1. Aprender, discutir e divulgar a Constituição da República Portuguesa (CRP) constitui, nos dias de hoje, uma quase obrigação cívica e política dos democratas: pelo menos de todos os que, coerentemente, apoiaram o largo arco político que a aprovou e, melhor ou pior, a tem revisto.
A eles se impõe, presentemente, uma importante tarefa cívica: apontar, e se possível encarreirar, os destinos que o país deve seguir, de acordo com os princípios e desígnios constitucionais.
A CRP garante, de facto, um lugar seguro e suficientemente abrangente para retomar uma reflexão democrática e agregadora das diversas correntes políticas que participaram na sua redação e revisões e, respetivamente, as aprovaram, total ou parcialmente.
Enfim, uma discussão amplamente participada pela maioria dos cidadãos do país sobre o que pode e deve ser um projeto político claro; um espaço de compromisso que traga aos portugueses, simultânea e urgentemente, mais justiça social e melhor e mais equilibrado desenvolvimento económico.
Um projeto que, por isso, seja capaz de contrariar, desde já, a hegemonia ideológica que o cintilante, mas ardiloso e fragmentário, discurso do neoliberalismo quer impor como única alternativa para a depreciada situação social atual.
Um projeto democrático que, ao mesmo tempo, torne inaudíveis, por definitivamente supérfluos e, deste modo, intoleráveis, os cantos de sereia da direita radical, nacionalista, racista e xenófoba e aqueles que, apoiando-a, ainda se acoitam no seio dos partidos conservadores democráticos, para melhor os condicionarem e os forçarem a alinhar com aquela.
E, neste ponto, convém ser claro quanto à margem de debate e colaboração democrática que pode existir entre as distintas forças partidárias que povoam o nosso universo político: de um lado, estão os que votaram e se reveem na CRP atual e nos objetivos nela traçados e, do outro, os que a eles se opõem, mais direta ou mais dissimuladamente.
Muitos são, com efeito, os temas e propósitos constitucionais que importam a todos e a cada um dos cidadãos de diversas gerações, condições e simpatias democráticas, que compõem a maioria esmagadora do povo português
2. Por exemplo, a abordagem constitucional do direito ao trabalho e aos direitos dos trabalhadores insere-se perfeitamente nessa reflexão e merece, por isso, ser feita com o contributo de todos.
A discussão de tais direitos ultrapassa – tem de ultrapassar – em muito a sua dimensão estritamente jurídica e mesmo a mais dúctil, mas também mais limitada, leitura económica em que muitos insistem em encerrá-la.
O trabalho e os direitos dos trabalhadores são temas que se inserem amplamente no conceito, sempre aberto e sempre em evolução, de uma cidadania plena.
A CRP definiu e consagrou os direitos dos trabalhadores como direitos fundamentais da cidadania portuguesa (artigos 53.º a 57.º).
Incluiu ainda o direito ao trabalho no âmbito dos direitos económicos, sociais e culturais e, neste plano, definiu também todos os direitos sociais que preveem e completam a condição dos trabalhadores como cidadãos com direitos específicos (artigos 58.ºe 59.º).
Deste modo, se pode e deve dar corpo a um projeto de sociedadde virado para afirmar uma cidadania que busque, com verdade e realismo, realizar um compromisso político verdadeiramente humanista; um programa que conte com o contributo de todos e de cada um para a prossecução do «bem comum».
Isto, de modo a que o conceito de «bem comum» se atualize sempre de acordo com o desenvolvimento socioeconómico, científico e cultural alcançado pelos homens em cada momento e fase da vida coletiva.
Podem os caminhos a percorrer para atingir o «bem comum» incluir percursos, velocidades e propostas diferentes, mas o seu núcleo e objeto visíveis têm, necessariamente, de ser os mesmos, e, em cada momento, algo de muito idêntico.
E ao dizer isto, estamos já a apartar todas as soluções que se baseiam no individualismo radical e no relativismo capitulacionista e que, assumidamente, dispensam os princípios e valores constitucionais.
Princípios e valores justamente orientados para assegurar que a atividade dos homens tem um fim mais solidário, que não consiste apenas na promoção egoísta dos interesses próprios.
Princípios e valores visando efetivamente fazer justiça a todos quantos constroem e participam na realização de tais interesses – simultaneamente próprios e alheios – e, ainda, de todos os que, à margem dessa relação laboral direta, podem, ou devem mesmo, deles beneficiar também.
E não é necessário ser-se um verdadeiro social-democrata, um socialista de esquerda ou mesmo um comunista, para assim pensar.
