Sendo a tradução o verdadeiro idioma da poesia, aquela espécie de atlas poético que uma editora artesanal como a Contracapa se tem empenhado em construir permite-nos deter alguma perspectiva antológica dessas expedições que, através da palavra, e noutras latitudes, buscam esse caminho de fronteira onde nos aproximamos daquilo que nos é desconhecido. Traduzir significa unir os pontos num mapa da necessidade. “Um sítio chama outro responde”. Todos temos de aprender a superar a ausência imediata, para dar margem a uma correspondência mais vasta. Só assim isto circula e entra na ordem. E assim, sem mesmos se sair de um só idioma, o tempo obriga a que tudo seja tradução, entre diferentes níveis, escalas, e em todas as direcções. Como nos diz um poema de Michaux, o mal é o ritmo dos outros. E esse é também o verdadeiro ganho na tarefa de escaparmos às restrições da nossa própria pele.
A tradução é a grande virtude poética, ao ponto de nos permitir falar com os condenados, os decapitados, que enfim nos respondem em “oulof”. E a este esforço é ainda mais notável por ser desenvolvido num momento em que parece que deixámos de nos saber levantar e partir. Mesmo sem ir muito longe, pode perder-se o alcance na linguagem de todos os dias, cada vez menos capazes de ir mudando tudo com cuidado, deslocando o sentido que reina nas coisas. Como assinalou Ossip Maldestam, aquilo que distingue a poesia do discurso automático é a sua capacidade nos estimular, de sacudir-nos de modo a fazer-nos despertar a meio de uma palavra. Então a palavra revela-se bem mais longa do que supúnhamos, e damo-nos conta de que falar é estar sempre a caminho. Precisamos desses impulsos, desse arrebatamento, pois a realidade, sem a energia deslocante da poesia, não chega a causar a sua impressão em nós. A vida passa sem chegarmos a reconhecer a sua exuberância, a experimentar esse fascínio absorvente da sua intriga, o estupor da beleza do mundo. O ensaio admirável que se alcança através de um percurso audaz, pondo-se em risco, obriga-nos a explorar um limite, e, no mundo moderno, “onde o oxigénio é escasso, respirar é um trabalho lento e obstinado de quem procura sítios onde ressuscitar (Ricardo Norte). Sem este percurso errante nada chega a aclarar-se para nós. Mesmo tocando nas “cordas dos silêncios mais eternos” não damos por nada.
Esta é a urgência da poesia, a noção de que é mais difícil descobrir o mistério em territórios constantemente iluminados do que naqueles que oferecem margem para a negociação entre as sombras. Se hoje todos recusam qualquer utilidade à poesia, se se tornou moda dizer representá-la como uma ocupação quase ridícula, isto aponta para uma perda do desejo e da relação com o mundo. “Esta riqueza abandonada é infinita”, eis o título do poema que rompe como um tiro de partida numa recolha bastante desigual da poesia argentina contemporânea, com selecção e tradução de Hugo Miguel Santos, uma antologia que demora um pouco a arrancar, mas que no seu terço final se torna verdadeiramente exaltante. Chama-se “Por Alguma Razão”, e acaba de sair com a chancela da pequena editora de Vila Meã. Naquele poema, além do título, há que reter pelo menos mais dois versos: “às vezes o teu sonho pensa já ter dito tudo/ mas outro sonho se levanta e não é o mesmo”.
O diálogo da poesia funciona como esse revezar dos balbucios que vamos entreouvindo da boca daqueles que sonham. Num momento em que vigora uma espécie de lei seca no que toca à importação de espíritos inquietantes e que a aposta na tradução de poesia por parte das editoras com maior expressão comercial se restringe a cartapácios para expor os clássicos na estante como troféus de caça na parede, se queremos seguir esse diálogo junto ao rumor da época só podemos contar com os esforços quase clandestinos destes pequenos selos. E talvez porque interessa manter um certo registo de velório cultural, dar a entender que este é um tempo exausto, definido pela sensação de se ter chegado sempre demasiado tarde. Ora, se quiséssemos realmente levar em conta os clássicos, e desde logo Homero, não poderíamos chegar a sentir que o tempo nos falta. Para este memorioso bardo, o tempo devia ser representado numa orientação contrária aquela que hoje usamos. Os gregos tinham o passado à sua frente, e era o futuro que estava nas costas, não se atrevendo eles a dispor dele, razão pela qual essa relação era definida pelo pudor e pela surpresa.
