Enquanto membro da direção de uma associação internacional de juízes e procuradores europeus (MEDEL), fui, um dia, convocado para testemunhar numa audiência pública promovida pelo Conselho Superior da Magistratura (CMS) francês, num processo disciplinar movido pelo Ministério da Justiça de França contra um procurador substituto.
Estava em causa uma intervenção processual que o procurador substituto tomara, na ausência de um superior seu – que se encontrava de férias algures nos Himalaias, supunha-se – à revelia da orientação que, supostamente, este pretenderia dar ao dito processo e de que, supostamente, também, o acusado teria tido prévio conhecimento.
Não vou aqui descrever o caso, pois ele comportava muitas vertentes e mesmo algumas peripécias pícaras, que me suscitaram, então, e suscitam ainda hoje, muitas dúvidas e algumas certezas a propósito do sistema francês de governo das magistraturas e da importância e, sobretudo, da necessária transparência da intervenção hierárquica no processo penal.
O que me interessa aqui relatar é, sobretudo, a coreografia e a forma como decorreu a sessão do CSM francês.
É dar conhecimento do exigente formalismo e profundo respeito pelas possibilidades de contraditório e defesa que revestiu toda a sessão de tal órgão em que intervim.
Por ser uma sessão pública – ali se encontrando representada, também, toda a imprensa – decorreu, por isso, numa das maiores e mais importantes salas de audiência do Palácio de Justiça de Paris.
A etiqueta mais impressionantemente visível resultava, desde logo, dos ricos trajes dos funcionários e magistrados franceses, mas, também, de toda uma verdadeira liturgia que rodeava o desenvolvimento da sessão.
Ela evidenciava-se, como dissemos, nos trajes de gala envergados pelos funcionários que apoiavam tal exercício processual: todos eles devidamente vestidos e engalanados com alamares e botões dourados nos librés azuis escuros e, além disso, calçando luvas brancas.
Depois, mais extraordinariamente, mostrava-se, ainda, na riqueza e colorido de alguns dos ornamentos luxuosos das indumentárias profissionais dos magistrados e membros do Conselho Superior da Magistratura (CSM) que, de cima de uma bancada única, nos olhavam, e nos interrogavam, à vez, usando, para meu espanto, estranhos barretes.
Para mim – habituado a becas, togas e capas pretas de uma simplicidade quase jesuítica e, na maioria das vezes, semiabertas e malvestidas – o confronto com tal rigor e riqueza indumentária não podia deixar de ser perturbante.
Todavia, foi, sobretudo, o rigoroso rito processual seguido nos trabalhos que mais me impressionou.
De um lado, o acusador representando o Ministério da Justiça, depois o representante da hierarquia do MP, por fim, e no outro lado da sala, os advogados do acusado, e os delegados das três associações sindicais que apoiavam o procurador alvo de procedimento disciplinar, mesmo que, representando cada uma delas tendências ideológicas distintas.
Primeiro, falou a acusação através do representante do MJ e com o apoio, mais ou menos concertado, do parecer oralmente exposto pelo representante da hierarquia do MP.
Entre as peripécias da alucinante «estória» sustentada por ambos, destacaram-se as que se relacionavam com o envio, pelo governo, de um helicóptero para localizar, naquelas montanhas do oriente longínquo, o procurador chefe do acusado.
Para o governo francês de então, era fundamental que, ante o conhecimento prévio da decisão que o magistrado do MP substituto iria tomar no caso, o seu superior determinasse e disso desse conhecimento oficial, por escrito – em despacho pessoal, proferido, inclusive, no sítio onde veraneava – do sentido diverso da intervenção que preconizava para o caso.
Tal facto, porém, não veio a acontecer, uma vez que ele não foi encontrado e a acusação no caso disciplinar teve de bastar-se com a insinuação, mais ou menos documentada, mais ou menos inferida, de que o procurador substituto teria tomado prévio conhecimento da orientação a seguir e não a respeitara.
Importa dizer aqui que, em França, as ordens hierárquicas dirigidas a processos concretos são permitidas, mas devem, por uma questão de transparência e personificação de responsabilidades, ser escritas e constar dos autos para poderem valerem como tal, nos termos do que o Código de Processo Penal francês estipula.
Foram, por isso, discursos longos, muito estruturados e melhor pensados, tanto no que diziam, como no que omitiam na descrição dos factos e, ainda, em relação aos argumentos jurídicos que justificavam a acusação disciplinar.
Como depressa se tornou óbvio, tais discursos estavam, porém, muito condicionados pelas cautelas a ter no relato e na explicação das diligências promovidas pelo governo para localizar o procurador chefe, decididamente anómalas e verdadeiramente excecionais.
Devido, precisamente, a tais cautelas, nunca seria fácil, antes pelo contrário, provar todo o necessário conjunto de situações que iriam formar a culpa do acusado.
Isto quer a infração disciplinar fosse configurada como desobediência ou, mais benignamente, como deslealdade.
Deste modo, o magistrado que, no processo, e naquela sessão, representava o MJ viu-se na necessidade de ousar colmatar o enredo da acusação com raciocínios meramente dedutivos, alguns, aliás, apenas concebíveis no plano das mais incertas hipóteses, mas, realmente, de muito difícil ou quase impossível prova direta.
A audácia comprometida e, notoriamente, pouco objetiva do acusador, designadamente quando teve, na sua acusação oral, de expor factos exatos e verdadeiramente comprováveis perante uma assistência maioritariamente de juristas, tornou-se, assim, mais trabalhosa e verdadeiramente arrojada.
