A guerra russo-ucraniana: a frente jurídica (II)


O conflito russo-ucraniano não começou a 24 de Fevereiro de 2022, teve uma expressão bélica desde 2014 com a invasão e a anexação da Crimeia.


Em 16 de Janeiro de 2017 a Ucrânia peticionou junto do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) a violação pela Federação Russa de vários dispositivos da Convenção internacional para a supressão do financiamento do terrorismo, de 1999 e da Convenção internacional sobre eliminação de todas as formas de discriminação racial, de 1965. O pedido foi acompanhado de uma solicitação de medidas provisórias. Em 19 de Abril de 2017 o TIJ decidiu, em sede de Convenção de 1965 e no que respeita à Crimeia, que a Federação Russa deveria abster-se de manter ou impor limitações à comunidade Tatar da Crimeia (tártaros de origem turca) na manutenção das respectivas instituições representativas, incluindo o Mejlis (assembleia); e que deveria disponibilizar educação em língua ucraniana. A decisão em matéria de medidas provisórias incluía também a tradicional proibição, dirigida a ambas as Partes, de praticarem actos que possam agravar ou alargar o âmbito do litígio.

Os dois Estados são parte nas duas convenções referidas e, não obstante as objecções russas à competência do TIJ, este considerou-se competente, em 8 de Novembro de 2019, remetendo para os dispositivos daquelas convenções que lhe atribuem a competência para decidir dos litígios relativos à interpretação e  aplicação das referidas convenções.

Em 31 de Janeiro deste ano o TIJ decidiu, por maiorias substanciais, que a Federação Russa violou a Convenção sobre financiamento do terrorismo (votação: 13-2), por não ter investigado as informações fornecidas pela Ucrânia e que apontavam para actividades de indivíduos e de pessoas colectivas que poderiam traduzir-se numa violação da Convenção.

No que respeita à Convenção contra a discriminação racial o Tribunal decidiu que a Federação Russa, pela forma como administrou o sistema de ensino na Crimeia a partir de 2014, violou dois dispositivos da Convenção (13-2).

O Tribunal decidiu igualmente ter a Federação Russa violada a decisão de 2017 sobre medidas provisórias, quer no segmento relativo ao Mejlis (11-4), cujo funcionamento continuou a ser obstaculizado, quer quanto à proibição genérica da prática de actos conducentes ao agravamento do litígio (10-5).

Seguindo a sua jurisprudência tradicional a propósito dos litígios entre Estados, o TIJ considerou que as declarações de violação das duas Convenções por parte da Federação Russa, violações que se mantêm e que devem cessar, dão à Ucrânia satisfação bastante, não sendo necessário ou adequado fixar um outro tipo de compensação, em particular uma indemnização.

Esta sentença será lembrada pela clarificação, de forma lapidar, da inutilidade do argumento anglo-saxónico – invocado pela Rússia – a favor da existência de um requisito processual de aparência de boa fé (clean hands) quando a jurisdição do Tribunal resulta, como era o caso, de cláusulas convencionais incontestáveis.

O Direito, mesmo na limitada dimensão do Direito Internacional Público, quando estão em conflito Estados soberanos, é o arrimo dos mais fracos. A Ucrânia conseguiu, em dois momentos (2017 e 2024) obter decisões jurisdicionais contra o invasor russo. A execução destas decisões do TIJ está na dependência do Conselho de Segurança da ONU, um órgão de natureza política sujeito ao direito de veto dos membros permanentes. Mas a decisão do TIJ é, para a Ucrânia, uma vitória jurídica e política.

A guerra russo-ucraniana: a frente jurídica (II)


O conflito russo-ucraniano não começou a 24 de Fevereiro de 2022, teve uma expressão bélica desde 2014 com a invasão e a anexação da Crimeia.


Em 16 de Janeiro de 2017 a Ucrânia peticionou junto do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) a violação pela Federação Russa de vários dispositivos da Convenção internacional para a supressão do financiamento do terrorismo, de 1999 e da Convenção internacional sobre eliminação de todas as formas de discriminação racial, de 1965. O pedido foi acompanhado de uma solicitação de medidas provisórias. Em 19 de Abril de 2017 o TIJ decidiu, em sede de Convenção de 1965 e no que respeita à Crimeia, que a Federação Russa deveria abster-se de manter ou impor limitações à comunidade Tatar da Crimeia (tártaros de origem turca) na manutenção das respectivas instituições representativas, incluindo o Mejlis (assembleia); e que deveria disponibilizar educação em língua ucraniana. A decisão em matéria de medidas provisórias incluía também a tradicional proibição, dirigida a ambas as Partes, de praticarem actos que possam agravar ou alargar o âmbito do litígio.

Os dois Estados são parte nas duas convenções referidas e, não obstante as objecções russas à competência do TIJ, este considerou-se competente, em 8 de Novembro de 2019, remetendo para os dispositivos daquelas convenções que lhe atribuem a competência para decidir dos litígios relativos à interpretação e  aplicação das referidas convenções.

Em 31 de Janeiro deste ano o TIJ decidiu, por maiorias substanciais, que a Federação Russa violou a Convenção sobre financiamento do terrorismo (votação: 13-2), por não ter investigado as informações fornecidas pela Ucrânia e que apontavam para actividades de indivíduos e de pessoas colectivas que poderiam traduzir-se numa violação da Convenção.

No que respeita à Convenção contra a discriminação racial o Tribunal decidiu que a Federação Russa, pela forma como administrou o sistema de ensino na Crimeia a partir de 2014, violou dois dispositivos da Convenção (13-2).

O Tribunal decidiu igualmente ter a Federação Russa violada a decisão de 2017 sobre medidas provisórias, quer no segmento relativo ao Mejlis (11-4), cujo funcionamento continuou a ser obstaculizado, quer quanto à proibição genérica da prática de actos conducentes ao agravamento do litígio (10-5).

Seguindo a sua jurisprudência tradicional a propósito dos litígios entre Estados, o TIJ considerou que as declarações de violação das duas Convenções por parte da Federação Russa, violações que se mantêm e que devem cessar, dão à Ucrânia satisfação bastante, não sendo necessário ou adequado fixar um outro tipo de compensação, em particular uma indemnização.

Esta sentença será lembrada pela clarificação, de forma lapidar, da inutilidade do argumento anglo-saxónico – invocado pela Rússia – a favor da existência de um requisito processual de aparência de boa fé (clean hands) quando a jurisdição do Tribunal resulta, como era o caso, de cláusulas convencionais incontestáveis.

O Direito, mesmo na limitada dimensão do Direito Internacional Público, quando estão em conflito Estados soberanos, é o arrimo dos mais fracos. A Ucrânia conseguiu, em dois momentos (2017 e 2024) obter decisões jurisdicionais contra o invasor russo. A execução destas decisões do TIJ está na dependência do Conselho de Segurança da ONU, um órgão de natureza política sujeito ao direito de veto dos membros permanentes. Mas a decisão do TIJ é, para a Ucrânia, uma vitória jurídica e política.