Como Ricardo Norte registava num dos cadernos da série “Perigo”, para Homero o tempo que nos é dado é algo que vai nascendo, e se está por nascer isso significa que é incomensurável, não sendo constante nem se podendo confundir com uma qualquer noção de velocidade. Naquele caderno, Norte cita Celibidache que recusa qualquer apreensão do tempo baseada numa ideia de velocidade, lembrando que isso só demonstra “a total falta de música do nosso tempo”. Para este maestro de origem romena, o tempo não é mais do que a condição para que a riqueza possa ser apercebida… “a riqueza opera-se, materializa-se somente na lentidão. Para uma dada riqueza, uma certa lentidão”. A forma de sujeição moderna é essa transformação do tempo num valor quantificável, e reside nessa operação a nossa extrema pobreza. Por isso, todos nos queixamos da falta de tempo, e apressamo-nos como o coelho, e vivemos sujeitos a uma perda constante. E é por isso que a poesia perde a sua função, torna-se inútil, uma vez que não tem qualquer valor enquanto moeda, não se deixou calcinar ou representar uma ordem simbólica morta.
No segundo volume daquela série de cadernos, que vieram a lume entre nós para cair de imediato na obscuridade, Ricardo Norte remete-nos para uma estupenda lição sobre poesia moderna dada por Godofredo Iommi, poeta que não surge representado nesta antologia, e que foi proferida em 1979 na aula inicial do Taller de Amereida. Vale a pena reproduzir o início dessa intervenção: “É muito provável, como se tem passado até hoje, que ao ouvir-me não entendam nada. Mas, quero relembrá-los, antes de começar a falar, o que disse sobre isso Dante Alighieri. Dante disse para que é que existe a palavra. E a resposta é muito simples: a essência da palavra não é dizer o que já se sabe. A palavra diz o que não se sabe. E somente quando a palavra diz o que não se sabe é essencialmente palavra. Quando diz o que já se sabe é conversação. Bem, comecemos então a não compreender nada.”
Mais vale traduzir infinitamente a algaraviada dos sonhos, vigiarmos esse limite ou fronteira espantosa do que nos mantermos cerrados e retidos face ao que já é conhecido. Hoje, parece cada vez mais difícil apontar onde caiu a última gota de sangue realmente vivo na consciência dos leitores de poesia. Propõem-nos sempre um céu onde é suposto darmos pelo brilho de estrelas já vencidas, e a própria noção que se retira da poesia se liga menos a estar a caminho de algo do que a uma certa nostalgia do que lembramos entre o já vivido. O aspecto mais frágil da poesia portuguesa que se escrevia até recentemente foi esse modo de se relatar na clausura de um pretérito imperfeito. Ora, como regista Ricardo Norte, nenhuma nostalgia nos ajudará a lidar com o inesperado. Boa parte da geração de poetas que nos precedeu produziu um discurso que se compaginava com esse regime de reificação na nossa relação uns com os outros e com o mundo. Em lugar de um verdadeiro confronto com a realidade, e de fazer corresponder as ameaças à pluralidade de sentidos da palavra uma prova de exigência ainda maior, esses usos abdicaram desse alto grau de dificuldade, preferindo enredar-se numa pose mais ou menos abúlica e anedótica. "Toda a grande poesia é difícil para que dela se fale. Daí vem que falar de poesia seja errar. Mas o erro sincero, o erro comovido, é a primeira prova de amor. É mesmo aí que se torna necessário errar: em relação às coisas que merecem amor”, escreveu Herberto Helder.
Não basta que a poesia continue a ser escrever-se e a ser publicada, mas é importante que se mantenha o diálogo à sua volta, novas traduções, como tochas acesas na caverna. Esse é o seu difícil percurso e a forma de resistência que esta propõe, até que esses murmúrios distantes possam erguer-se à claridade do sol. “Não devemos renegar a nossa nobreza:/ Esse desejo de modelar o que é ainda informe/ Segundo o que em nós há de divino”, escreve Hölderlin. E foi este esse sentido que se perdeu nos últimos anos na poesia que entre nós ganhou maior expressão, uma poesia que foi traindo miseravelmente esse dever de confronto com a indigência a que nos vem condenando esta época. “O preço, o enorme preço por que o poeta tem de pagar a sua missão, não deve ser saldado mesquinhamente pela economia da felicidade quotidiana”, lembra Stefan Zweig. “A poesia é um desafio ao destino; é, ao mesmo tempo, piedade e altivez”.
