Infertilidade. ‘Um Principezinho para todas as famílias’

Infertilidade. ‘Um Principezinho para todas as famílias’


Magda e Paulo, de 45 e 46 anos, respetivamente, lutaram durante mais de 10 anos para serem pais.Joana Freire, diretora-executiva da Associação Portuguesa de Fertilidade, e Eurico Reis, juiz desembargador jubilado e antigo presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, falam dos desafios da infertilidade.


Conheceram-se no liceu, há mais de 30 anos. Eram grandes amigos mas, entretanto, cada um seguiu a sua vida. Dois anos depois encontraram-se e estão juntos até hoje. Casaram-se em plena pandemia porque sempre disseram que se tivessem filhos, casariam antes. Mas, que se tal não acontecesse, casariam no aniversário de 25 anos de namoro. «Tivemos sempre o projeto de família, o Paulo até quis ter filhos primeiro do que eu, mas chegámos a um momento em que percebemos que não os poderíamos ter de forma natural», explica Magda Antunes, arquiteta de 45 anos. «Começámos pelos tratamentos iniciais, que são a estimulação das hormonas, entre outros. E, entretanto, passámos então para a fase das inseminações, foram muitas e não dava resultado. Fomos para a fase das fertilizações in vitro e também não estavam a resultar. Nunca tinha ficado psicologicamente afetada, mas a partir de determinada altura começou a ser muito pesado. Quando sabia que alguém estava grávida, ficava tristíssima: não por a pessoa estar grávida, mas por nunca mais chegar a nossa vez. Ficava sem esperança e sem chão», desabafa Magda, com a concordância de Paulo Nora, seu companheiro, de 46 anos, politólogo e gestor, consultor de political & economic intelligence.

«Sempre achámos que a ciência conseguia tudo, mas também é falível. Mas achámos que conseguiríamos, até porque temos um amor muito incomum hoje em dia. Por isso, quando tivemos o Bernardo Maria… Soubemos que era fruto do nosso amor enorme! Depois de tanta luta, ele nasceu e, para nós, é o bebé mais lindo do mundo! Está sempre a sorrir e é um menino muito tranquilo», dizem, com o orgulho notório na voz. «Esta é uma causa pela qual ninguém quer dar a cara. Ninguém ou quase ninguém. É uma doença silenciosa que afeta toda a gente, de diversas idades, diversas profissões… Não há classes sociais sequer», sublinha Paulo. A infertilidade atinge cerca de 10 a 15% da população em idade reprodutiva, tendo causas como fatores femininos, fatores masculinos, fatores mistos e causas inexplicadas. «Queremos mostrar que se as pessoas tiverem a nossa persistência e a nossa determinação, e tiverem as ajudas necessárias, podem conseguir ter filhos como tanto almejam. Para além dos nossos amigos e familiares, tivemos sempre a Associação Portuguesa de Fertilidade do nosso lado».

Fundada em maio de 2006 por um grupo de pessoas que enfrentavam desafios de fertilidade, a APFertilidade tem como principal propósito oferecer suporte, informação e defesa a essa comunidade. Atualmente, possui mais de 15.000 membros e baseia-se em alguns pilares fundamentais: apoio médico e psicológico – a associação visa apoiar e promover assistência médica e psicológica para todas as pessoas que enfrentam problemas de fertilidade -, informação detalhada sobre fertilidade em Portugal – procura criar e compartilhar uma base de informações abrangente sobre fertilidade no contexto português -, rede de centros de tratamento equilibrada – trabalha para promover a formação de uma rede de centros de tratamento, tanto públicos quanto privados, de forma geograficamente equilibrada – debate público e científico – promove discussões públicas e científicas sobre questões relacionadas com a fertilidade, através de eventos científicos, ações de divulgação e sensibilização – e representação institucional – atua como representante das pessoas com problemas de fertilidade perante instituições públicas e privadas, defendendo os seus interesses.

