro país da União Europeia não procederam, ainda, a uma alteração da lei processual que compatibilize as competências dos juízes nacionais com o mais moderno Direito Europeu, no que se refere à emissão de mandados de detenção.
Quando digo que acredito na provável consonância de posições das forças políticas democráticas, fundo-me, precisamente, na ideia que retirei das discussões sobre o assunto travadas sucessivamente, nos anos mais recentes, na Comissão de Assuntos Constitucionais da Assembleia da República, quando da apresentação que fiz dos relatórios anuais da atividade do Gabinete Nacional da Eurojust.
5. Uma outra questão, também de consensualização fácil, acredito, é a da necessidade de regulação do funcionamento das procuradorias e serviços do MP.
Refiro-me à imprescindível definição e identificação do verdadeiro titular e responsável dos processos, no âmbito das equipas de investigação compostas por vários procuradores: quem decide, quem decide o quê, quem é, de facto, o responsável pela orientação do processo e, por quem e como, é formada a decisão sobre o destino dos autos.
Aludo, igualmente, à indispensável intervenção e à forma de responsabilização dos procuradores chefes e coordenadores de departamentos de investigação e ação penal.
Na tomada de decisões do MP de levar ao juiz de instrução – que, como referi, deveria ser o mesmo do princípio ao fim do inquérito – pedidos sobre medidas que contendem mais gravemente com direitos, liberdades e garantias, importaria que o procurador titular do processo pudesse contar, previamente, com o parecer e decisão formais do seu superior hierárquico.
Tal procedimento deveria ser adotado pelo menos em processos relativos a crimes graves e predefinidos pelo regulamento ou diretiva a adotar no plano nacional.
Nada no estabelecimento e regulação formal de tais intervenções atenta, como alguns alegam, contra a exigência constitucional da autonomia do MP.
Tanto a jurisprudência do TEDH, como a do TJUE o têm dito e reiterado, quando se pronunciam sobre a amplitude da autonomia do MP.
6. Se normativamente bem definida e, por isso, mais transparente para os demais sujeitos processuais, a regulamentação das formalidades relativas a tais iniciativas evitaria a possibilidade – mesmo que mínima – de se aventarem suspeitas de indevidas, ilegítimas e opacas pressões internas.
Nesta matéria – e falo do que sei – nada pior do que a paternalista informalidade da benemérita intervenção de alguns superiores hierárquicos.
Como tenho defendido, só uma clara, bem definida e transparente intervenção hierárquica pode proteger os magistrados do MP dos graus hierárquicos inferiores de serem os únicos crucificados por opções que, realmente, ninguém sabe se tomaram por convicção própria.
7. Dado os procuradores estarem sujeitos ao mesmo regime de impedimentos e suspeições dos juízes, a invocação de qualquer delas pode, igualmente, ante a indefinição e invisibilidade da autoria das decisões visadas, vir a afetar a validade de todo o processo e não apenas a parte em que elas foram tomadas por procuradores alvo de tais incidentes.
Esta indefinição pode, além do mais, proporcionar incidentes processuais graves que, a acontecerem em processos de grande repercussão mediática, muito prejudicarão a já de si desbotada imagem pública da Justiça penal.
8. Nunca me convenci – e a experiência prática ajudou-me, aliás, a reequacionar algumas posições anteriores, menos inspiradas – que a informalidade na maneira de lidar com tais problemas possa conduzir a um maior objetividade das decisões processuais concretas de um titular de um dado caso e ao reforço da autonomia do MP.
Hoje, mais do que nunca, reforcei esse meu entendimento.
9. Estas são, pois, algumas ideias, debatidas e partilhadas, em maior ou menor grau, por alguns magistrados com experiência na área, que poderão, depois de bem estudadas, dentro e fora das magistraturas, contribuir, eventualmente, para maior eficácia e credibilidade da Justiça penal.
Algumas destas reflexões e propostas, devidamente harmonizadas e combinadas em diferentes planos normativos, redesenhariam e fortaleceriam o quadro de garantias dos cidadãos, contribuindo, também, para a normalização e racionalidade do andamento dos processos e, assim, para a credibilidade da Justiça penal.
Vamos, então, trocar umas ideias sobre estes assuntos, de uma maneira lógica, integrada e livre de quaisquer demagogia e inspirações corporativas.