A propósito do espetáculo «bélico» que nos foi proporcionado no desenvolvimento das diligências processuais levadas a cabo pela PJ na Madeira, quer Cunha Rodrigues, quer Souto Moura, dois antigos e muito prestigiados Procuradores-Gerais da República, entenderam – eles, que raramente se pronunciam, hoje, sobre a vida judiciária – que era importante, desta vez, exprimir publicamente a sua estupefação e discórdia relativamente a tão aparatosa atuação.
Na sequência de tais pronunciamentos, entendeu, também, o diretor da PJ dar a saber que quem, no âmbito da sua autonomia técnica, planeia e decide sobre a oportunidade e os meios a utilizar na concretização das diligências que, no processo, o MP determina, aprova, ou consente é apenas a PJ: no caso, ele próprio.
Ao ouvir e, depois, ler tal declaração, reavivou-se-me a memória de episódios antigos – e que julgava ultrapassados – em que o mesmo tipo de afirmações, proferidas por diferentes responsáveis da PJ de então, foram ditas a propósito de investigações judiciais que envolviam figuras relevantes da nossa República.
Estávamos, na altura, no contexto político do que se convencionou chamar a atuação das «forças de bloqueio» e, desde então, nunca mais a relação entre a Justiça e o poder político voltou a ser totalmente pacífica.
Tais afirmações, com uma carga claramente mais política do que técnica, criaram, então, um desnecessário e muito prejudicial clima de desentendimento institucional e operacional, entre a polícia e o MP.
Esta magistratura é, nos termos da Constituição e da lei – recorde-se – o titular legal da ação penal e, portanto, dos processos de inquérito em que se desenvolvem as diligências que incumbe às polícias realizar.
Com efeito, e de acordo com a lei, os órgãos de polícia criminal que o MP entenda estarem em melhores condições para o apoiar na execução das diligências processuais devem agir no processo sob a orientação deste, designadamente quando se trata de tomar opções estratégicas e concretizar ações que, no imediato, se possam revelar e ser entendidas como institucionalmente sensíveis.
Tal orientação superior deve, por conseguinte, nos termos da Constituição e da lei, incidir não apenas no tipo de diligências a concretizar, como também no plano estratégico e tático-operacional.
Isto, tanto no que respeita à oportunidade e ao momento em que estas últimas devem ocorrer como, ainda mais importante, na escolha dos alvos que, circunstancialmente, tais diligências devem atingir.
Recordemos, sempre, que uma investigação criminal judicializada – como é a nossa – tem como único objetivo colher elementos de prova sobre os factos criminais em averiguação, tendo em vista, quando se justifique, a sua apresentação em juízo.
Por se tratar de uma investigação judicializada, deve, também por isso, ser pensada de acordo com os critérios a que o MP está adstrito – legalidade e objetividade – e, ainda, ser compatível e favorecer mesmo a estratégia que ele vá prontamente definindo para a sua futura apresentação e possível reprodução em julgamento.
Por tal razão, a investigação criminal judicializada não se justifica por si própria e, menos ainda, para si própria.
Não se trata, portanto, de uma espécie de atividade de «inteligência» cuja informação possa ser usada para qualquer outro fim – mais ou menos legal – que não o do exercício da ação penal.
Em nome da autonomia técnica e tática, não pode, nem deve, assim, qualquer órgão de polícia criminal – aí se incluindo a PJ – determinar por si próprio e, à margem da orientação do titular do processo, o que fazer e quando.
O mesmo se diga da afetação prioritária de meios policiais a uma, e não a outra, investigação: tal opção não cabe, pois, nos juízos discricionários dos responsáveis da polícia.
A definição das prioridades das investigações e, consequentemente, das diligências a realizar em cada processo compete ao MP, mesmo que este deva, para tanto, dialogar com a hierarquia das polícias que apoiam as investigações
A autonomia técnica permite às polícias, é certo, escolher o contingente de agentes que considerem mais adequado à realização das diligências determinadas pelo MP, bem como definir todos os meios materiais e tarefas práticas exigíveis para o seu sucesso.
Desde, claro, que a sua utilização não contenda diretamente com direitos, liberdades e garantias consagradas na Constituição, ou ultrapasse o que é proporcionalmente adequado ao caso, pois daí podem resultar, mesmo que involuntárias, consequências e leituras não apropriadas aos específicos fins da investigação criminal judicializada.
Face a tal eventualidade, só os juízes e os procuradores, conforme a sua gravidade e importância, as podem decidir ou autorizar.
Este delicado esquema de relacionamento funcional, quando bem e sensatamente gerido pelos responsáveis do MP e da polícia, não devia levantar problemas.
Porém, não raramente, acaba por ser a polícia que, em nome da sua autonomia técnica e de uma real escassez de meios, gere, de facto, a oportunidade da execução das diligências investigatórias que efetua em cada processo.