É destes pilares que fala Joana Freire, de 37 anos, diretora-executiva da APFertilidade, que viveu uma mudança significativa na sua saúde aos 17 anos, quando recebeu o diagnóstico da síndrome de Mayer-Rokitansky-Kuster-Hauser, abreviada como MRKH, uma condição congénita que afeta os órgãos reprodutores, especificamente resultando na ausência do canal vaginal e do útero. «A associação nasceu para dar resposta a todos os casais que passam por problemas de fertilidade. É essa a nossa missão: apoiar e esclarecer. Se houver questões do foro clínico, reencaminhamos para um médico da nossa base de dados para conseguir ajudar. Damos apoio também em relação a alguma justificação que seja necessária a nível de trabalho, apoio jurídico e como associação temos várias atividades de sensibilização, vamos às escolas para os jovens saberem que é importante cuidarem da saúde reprodutiva», resume.

«Além disso, prestamos apoio psicológico. Temos também o nosso site oficial com informação importante. E temos um papel fundamental na questão de tentar pressionar os políticos para termos melhorias na procriação medicamente assistida (PMA). A associação esteve envolvida nos avanços que houve nestes últimos anos», sublinha, lembrando que existem quatro centros de PMA no Norte, dois no Centro, três em Lisboa e Vale do Tejo, um na Madeira e 17 no setor privado. «Estamos a aguardar a criação de um centro na zona Sul. Além disso, em alguns centros de PMA há falta de recursos humanos e físicos», revela Joana Freire, dizendo que os casais esperam até três anos para conseguir ter gâmetas disponíveis. E na gestação de substituição, que tem sido uma das lutas da associação, ainda não conseguiram que esteja novamente disponível. «O Estado e, principalmente, o Ministério da Saúde não dá importância a esta questão», lamenta.

Eurico Reis, juiz desembargador jubilado, presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA) entre maio de 2007 e fevereiro de 2018 – tendo cessado funções como forma de protesto contra o acórdão do Tribunal Constitucional de 24 de abril de 2018 que declarou inconstitucionais vários artigos da Lei que aprovou a gestação de substituição – esclarece que «a primeira criança que foi concebida com utilização de PMA foi a inglesa Louise Brown, que nasceu a 25 de julho de 1978» e «a primeira criança portuguesa nasceu a 25 de fevereiro de 1986 e chama-se Carlos Saleiro». Relativamente ao percurso legislativo desta temática, lembra, tal como a APFertilidade, que a primeira lei da PMA em Portugal é de 2006, sendo que em 2009 foi publicado o regime especial de comparticipação de alguns medicamentos para tratamento de infertilidade. Em 2011, o Centro Hospitalar do Porto foi autorizado a criar um Banco Público de Gâmetas e, volvido um ano, deu-se a aprovação do projeto de lei para regulamentação da maternidade de substituição. Em 2015, foram aprovados os requisitos técnicos para a análise de tecidos e células de origem humana e, no ano seguinte, foi promulgado o decreto que regulamenta as técnicas de PMA e o acesso à PMA a todas as mulheres. Em 2017, houve três pontos-chave: alteração do prazo de criopreservação de gâmetas e tecidos testicular e ovárico, despacho que regulamenta o acesso à gestação de substituição e despacho que atribui compensação aos dadores de gâmetas. Em 2018, surgiu o Acórdão do Tribunal Constitucional que se pronuncia pela inconstitucionalidade por violação do princípio de dignidade humana na gestação de substituição e da confidencialidade aos dadores de gâmetas. Em 2019, foi a vez do Acórdão do Tribunal Constitucional que se pronuncia pela inconstitucionalidade do direito ao arrependimento da gestante. Dois anos depois, ocorreu a promulgação à alteração do regime jurídico aplicável à gestação de substituição e os holofotes estiveram sobre, também, o projeto de resolução para a não exclusão de mulheres dos procedimentos de PMA por atrasos devido à pandemia e a aprovação do diploma de técnicas de PMA através de inseminação com sémen após a morte do dador. Em 2022, deu-se o alargamento do acesso a tratamentos de PMA para mulheres com doença grave até aos 50 anos e 2023 foi o ano do projeto de lei que diz respeito às medidas de apoio a mulheres com endometriose.

«O problema da infertilidade sempre existiu, mas a tendência é que se agrave devido a fatores como o stress, a poluição e, no fundo, as nossas vidas pouco saudáveis. Não promovem a fertilidade. As técnicas de PMA ainda têm insucesso. Nem toda a gente consegue alcançar a satisfação da sua vontade de ter filhos. Em primeiro lugar, há que continuar a investigar. A investigação científica é fundamental para que as técnicas sejam cada vez mais aperfeiçoadas. Já houve mais dinheiro a ser investido nesta área. E é lamentável que a classe política não entenda que isto é essencial até para o desenvolvimento do país, para sairmos desta cepa torta em que estamos», salienta Eurico Reis, adiantando que «o segundo ponto é o alargamento dos meios disponíveis para os casais e as pessoas inférteis». «Neste momento, o número de centros é muito limitado, estão subfinanciados e é necessário aumentá-los. Tanto os públicos como os privados».

«Na gestação de substituição, o impasse persiste e as pessoas têm de ir para o estrangeiro. E o fator económico pesa. E se há quem vá para países bons como os EUA, há quem vá para outros em que não se sabe bem o que acontece. É profundamente lamentável que as coisas continuem como estão. Por outro lado, falha a regulamentação. Fui presidente do CNPMA mas, a certa altura, comecei a insistir na ideia de que devia ser uma verdadeira entidade reguladora. É uma entidade reguladora, mas não tem estrutura para isso. Os seus membros não estão em trabalho efetivo, mas sim em part-time. Têm as suas atividades, mas trabalham muito no CNPMA! E há o problema das inspeções: se não há inspeções, as pessoas têm a tendência de não cumprir as leis. Tem de se garantir a idoneidade dos procedimentos», frisa. «Costumo dizer que à virtude deve bastar ser virtude, não é preciso ser outras coisas como heroica. E quando se vê quem não tem a mesma firmeza e ética a prosperar e ficamos ‘atrofiados’… É mesmo preciso muita força. O não cumprimento das regras permite um enriquecimento mais fácil. Até para garantir uma concorrência leal é indispensável a existência de uma entidade reguladora».

Por todos estes motivos, Magda e Paulo querem celebrar o primeiro aniversário de Bernardo Maria de forma diferente. Inspirando-se no ‘Principezinho’, de Antoine de Saint-Exupéry, e na ideia, transmitida pela APFertilidade, de que todas as famílias, se assim o desejarem, merecem ter um Principezinho, realizarão um aniversário solidário para auxiliar esta associação. Assim, a ideia é de que não haja presentes para Bernardo Maria, mas sim donativos para a APFertilidade, que tanto necessita deles para continuar a ajudar as famílias que sofrem de problemas de fertilidade. «‘O Principezinho’ tem mensagens incríveis para as crianças mas, acima de tudo, para os adultos. Por isso, achámos que seria o símbolo ideal para este evento que estamos a preparar para celebrar o primeiro ano de vida do nosso menino. Queremos muito que outras famílias, que sonham ter filhos, possam viver esta felicidade diária que vivemos desde as 00h57 do dia 19 de janeiro de 2023», dizem Magda e Paulo. «Existe um sentimento que parece ainda não ser proferido. Dizem que a sociedade civil sabe lidar com muitas situações sensíveis da vida, mas não sabe lidar com esta causa silenciosa. E a expressão ‘Foi porque não teve de acontecer’ é extremamente angustiante porque, apesar de entender só quem passa por isto, a tristeza de um ‘não’ é sofrida como a perda de uma vida e este sentimento só é valorizado por quem passa por esta dor. Por isso, é fundamental ajudar a APFertilidade», concluem.

«Mas os olhos são cegos. Tem de se procurar com o coração», lê-se no ‘Principezinho’. E é isso que Magda, Paulo, Joana e Eurico têm feito no seu percurso.