Nesta antologia da poesia argentina que Hugo Miguel Santos nos propõe, ainda perpassa algum deste desconsolo que foi sendo ritualizado e que acaba por consubstanciar um efeito de deserção face ao desafio que hoje se coloca à poesia. Leia-se o poema de Joaquín O. Gianuzzi ao qual o antologiador foi buscar o título desta recolha: “Comprei café, cigarros, fósforos./ Fumei, bebi/ e fiel à minha retórica pessoal/ estendi os pés sobre a mesa./ Cinquenta anos e uma convicção de condenado./ Fracassei como quase toda a gente de mansinho;/ num bocejo, ao cair da noite, murmurei as minhas decepções,/ antes de ir para a cama cuspo na minha sombra./ Esta foi a única resposta que pude oferecer a um mundo/ que esperava de mim um estilo que provavelmente não me/ correspondia”. É um poema que está em linha com toda essa deflação daquilo que hoje adere a um ambiente generalizado e que condiciona toda uma produção de cultura uniformizada, um conjunto de discursos que ocuparam o campo da poesia e normalmente brandem esse triunfo de uma atitude realista que exibe essa pretensão comum entre tantos poetas indistinguíveis de terem despojado o mundo de ilusões sentimentais e de o terem visto tal como ele é na realidade, nem se dando conta de como participam num regime de propaganda que leva à astenia, abrindo caminho a esse sistema de exploração sem fim e degradação da vida e das nossas aspirações.
“É possível que ninguém encontre um destino meramente privado”, prossegue Gianuzzi, “é possível que a vaga da história o encontre por um e por todos./ Resta-me isto./ Um pedaço de vida que me cansou de antemão,/ um poema deixado a meio do caminho/ em direcção a uma conclusão desconhecida;/ um resto de café na chávena/ que por alguma razão/ nunca me atrevi a investigar a fundo.” Evidentemente, para alguns este tipo de lamurientos sumários continua a servir enquanto coordenadas líricas para organizar esse baile defunto onde se reúnem aqueles a quem, se puxarmos o fio, toca sempre a mesma esgotada cantilena exprimindo essa atitude de irónico distanciamento face ao mundo. Noutras páginas, felizmente, vamos recolhendo exemplos de um outro enlevo, sejam eles mais tímidos ou exuberantes, sinais desse raro convívio à volta dos milagres comuns, “a húmida planície para os teus furtivos pés,/ a aspereza do cardo, o orvalho relembrado do amanhecer,/ as antigas lendas”, escreve Olga Orozco, que às tantas coloca a hipótese de o verbo em vez de surgir no princípio, vir antes no fim, oferecendo-nos esse possibilidade de um re-conhecimento, esse prazer de quem pronuncia algo e que ao descrevê-lo se permite criar um outro nível de presença entre as coisas.
Curiosamente, esta noção acaba por ser melhor explorada por Gianuzzi, quando nos diz que “entre um verso e outro instala-se uma pausa/ onde o mundo é colocado em dúvida: deixo então/ a minha amarga cabeça a circular pelo jardim.” E num outro poema nos fala n’A Aventura dos Objectos: “O único propósito que reside/ na matéria passiva destes objectos/ é estarem ali, esmagados contra a mesa./ Tudo o resto é minha culpa, a humanidade/ do copo e o cinzeiro. No entanto, eles procuram a liberdade de um animal superior./ Esta manhã, por exemplo,/ insinuou-se no meu copo vazio/ uma sonhadora intenção/ de criar para si próprio uma autonomia, saltando/ sobre um frio peso azul. Nessa arbitrariedade/ depositei toda a minha fé possível cotnra o engano/ de um mundo que já estava criado/ fora de mim. Aquilo que a taça inventava/ correspondia-me: a nova realidade de uma anarquia/ tão privada como os meus próprios ossos.”
Não deixa de ser instrutivo este modo como a descrição dos objectos e a manipulação do sentido por si só gera esta espécie de aventura e de suspensão de um certo fatalismo. Como se a poesia fosse esse ânimo que se impõe através de um desacato face a todas as evidências. Um deslocamento sensível, uma apropriação dinâmica, algo na linha daquilo que Mario Trejo nos diz nos versos finais das suas “Notas para uma crítica da razão poética”: “Em resumo:/ mais vale ser cabeça de leão do que cauda de rato./ A melhor maneira de esperar é ir ao encontro.” A poesia é este movimento, este gesto regenerador, que e.e. Cummings compara com a primavera, que diz que poderá ser como uma mão que surge cuidadosamente de lugar nenhum, “mudando e ordenando enquanto todos/ vêem uma coisa estranha ali/ outra conhecida aqui”. Sem nada quebrar, esta mão dispõe infinitamente do sentido, projectando assim a sombra das coisas, “movendo coisas novas/ e coisas velhas à vista de todos/ de um lado para o outro, uma/ provável flor aqui, um bocado de ar/ ali cuidadosamente”. Ou, se preferirem, Octavio Paz exprimiu também, de um outro modo, a mesma ideia: “com as sombras desenho mundos,/ dissipo mundos com as sombras,/ oiço a luz raspar do outro lado”.
