Eutanásia


O critério maior para solicitar a eutanásia é a existência de sofrimento duradouro e insuportável, considerado intolerável pela própria pessoa. Trata-se de uma condição pessoal, no plano existencial, e não necessariamente de uma situação médica.


Através da Lei n.º 22/2023, a Assembleia da República aprovou as condições em que a morte medicamente assistida não é punível em Portugal. Trata-se de um tema complexo, profundo e disruptivo que mereceu uma acalorada discussão por parte da população. Interessa esclarecer o que se entende por eutanásia, o que a distingue de assistência médica ao suicídio, em que situações é que se trata de um ato voluntário por parte do doente, e qual a posição da medicina neste contexto.

O critério maior para solicitar a eutanásia é a existência de sofrimento duradouro e insuportável, considerado intolerável pela própria pessoa. Trata-se de uma condição pessoal, no plano existencial, e não necessariamente de uma situação médica. Isto porque a medicina felizmente consegue hoje debelar grande parte dos casos de dor crónica insuportável e de outros sintomas incapacitantes. Isto é, no limite o que se trata é de permitir o suicídio racional, em casos de sofrimento existencial irredutível – e apenas em caso de doença grave e incurável ou de lesão definitiva de gravidade extrema – quando a medicina e os cuidados paliativos nada têm a oferecer, para além de um acompanhamento humano e compassivo. A possibilidade de se dispor diretamente da vida tratou-se de uma mudança radical de paradigma para a sociedade portuguesa. Por um lado, afirmou-se o inegável direito de cada pessoa exercer a sua liberdade ética pessoal, por outro manteve-se o legítimo direito dos médicos exercerem a sua liberdade de consciência, garantindo-se, porém, a continuidade de cuidados.

Uma das principais críticas a esta legislação é a possibilidade de se desvalorizar a vida humana abrindo a porta a práticas involuntárias, tal como a eutanásia em crianças ou em pessoas com problemas mentais. Para evitar esta “rampa deslizante” foi criado um complexo sistema de acompanhamento que inclui a escolha por parte do doente de um médico orientador, a consulta a um médico especialista da doença que motivou o pedido de morte assistida, a eventual opinião de um médico psiquiatra e, por fim, a supervisão de todo o processo por uma Comissão de Verificação e Avaliação.

Em todo o caso, importa clarificar alguns aspetos. Primeiro, com esta evolução legislativa não se criou em Portugal um “direito à eutanásia”, como acontece em outros países. Apenas se considera que a morte medicamente assistida não é punível em situações muito específicas. Pelo que a vida humana continua a ser um valor ético da maior relevância. Segundo, trata-se apenas de decisões individuais de adultos competentes que manifestem reiteradamente esta vontade. Na esteira do respeito por uma autonomia responsável, a morte medicamente assistida só pode ocorrer por eutanásia quando o suicídio medicamente assistido for impossível por incapacidade física do doente. Por fim, devem implementar-se as ferramentas digitais adequadas para garantir a privacidade dos dados constantes no registo clínico especial efetuado deliberadamente para efeito de morte assistida. 

Para uma aplicação efetiva desta lei devem implementar-se medidas concretas para aumentar a informação dos doentes sobre a eutanásia e as condições em que se pode efetivamente aplicar. Ao sistema de saúde compete a tarefa de articular procedimentos, implementar aconselhamento psicológico adequado, referenciar os doentes para cuidados paliativos quando solicitado, e garantir que nenhum pedido legítimo de eutanásia é recusado por falta de condições ou por objeção de consciência dos profissionais de saúde. Por fim, importa que os profissionais de saúde, e as suas associações profissionais, contribuam ativamente para esclarecer os doentes e incrementar os níveis de literacia da população nesta matéria para que os doentes tomem decisões verdadeiramente informadas.  

 

Presidente da Comissão de Ética da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto

Eutanásia


O critério maior para solicitar a eutanásia é a existência de sofrimento duradouro e insuportável, considerado intolerável pela própria pessoa. Trata-se de uma condição pessoal, no plano existencial, e não necessariamente de uma situação médica.


Através da Lei n.º 22/2023, a Assembleia da República aprovou as condições em que a morte medicamente assistida não é punível em Portugal. Trata-se de um tema complexo, profundo e disruptivo que mereceu uma acalorada discussão por parte da população. Interessa esclarecer o que se entende por eutanásia, o que a distingue de assistência médica ao suicídio, em que situações é que se trata de um ato voluntário por parte do doente, e qual a posição da medicina neste contexto.

O critério maior para solicitar a eutanásia é a existência de sofrimento duradouro e insuportável, considerado intolerável pela própria pessoa. Trata-se de uma condição pessoal, no plano existencial, e não necessariamente de uma situação médica. Isto porque a medicina felizmente consegue hoje debelar grande parte dos casos de dor crónica insuportável e de outros sintomas incapacitantes. Isto é, no limite o que se trata é de permitir o suicídio racional, em casos de sofrimento existencial irredutível – e apenas em caso de doença grave e incurável ou de lesão definitiva de gravidade extrema – quando a medicina e os cuidados paliativos nada têm a oferecer, para além de um acompanhamento humano e compassivo. A possibilidade de se dispor diretamente da vida tratou-se de uma mudança radical de paradigma para a sociedade portuguesa. Por um lado, afirmou-se o inegável direito de cada pessoa exercer a sua liberdade ética pessoal, por outro manteve-se o legítimo direito dos médicos exercerem a sua liberdade de consciência, garantindo-se, porém, a continuidade de cuidados.

Uma das principais críticas a esta legislação é a possibilidade de se desvalorizar a vida humana abrindo a porta a práticas involuntárias, tal como a eutanásia em crianças ou em pessoas com problemas mentais. Para evitar esta “rampa deslizante” foi criado um complexo sistema de acompanhamento que inclui a escolha por parte do doente de um médico orientador, a consulta a um médico especialista da doença que motivou o pedido de morte assistida, a eventual opinião de um médico psiquiatra e, por fim, a supervisão de todo o processo por uma Comissão de Verificação e Avaliação.

Em todo o caso, importa clarificar alguns aspetos. Primeiro, com esta evolução legislativa não se criou em Portugal um “direito à eutanásia”, como acontece em outros países. Apenas se considera que a morte medicamente assistida não é punível em situações muito específicas. Pelo que a vida humana continua a ser um valor ético da maior relevância. Segundo, trata-se apenas de decisões individuais de adultos competentes que manifestem reiteradamente esta vontade. Na esteira do respeito por uma autonomia responsável, a morte medicamente assistida só pode ocorrer por eutanásia quando o suicídio medicamente assistido for impossível por incapacidade física do doente. Por fim, devem implementar-se as ferramentas digitais adequadas para garantir a privacidade dos dados constantes no registo clínico especial efetuado deliberadamente para efeito de morte assistida. 

Para uma aplicação efetiva desta lei devem implementar-se medidas concretas para aumentar a informação dos doentes sobre a eutanásia e as condições em que se pode efetivamente aplicar. Ao sistema de saúde compete a tarefa de articular procedimentos, implementar aconselhamento psicológico adequado, referenciar os doentes para cuidados paliativos quando solicitado, e garantir que nenhum pedido legítimo de eutanásia é recusado por falta de condições ou por objeção de consciência dos profissionais de saúde. Por fim, importa que os profissionais de saúde, e as suas associações profissionais, contribuam ativamente para esclarecer os doentes e incrementar os níveis de literacia da população nesta matéria para que os doentes tomem decisões verdadeiramente informadas.  

 

Presidente da Comissão de Ética da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto