Um Portugal deslaçado


Perante os riscos para a Democracia e para o Estado de Direito, havendo condições para fazer o que não foi feito na governação em tempo de normalidade, é tempo de agir, não deixar gangrenar ainda mais o deslaço.


Superado o primeiro ato eleitoral de 2024, nenhuma espuma ilude a dimensão de deslaço das ondas e das marés do país, com evidentes riscos para a coesão, o contrato social e o Estado de direito democrático. São muitas as causas do deslaço atingido, mas a maior é a que resulta das projeções da vontade e do exercício político, nas ações e nas omissões; no linear e no tergiversar; no real e no simbólico, quase sempre em prejuízo dos valores e princípios que custaram a conquistar há quase 50 anos. Por vezes, dá a ideia, no desgaste em surdina de protagonistas políticos em afirmação ou na afirmação, a destempo, de resultados da governação, positivos para o país, mas incompreendidos pela generalidade dos cidadãos, de que há egos e umbigos a sobreporem-se aos interesses gerais do país, à defesa da democracia e à salvaguarda dos pilares do Estado de direito.

O deslaço no funcionamento em soluço das instituições e dos serviços públicos, apesar da carga fiscal e do afago sustentado da ideia de que o dinheiro chega para tudo e de que, havendo resultados de gestão positivos nas finanças, há margem para fazer mais do que se faz. A desconsideração em relação à sucessão de sinais de erosão da confiança, do compromisso e do funcionamento de pilares fundamentais da sociedade portuguesa projeta a existência de resultados da governação para um patamar de secundário, porque o que está em causa é bem mais relevante do que uma qualquer circunstância ou ambição pessoal. A evidente degradação do compromisso, da confiança e das expectativas afeta o coração do pulsar democrático.

O deslaço no compromisso social, no contrato que cada um tem com o interesse geral, na existência de mínimos de direitos e deveres que nos guiam no exercitar das mais variadas dinâmicas e no funcionamento da sociedade portuguesa. A persistência de disfunções no funcionamento do Estado e dos serviços públicos, a não resolução das injustiças e das desigualdades, a insistência em opções políticas sem critério evidente ou sem explicação são meio caminho andado para um perigoso deslaço em que ninguém se sente sujeito a mínimos de observância de regras nos comportamentos individuais e nas interações no espaço comum. É o que acontece quando se permite o acesso e a permanência de máquinas agrícolas em infraestruturas rodoviárias onde a sua circulação está proibida ou o recurso a todos os meios para atingir determinados objetivos de luta. Ou quando o primeiro-ministro e o governo, num quadro de reivindicações de diversos setores de pilares relevantes do Estado, resolvem, sem explicar, atribuir um suplemento de risco à Polícia Judiciária, desconsiderando a presença de risco acrescido em outros órgãos de polícia criminal, do socorro e da proteção civil. Como é possível, não ter tido atenção à sucessão sustentada de sinais de degradação, fazer uma determinada opção e não explicar qual o critério adotado, como se o exercício político na atualidade não tivesse obrigações acrescidas de explicação, de transparência e de escrutínio. Bem sei, que para alguns, na Administração Interna só deveria existir uma polícia e a agricultura deveria ser uma secretaria de Estado da Economia, mas o interesse geral sobrepõe-se a convicções pessoais sem nexo com a realidade concreta do país.

A evidência do deslaço no funcionamento do Estado de direito deveria motivar as maiores preocupações consequentes de todos os  democratas. As instituições funcionam mal, aquém das missões ou em atropelo nos posicionamentos, seja na manutenção dos pequenos poderes ou na concretização de respostas. A justiça, na aparência da ação em relação a situações que se arrastam há anos, posiciona-se mediaticamente, escolhe contextos temporais, apresenta-se com inacreditáveis níveis de inconsistência e afirma-se com difícil perceção dos critérios de ação, de apuro na missão e de geração de confiança no funcionamento, além dos julgamentos na praça pública, das geometrias variáveis e da integração de projeções de interesses na mobilização dos instrumentos do exercício judicial, por exemplo, na escolha dos órgãos de polícia criminal que concretizam determinadas buscas. A autoridade do Estado, fustigada pelos preconceitos e pelas opções políticas, atinge mínimos preocupantes decorrentes das atitudes dos responsáveis e dos comportamentos dos cidadãos, apesar de tudo com uma maioria ainda comprometida com a lei e com a ordem pública.