No fundo, o que a poesia sempre recusa é essa récita infecunda dos que desdenham toda a criação com o estranho argumento de que está destinada a perecer. Se hoje a morte é encarada como uma injúria pelo aberrante complexo narcísico que domina os do nosso tempo, sendo toda a limitação encarada como uma ofensa, para os gregos um limite não constituía um impedimento, mas era, pelo contrário, precisamente aquilo que possibilitava o aparecimento do que quer que seja e nas condições que lhe são próprias. Assim, a maior parte das vezes que nomeavam o homem, não deixavam de lhe reconhecer como principal atributo ou apontar no imo da sua natureza a condição mortal. Não era um defeito qualquer, mas daí despontava essa urgência que caracterizava esse modo diferente de se sentir e oferecer. Da nossa mortalidade nasce a verdadeira dádiva, sendo o limite algo de terno, como indica François Fédier, uma vez que, se por um lado este nos contém, também nos suporta e dilata. “Quando vires o limite como o vento que sopra a vela, como o calor que amadurece o fruto, então partirás tu mesmo à procura do limite.” No fundo, a morte é o vínculo que gera toda a urgência que há em nós. A este respeito, leia-se o poema de Susan Thénon, chamado Fundação. “Como quem diz: anseio,/ vivo, amo,/ inventemos palavras,/ novas luzes e jogos,/ novas noites/ que se dobrem/ em novas palavras./ Façamos/ outros deuses,/ mais pequenos,/ mais próximos,/ breves e primários./ Outros sexos/ façamos/ e outras imperiosas necessidades/ nossas,/ outros sonhos (…).
Numa antologia que procurou assumidamente esquivar-se às figuras canónicas ou àquelas que têm gozado já de ampla divulgação entre nós, seja Jorge Luis Borges, Alejandra Pizarnik, Roberto Juarroz ou Julio Cortázar, isto só torna mais instigante a proposta, no sentido de nos dar a conhecer uma constelação de presenças que não foram, na sua maioria, vertidas para o nosso idioma, contudo, se Hugo Miguel Santos reconhece que lhe falta uma noção do contexto cultural da literatura latino-americano e, em particular, dos elementos históricos que adquirem algum relevo em tantos destes poemas, o que se sente é que, apesar de referir como uma weltanshauung orientou as suas opções, na verdade, quando manifesta uma suspeita em relação à ideia de literatura nacional, abre margem depois a um predomínio do gosto e a um concerto baseado numa afinidade estética que impõe uma espécie de composição monódica.
Vão-se sucedendo os nomes, mas regista-se uma tonalidade excessivamente vigiada, em vez de posturas contrastantes, por vezes mesmo conflituantes, temos um arranjo demasiado harmonioso, norteado por um certo ensimesmamento, um gosto mais amargo e que se dirige a elementos à expressão dos elementos transitórios, deixando de lado o resíduo de eternidade que na poesia tende a ser combinado com aqueles, e transmite-nos, assim, um sentimento do tempo como asfixia. Isto gera rapidamente uma sensação de que o exercício antológico assume uma feição algo supressiva, especialmente nos casos dos poetas que comparecem com apenas dois ou três poemas, o que frustra a ideia de uma amostra minimamente representativa, mas também em casos como o de Juana Bignozzi, Tamara Kamenszain, Fábian Casas ou Natalia Litvinova, em que a selecção é generosa o suficiente para gerar entusiasmo, e, no entanto, gostaríamos de ter lido poemas que se libertassem deste registo de ofensas e agravos, uma ambiência meio desolada e que chega a passar por afectação, nivelando por baixo esta panorâmica.
Fábian Casas consegue pôr o dedo nesta tecla glacial, mas toca-o de tal modo que faz desse enredo cabisbaixo uma espécie de paródia: “Pergunto-me se o desespero/ é igual para todos./ Se Hegel, quando sentiu que ia morrer/ sentiu verdadeiramente que ia morrer/ ou intuiu uma síntese implacável/ para lá do seu corpo./ De qualquer forma, é difícil/ viver sem medo;/ conheço gente que deseja ser amada/ e gasta o seu tempo nos flippers.” Muitas vezes é esta a sensação com que ficamos depois de ler tantos desses versinhos que ficam a engonhar esperando ser levados a sério como poesia: dá a impressão que mais valia se os putativos poetas se tivessem limitado a gastar o seu tempo nos flippers.
Por outro lado, o último poema do volume (de Natalia Litvinova), serve-nos uma subtilíssima reviravolta, que de algum modo nos acicata no sentido de procurarmos esses outros sinais entretecidos para os resgatarmos, lendo a contrapelo desse tendencioso enredo que nos foi proposto. “Os poemas tristes/ são uma secreta homenagem à alegria./ Se fosse possível, gostava de ter sido um barco/ que se encaminha até ao naufrágio/ e sabe que um iceberg o aguarda./ A minha vida consistiria em aprender/ a nadar tranquilamente.”