Acresce que, assim, é também a polícia que define – formal ou informalmente – o dia e a hora de dar conhecimento público da existência de uma específica investigação criminal.
Dito de outro modo: quando esse relacionamento institucional resvala para um desentendimento frontal, acontece que é a polícia que, de facto, determina, ou não, a afetação dos meios que possibilitam a concretização das diligências nos processos que ela mesma escolhe, contornando o que, sobre a competência para a definição das prioridades, resulta, direta ou indiretamente, da legislação e das diretivas da PGR sobre política criminal.
É ainda ela que assume e define, por esta via, só aparentemente gestionária, o momento útil da realização de tais diligências e, deste modo, também, a sua publicitação, assim como, por inerência, as eventuais consequências políticas das investigações que de tais opções possam resultar.
A realização da política criminal que, nos termos da Constituição, a Assembleia da República aprova por lei, para ser processualmente concretizada pelo MP, escapa, pois, na prática, com frequência crescente, das mãos desta magistratura.
Atentemos, porém, que as opções (concretas) respeitantes à execução da política criminal são tão sensíveis que, para assegurar a isenção e objetividade da sua realização, o MP é, também para esse fim, dotado de autonomia estatutária – independência lhe chama já o Tribunal de Justiça da União Europeia – perante os poderes constitucionais de natureza política e judicial.
Pelo contrário, as polícias – incluindo a PJ – são tuteladas pelo poder executivo, como, de resto, acontece em muitos outros países.
Tais diferendos na definição (teórica e prática) das prioridades e correspondentes alocações de meios de investigação foram, aliás, mais frequentes quando os dirigentes de vários níveis da PJ eram, também eles, magistrados – judiciais ou do MP – e, nessa sua dupla qualidade, acabavam por, casualmente, esquecerem o papel que, em cada momento, lhes cabia desempenhar.
Foi, durante uns anos, como se o país tivesse, na prática, não um, mas dois, Procuradores-Gerais da República e o dobro dos Procuradores-Gerais Distritais.
Só quando a PJ passou a ser dirigida pelos responsáveis dessa polícia – por polícias de carreira – é que as tensões anteriormente existentes abrandaram e pareciam mesmo ter sido definitivamente resolvidas.
Os poucos e diminutos atritos restantes passaram, então, a situar-se, sobretudo no plano da publicitação (concomitante ou sucessiva) das operações investigatórias.
Dada a sua especial vocação operacional e principal função institucional – assegurar a paz pública e garantir a confiança dos cidadãos nas instituições do Estado – as polícias sempre privilegiam a comunicação com os cidadãos e, por tal razão, a contactos constantes com os meios da comunicação social.
Já o MP, porque, em rigor, direcionado unicamente para o exercício da ação penal e para intervir em julgamento – que é público – não raro descuida tal importante tarefa.
Também neste aspeto, tem a polícia trunfos de que o MP carece, ou que, por culpa sua, dificilmente sabe gerir.
Tenha-se, a propósito, em atenção, neste particular aspeto, o que recentemente sucedeu com as técnicas distintas de publicitação de algumas operações policiais, realizadas no âmbito de diferentes investigações criminais, e cuja concretização foi, cuidadosamente, atribuída pelo MP, nuns casos à PSP e, em outros, à PJ.
Em suma, face a uma opinião pública mal informada – e, em certos casos, propositadamente desinformada – parece importante clarificar todos estes aspetos essenciais ao planeamento e ao desenvolvimento das ações de investigação criminal.
Com efeito, tais aspetos podem ter, como se tem visto, repercussões públicas de natureza política e institucional, que escapam ao objeto específico dos processos criminais e podem, inclusive, perturbar, em função até da natureza dos crimes que se perseguem, o normal funcionamento das instituições democráticas.
E é, por isso ocorrer, que – sem que se enjeitem, por princípio, responsabilidades próprias – o MP é, cada vez mais frequentemente, acusado de tenebrosas maquinações políticas que, em rigor, como instituição, nunca desenvolveu, nem imaginou poder desenvolver.
Se tais maquinações políticas acontecem – e, sabemos, quão difícil é negar, por vezes, o que, não sendo verdade, parece a todos por demais evidente – a responsabilidade do MP não decorre, estou em crer, de uma sua iniciativa institucional.
O que acontece – quando acontece – advém, sobretudo, no que à participação do MP diz respeito, da imprudência, e até de alguma ingenuidade, de certos magistrados mais afoitos, mas, obviamente, menos vividos civicamente e pouco, ou nada, apoiados superiormente.
Mas aí, sejamos justos: «à política o que é da política e à justiça o que é da justiça».
PS: Parabéns à PJ pela oportuna valorização de uma das componentes do seu regime remuneratório.