Chover no molhado pode ser um exercício que desperte consciências para os riscos da degradação do funcionamento, do ambiente e do compromisso democrático. A humidade da degradação alcançada, na vulgarização de boa parte do exercício político nas suas diversas dimensões, tem uma espécie de entronização por baixo no discurso do medo como mecanismo de mobilização dos eleitores.
É certo que o risco está presente em quase tudo que fazemos nos nossos quotidianos, mas muitos são ignorados e outros foram mitigados pelos avanços civilizacionais que fomos construindo ao longo de séculos. O brandir dos riscos como parte da deriva discursiva de recurso ao medo como fator determinante para as consciências e para a ação individual e comunitária é uma inequívoca prova de fragilidade da consistência do que está em promoção. Não se promove pela relevância da obra realizada e da perceção das pessoas em relação a ela. Não se afirma pelo valor da proposta de futuro apresentada, posiciona-se pelos riscos existentes em terceiros, num bailado maniqueísta como se o patamar civilizacional atingido e os desafios no horizonte, não fossem muito além das disponibilidades existentes no país.
Para muitos, é pelo medo que se lá vai.
Pelo medo de novos passados, mais ou menos longínquos.
Pelo medo em que o presente e os do presente perdurem.
Pelo medo de ameaças ao que existe, ao que foi construído e está em vigor.
Pelo medo em relação a riscos que resultam dos comportamentos individuais, do perfil das interações partidárias e das dialéticas com os diversos setores e interesses da sociedade portuguesa.
A utilização do medo como ativação da consciência individual e comunitária é poucochinho.
Revela inconsistência nas convicções e na consistência da ambição projetada nas propostas políticas concretas para responder ao presente e preparar o futuro que se quer.
Revela ainda uma descrença na capacidade dos eleitores em fazerem as triagens e análises com o grau de exigência que se impõe num sistema democrático, onde existem direitos, liberdades e garantias, e condições para um pensamento e uma intervenção cívica informada.
Ou então, num quadro de pragmatismo em função das dinâmicas da atualidade, consagra a perceção tática de que, a partir de posições conquistas de compromisso com partes do eleitorado, basta uma ativação do medo para que o passarinho na mão valha mesmo mais do que os dois pássaros a voar. Em qualquer dos casos, é uma deplorável configuração por baixo do exercício democrático, do discurso político e da cidadania, mas é o que temos.
É pouco para uma democracia com quase meio século de vida, com diversas dores de crescimento, por culpa própria e por fustigo de diversos fatores de desgaste presentes nas sociedades modernas, da não resolução de problemas estruturais à desinformação, da volatilização da atualidade ao excesso de demora entre a necessidade e a resposta.
Em boa verdade, o medo sempre fez parte do discurso político, mas nunca teve a centralidade que tem hoje, que configura o tal nivelamento por baixo da sociedade portuguesa, em que um pouquinho já é que baste perante a ameaça de não ter nada. E este registo de promoção do medo, só funciona para quem está destinado a um determinado território e à respetiva comunidade, não atemoriza os mais jovens bafejados pelas experiências dos Erasmus e por um maior conhecimento de outras realidades, não condiciona nenhum dos fatores de geração de riqueza e de oportunidades que não estão sujeitos a este tipo de grilhetas românticas de compromisso, seja o capital ou os investidores.
Apostar tudo no medo, tem funcionado, mas o nível de erosão democrática e a emergência de reais fatores de risco para as vivências, deveria suscitar outros registos mais afirmativos, a partir da consciência autocrítica do que foi feito e dos reais resultados. Não o fazer, é um mau serviço à democracia e corre o risco de ter o mesmo destino do universo de papões que nos agitaram na infância e cuja existência comprovadamente é inexistente, não nos suscitando, em adolescentes e adultos, qualquer temor.
Ter a perceção dos riscos é positivo, para os incorporar nos comportamentos e ajustar as realidades à sua mitigação. Colocar todas as fichas na mobilização pelo medo é um desastre social, um risco social e promove uma cultura maniqueísta entre o bem e o mal que não deixa margem para o compromisso que se impõe para a superação dos problemas de sempre, as respostas que exigem sustentação face aos recursos limitados e os desafios de futuro, das alterações climáticas às transições digitais e energéticas.
Mobilizar pelo medo significa pouca confiança na obra realizada, nas competências próprias para o exercício e na dimensão positiva das propostas para o futuro. Quando colocado como elemento central do discurso político é uma confissão de insuficiência da proposta e dos protagonistas. E vislumbra-se em todos os quadrantes, entre verdades, meias-verdades, amplas mentiras e intentonas importadas de outras latitudes. Caminhando tudo a par de gritantes desfasamentos da realidade concreta, da vida das pessoas, das dinâmicas do setor produtivos, dos territórios e das comunidades. Não é só pelo medo que lá vamos, 50 anos depois de Abril.
NOTAS FINAIS
A CLAREZA DAS OPÇÕES. A 10 de março, a manutenção pressupõe o voto útil no PS, a eventual mudança, o voto na AD. O resto são blocos de sustentação destas opções centrais, em blocos de passados para o futuro, com as vantagens e riscos conhecidos.
ANTÓNIO COSTA E O PREÇO DAS OPÇÕES. Há decisões, a toque de fundamentalismo ou agrado, que pesam na economia portuguesa e ninguém explica. Espanha acaba de rejeitar impor a mesma visão restritiva de Portugal no 5G, que, em teoria, afastou a Huawei do quadro de fornecedores dessa tecnologia por ser rotulada de alto risco por uma Comissão de Cibersegurança. Mais papistas que o Papa na obediência a Bruxelas e fundamentalistas nas orientações americanas, Portugal está agora sujeito a relevantes custos económicos e de sustentabilidade das soluções alternativas, com perda de competitividade e posicionamento tecnológico em relação a Espanha. No passa nada?