De um lado, afirmava-se que o acusado sempre soubera qual o sentido da orientação superior em relação a tal processo; de outro, relatava-se toda a rocambolesca busca do procurador-chefe para que este lavrasse um despacho escrito que chegasse, formalmente, ao conhecimento do procurador substituto e o comprometesse na posição que iria tomar; o que não chegou a acontecer.
Do lado da defesa, todos usaram da palavra, manifestando sempre o respeito e admiração profissional que, pelo currículo, lhes merecia a pessoa do procurador substituto acusado, e expondo, com toda a liberdade discursiva forense, os pontos de vista mais duros sobre – em seu entender – a correta atuação do dito magistrado e a pouco fatualizada e fracamente fundamentada iniciativa processual da acusação governamental.
Isto é: manifestando uma crítica explícita e sem rebuço em relação à queixa pouco concreta contra aquele procurador substituto, tal como formulada, inicialmente, pela hierarquia do MP e sustentada, depois, no processo e em audiência pública, pelo representante do MJ enquanto chefe máximo de tal magistratura.
Notei, também, com admiração, enquanto membro da tal associação europeia de magistrados, a atenção e respeito que ao CSM mereceram as palavras dos representantes das associações e sindicatos de magistrados ali representados.
Isto, apesar da forma direta e livre como, oralmente, criticavam a iniciativa do MJ e a posição nela desempenhada pela hierarquia do MP.
Em França, existe, aliás, no que respeita à relação hierárquica processual do MP, uma curiosa máxima que diz: «la plume est serve, la parole est libre», querendo com isto significar que, em audiência, os magistrados do MP nela envolvidos têm total liberdade de análise da prova produzida, como, de resto, convém a uma magistratura que se quer magistratura e que, por isso, deve especial respeito à objetividade na análise da prova efetivamente produzida em julgamento.
Não pode, pois, haver instruções superiores para que o magistrado do MP conclua, em julgamento – e à revelia da prova aí efetivamente produzida –, de acordo com o que lhe foi previamente determinado pelos seus superiores, sugestionados estes, ou não, pelos procuradores mais diretamente envolvidos no acompanhamento e orientação das investigações concretizadas pelo juiz de instrução.
O estilo livre e acutilante usado pela defesa – percebo hoje – seria difícil, ou quase impossível, entre nós, mais habituados que estamos ao respeitoso respeitinho das fórmulas, do que à consideração objetiva da substância das críticas.
Depois, num longo e detalhado discurso, falou, quando convidado a fazê-lo, o acusado, censurando direta, mas expressivamente, todo o processo e o tipo de acusações de que era alvo.
Também ele, apesar de visivelmente condicionado pela acusação de que era alvo, foi livre na oratória e duro nas conclusões.
Quem, em tal situação, é acusado de não respeitar a hierarquia, parte, logo – é bom de ver – de uma posição psicologicamente condicionada.
Como testemunha, fui, sobretudo, interrogado sobre o conceito de autonomia do MP que a associação europeia que eu representava defendia, tendo como base pronunciamentos vários do Conselho da Europa e documentos próprios que antecederam aqueles e os completaram depois.
Na altura, em França, devido tomadas de posição do Conselho da Europa e da jurisprudência do Tribunal de Estrasburgo, esta era uma questão política candente.
Respondi, invocando tais documentos e expondo, também, o grau de abertura e responsabilidade individual de que os procuradores portugueses se arrogavam – julgo que se arrogam ainda – e as posições claras e responsáveis que exprimiam no processo, muitas vezes por escrito e perante a hierarquia, quando desta discordavam e invocavam, para não acatar a sua orientação, também escrita, a violação da sua consciência jurídica.
Desta experiência – única para mim – resultou a aprendizagem da importância que, para a defesa dos magistrados, e para a da sua credibilidade ante a sociedade, pode ter a forma pública como decorrem, a pedido dos magistrados acusados, as sessões de um processo disciplinar moderno e específico das magistraturas e adequado às exigentes, complexas e responsabilizantes funções por elas desenvolvidas.
O acesso livre que, em igualdade de circunstâncias, toda a imprensa teve a tais sessões do CSM, contrasta igualmente – pela positiva – com a prática seletiva e, por isso, manipuladora existente em países com menor tradição democrática, no que respeita à relação que certas autoridades têm com a imprensa.
Confirmei também que muito do formalismo que rodeia a Justiça disciplinar francesa garante, afinal, um grau superior de transparência, rigor e responsabilidade na atuação dos seus órgãos de governo e disciplina.
A transparência e publicidade de atuação do CSM francês, mais a liberdade de imprensa que a vigia e promove, tornam muito mais responsáveis e cuidadas as intervenções dos magistrados envolvidos nos processos disciplinares.
Na verdade, também para a defesa da independência e autonomia das magistraturas e dos magistrados, é fundamental o apoio crítico de toda uma imprensa verdadeiramente livre e conhecedora e, por isso, vigilante e escrupulosa nas notícias que dá e nas análises que faz.
Nos dias perigosos que, para a Democracia e o Estado de Direito, vamos vivendo e que ameaçam agravar-se ainda mais, devíamos todos empenhar-nos em que os órgãos próprios de governo das magistraturas possam garantir, intransigentemente, uma informação regular e objetiva sobre a Justiça, o seu funcionamento e os casos com que esta lida.
Só assim, se impedirá que o noticiário forense possa ser manipulado de dentro e de fora do sistema de Justiça e, mais do que informar, sirva, hoje, de verdadeira arma política e de promotor de guerras (inter e intra) corporativas ou, até, de mero instrumento de promoção pessoal e profissional.