Recordo aqui, a propósito, as palavras, não muito antigas, de um Papa que tinha fama de conservador em matéria de costumes, mas que, no que respeita à situação do homem trabalhador dizia, entre outras, coisas tão importantes como estas:
«A diminuição do nível de tutela dos direitos dos trabalhadores ou a renúncia a mecanismos de redistribuição do rendimento, para fazer o país ganhar maior competitividade internacional, impede a afirmação de um desenvolvimento de longa duração. Por isso, há que avaliar atentamente as consequências que podem ter sobre as pessoas as tendências atuais para uma economia a curto se não mesmo curtíssimo prazo. Isto requer uma nova e profunda reflexão sobre o sentido da economia e dos seus fins, bem como uma revisão profunda e clarividente do modelo de desenvolvimento, para se corrigirem as suas disfunções e desvios. Na realidade, exige-o o estado de saúde ecológica da terra; pede-o sobretudo a crise cultural e moral do homem, cujos sintomas são evidentes por toda a parte.»
E ainda:
«No número de quantos não respeitam os direitos humanos dos trabalhadores, contam-se às vezes grandes empresas transnacionais e também grupos de produção local.»
(Bento XVI – Caritas in Veritate – 29/6/2009)
3. Ao contrário dos primados do velho constitucionalismo liberal, em face do compromisso histórico encontrado na CRP, os direitos relacionados com a propriedade e iniciativa privadas são nela limitados e orientados para o mesmo fim.
Isto é: legitimam-se na medida em que, de alguma maneira, contribuem também para o interesse geral.
Mas, convenhamos, se, teoricamente, não é em tais direitos, ou em função deles, que a CRP faz assentar a arquitetura dos direitos fundamentais que caracterizam a nossa democracia, então importa, sem os esquecer ou menosprezar, situá-los no sítio certo.
Diz, com efeito, e de forma algo lacónica, o artigo 61.º, n.º 1: «A iniciativa económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral».
Este é o pano de fundo de uma Constituição que entende e privilegia a atividade humana – o trabalho – como inspiradora e orientadora da política e esta como mentora de uma economia pensada para estar ao serviço do homem, e não, como os liberais pretendem, o homem ao serviço da economia.
Discutir e divulgar os mais importantes temas político-sociais, e a maneira como a CRP os aborda, contribuirá, assim, por certo, para ajudar a enraizar uma cultura política democrática – que se quer o mais compreensiva possível – de respeito efetivo, e não apenas propagandístico, pelos direitos humanos e o Estado de Direito.
Por via do conhecimento e da inevitável discussão que a extensão e detalhe de tais direitos exige, é, pois, possível ir projetando, de novo, a esperança no futuro do país que respostas políticas fragmentárias e de curto alcance têm afastado das novas gerações.
4. Vivemos – e é assim que muitos o vêm – no utópico mundo dos «empreendedores» livres e do «empreendorismo» arrojado.
Isto, mesmo que, em geral, os projetos que dão corpo a tal utopia fiquem falidos a um ritmo pelo menos tão grande como o da edificação dos castelos de cartas em que assentam.
E, como dissemos já, escreveu o mesmo Papa Bento XVI, gerando apenas «uma economia a curto se não mesmo curtíssimo prazo».
Tais devaneios individualistas e anárquico – liberais arriscam, porém, erodir, não só os investimentos e apoios públicos despropositados neles envolvidos, como também os já reduzidos laços de responsabilidade comum – mesmo que diferentes – que tecem ainda, na nossa sociedade, a relação existente entre os que trabalham e aqueles para quem eles trabalham.
5. Acresce que a atomização dos que, deslumbrados, pretendem agir em tais circunstâncias como produtores autónomos acaba por contribuir, não para a sua emancipação como homens e cidadãos, mas para a sua mais completa submissão, enquanto verdadeiros trabalhadores por conta de outrem, que, de um modo ou de outro, efetivamente são.
E são-no, realmente, só que, nesta circunstância, isolados e sem direitos laborais diretos e indiretos, sem segurança social, nem a solidariedade dos companheiros, capazes de, com eles, lutarem por melhores condições de vida e por uma «vida boa»
Uma vida decente para todos.
A equilibrada cerzidura que a CRP faz destes direitos, com outros que, embora diferentes, os complementam e que, só articulados e funcionando em conjunto, fazem um sentido coerente na realização da democracia por ela preconizada, necessita, assim, de ser estudada e compreendida pelos mais novos.
Só a mobilização dos mais jovens, em torno da CRP e dos direitos fundamentais nela consagrados, pode, nos conturbados dias de hoje, e nos que inevitavelmente se lhes seguirão, ajudar a reverter o desespero gerador da ilusão liberal que, qual flauta de Hamelin, conduz, agora, uma sociedade sem rumo político de fundo e, por isso, em crise económica permanente.
Discutir com todos, em todos os sítios – e não só, ou essencialmente, nas escolas e universidades – a CRP, a sua filosofia, os seus princípios, os seus valores e direitos fundamentais e sociais poderá, pois, contribuir para reanimar o debate em torno da Democracia, da justiça social, da solidariedade e do empenho coletivo na realização do «bem comum».
Hoje, mais do que nunca, tal discussão e aprendizagem são fundamentais.
Urge, apenas, organizá-la.