Portugal é hoje um país demasiado deslaçado para a consistência de funcionamento cívico, democrático e civilizacional de que dispõe. O quadro de degradação real é insustentável, não compaginável com a circunstância de termos um governo de gestão e estarmos em momento eleitoral. Perante os riscos para a Democracia e para o Estado de Direito, havendo condições para fazer o que não foi feito na governação em tempo de normalidade, é tempo de agir, não deixar gangrenar ainda mais o deslaço. Não há nenhuma falta de legitimidade que se possa invocar quando está em causa parte do que conquistámos em 1974: a democracia e o Estado de direito.

Como sempre, não há nenhum ego ou umbigo que se possa sobrepor ao interesse geral, nenhum fim que justifique todos os meios.

Como sempre, mais do que retórica ou chicote, é preciso agir já sobre as causas e as circunstâncias. As que alimentam o deslaço e que dão pasto aos populismos, os extremismos e aos posicionamentos que contribuem para a fragilização do compromisso social. Ontem, já era tarde.

 

NOTAS FINAIS

INCONSISTÊNCIA DO TEMPO NOVO. A AD ganhou nos Açores, o PS perdeu, não repetiu a vitória inconsequente de 2020. Perante as inconsistências e as afirmações, recuperam-se para o presente as soluções de um outro tempo, não por convicção, mas por tática política. Quem ganha sem maioria e quer governar, só conta com a complacência democrática de outros, mas tem de incorporar propostas dessa representação política na ação governativa. Houve tempo em que esse nível de compromisso justificava um rasgar de vestes internas e um fustigar político e mediático. Pode ser virtuoso agora.

INCOERÊNCIA GENERALIZADA. Em tempo de aperto eleitoral, há muita gente a defender o contrário do que dizia e que fundou as suas opções políticas. Imagine-se o cidadão a fazer o mesmo, fazer em função das circunstâncias.

Um Portugal deslaçado


Perante os riscos para a Democracia e para o Estado de Direito, havendo condições para fazer o que não foi feito na governação em tempo de normalidade, é tempo de agir, não deixar gangrenar ainda mais o deslaço.


Superado o primeiro ato eleitoral de 2024, nenhuma espuma ilude a dimensão de deslaço das ondas e das marés do país, com evidentes riscos para a coesão, o contrato social e o Estado de direito democrático. São muitas as causas do deslaço atingido, mas a maior é a que resulta das projeções da vontade e do exercício político, nas ações e nas omissões; no linear e no tergiversar; no real e no simbólico, quase sempre em prejuízo dos valores e princípios que custaram a conquistar há quase 50 anos. Por vezes, dá a ideia, no desgaste em surdina de protagonistas políticos em afirmação ou na afirmação, a destempo, de resultados da governação, positivos para o país, mas incompreendidos pela generalidade dos cidadãos, de que há egos e umbigos a sobreporem-se aos interesses gerais do país, à defesa da democracia e à salvaguarda dos pilares do Estado de direito.

O deslaço no funcionamento em soluço das instituições e dos serviços públicos, apesar da carga fiscal e do afago sustentado da ideia de que o dinheiro chega para tudo e de que, havendo resultados de gestão positivos nas finanças, há margem para fazer mais do que se faz. A desconsideração em relação à sucessão de sinais de erosão da confiança, do compromisso e do funcionamento de pilares fundamentais da sociedade portuguesa projeta a existência de resultados da governação para um patamar de secundário, porque o que está em causa é bem mais relevante do que uma qualquer circunstância ou ambição pessoal. A evidente degradação do compromisso, da confiança e das expectativas afeta o coração do pulsar democrático.

O deslaço no compromisso social, no contrato que cada um tem com o interesse geral, na existência de mínimos de direitos e deveres que nos guiam no exercitar das mais variadas dinâmicas e no funcionamento da sociedade portuguesa. A persistência de disfunções no funcionamento do Estado e dos serviços públicos, a não resolução das injustiças e das desigualdades, a insistência em opções políticas sem critério evidente ou sem explicação são meio caminho andado para um perigoso deslaço em que ninguém se sente sujeito a mínimos de observância de regras nos comportamentos individuais e nas interações no espaço comum. É o que acontece quando se permite o acesso e a permanência de máquinas agrícolas em infraestruturas rodoviárias onde a sua circulação está proibida ou o recurso a todos os meios para atingir determinados objetivos de luta. Ou quando o primeiro-ministro e o governo, num quadro de reivindicações de diversos setores de pilares relevantes do Estado, resolvem, sem explicar, atribuir um suplemento de risco à Polícia Judiciária, desconsiderando a presença de risco acrescido em outros órgãos de polícia criminal, do socorro e da proteção civil. Como é possível, não ter tido atenção à sucessão sustentada de sinais de degradação, fazer uma determinada opção e não explicar qual o critério adotado, como se o exercício político na atualidade não tivesse obrigações acrescidas de explicação, de transparência e de escrutínio. Bem sei, que para alguns, na Administração Interna só deveria existir uma polícia e a agricultura deveria ser uma secretaria de Estado da Economia, mas o interesse geral sobrepõe-se a convicções pessoais sem nexo com a realidade concreta do país.

A evidência do deslaço no funcionamento do Estado de direito deveria motivar as maiores preocupações consequentes de todos os  democratas. As instituições funcionam mal, aquém das missões ou em atropelo nos posicionamentos, seja na manutenção dos pequenos poderes ou na concretização de respostas. A justiça, na aparência da ação em relação a situações que se arrastam há anos, posiciona-se mediaticamente, escolhe contextos temporais, apresenta-se com inacreditáveis níveis de inconsistência e afirma-se com difícil perceção dos critérios de ação, de apuro na missão e de geração de confiança no funcionamento, além dos julgamentos na praça pública, das geometrias variáveis e da integração de projeções de interesses na mobilização dos instrumentos do exercício judicial, por exemplo, na escolha dos órgãos de polícia criminal que concretizam determinadas buscas. A autoridade do Estado, fustigada pelos preconceitos e pelas opções políticas, atinge mínimos preocupantes decorrentes das atitudes dos responsáveis e dos comportamentos dos cidadãos, apesar de tudo com uma maioria ainda comprometida com a lei e com a ordem pública.

Portugal é hoje um país demasiado deslaçado para a consistência de funcionamento cívico, democrático e civilizacional de que dispõe. O quadro de degradação real é insustentável, não compaginável com a circunstância de termos um governo de gestão e estarmos em momento eleitoral. Perante os riscos para a Democracia e para o Estado de Direito, havendo condições para fazer o que não foi feito na governação em tempo de normalidade, é tempo de agir, não deixar gangrenar ainda mais o deslaço. Não há nenhuma falta de legitimidade que se possa invocar quando está em causa parte do que conquistámos em 1974: a democracia e o Estado de direito.

Como sempre, não há nenhum ego ou umbigo que se possa sobrepor ao interesse geral, nenhum fim que justifique todos os meios.

Como sempre, mais do que retórica ou chicote, é preciso agir já sobre as causas e as circunstâncias. As que alimentam o deslaço e que dão pasto aos populismos, os extremismos e aos posicionamentos que contribuem para a fragilização do compromisso social. Ontem, já era tarde.

 

NOTAS FINAIS

INCONSISTÊNCIA DO TEMPO NOVO. A AD ganhou nos Açores, o PS perdeu, não repetiu a vitória inconsequente de 2020. Perante as inconsistências e as afirmações, recuperam-se para o presente as soluções de um outro tempo, não por convicção, mas por tática política. Quem ganha sem maioria e quer governar, só conta com a complacência democrática de outros, mas tem de incorporar propostas dessa representação política na ação governativa. Houve tempo em que esse nível de compromisso justificava um rasgar de vestes internas e um fustigar político e mediático. Pode ser virtuoso agora.

INCOERÊNCIA GENERALIZADA. Em tempo de aperto eleitoral, há muita gente a defender o contrário do que dizia e que fundou as suas opções políticas. Imagine-se o cidadão a fazer o mesmo, fazer em função das circunstâncias.