Num ato eleitoral em que se define o futuro, nunca o passado teve tanta relevância, quer no debate político e nas propostas concretas dos protagonistas políticos, quer nos jogos mais ou menos visíveis que são arquitetados por parte dos protagonistas do passado, em disputas indiretas por interpostas pessoas em torno do acervo patrimonial político e do respetivo acervo da governação.
Enleados nas diatribes do passado e em enfoques mediáticos acessórios, para ocupar tempo de emissão e vender notícias, o tempo destinado às propostas para futuro e às condições para a sua execução têm tido pouca atenção, também por interesse político. Primeiro, porque a direita, mobilizada na Aliança Democrática, teme o risco da associação ao Chega, num cenário em que mesmo ganhando a vitória seja insuficiente para a obtenção de uma maioria parlamentar. Depois, porque, à esquerda, o Partido Socialista teme afastar o eleitorado moderado se confirmar a expectativa de convergência com o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista Português para uma solução de governo muito além da solução de governo de 2015-2019. O vazio de futuro, registado até agora, permitiu a emergência dos passados, numa disputa encapotada entre Cavaco Silva e António Costa que, com motivações diferenciadas, acabam por abafar o esforço de afirmação dos novos protagonistas políticos presentes nestas eleições legislativas.
O ex-presidente da República posiciona-se para defender o acervo patrimonial da sua governação como se os tempos pudessem ser comparáveis nas suas circunstâncias, dinâmicas, recursos e níveis de escrutínio.
O ainda primeiro-ministro, depois de uma governação com demasiado deslaço de liderança política e falta de capacidade de concretização perante a oportunidade rara de dispor de estabilidade política, mandato e recursos, transpira o desejo de ajuste de passo às circunstâncias que conduziram à apresentação da demissão, tendo por referência o futuro. É nisto que divergirá de Cavaco. Cavaco é o passado, Costa aposta ainda no futuro, mesmo que ambos, para prosseguir os objetivos, tenham de atropelar os presentes, em modo de abafador, como nos berlindes.
Só assim se compreenderá a espiral de concretização do governo nas últimas semanas, o posicionamento interno e externo de determinados protagonistas da órbita do primeiro-ministro e as pedras que vão sendo colocadas no caminho de Pedro Nuno Santos, sendo a TAP apenas a mais visível. Tão visível quando são evidentes as divergências do atual líder do PS em relação ao processo de despedimento da CEO que obteve resultados positivos na gestão da companhia e mantém-se na TAP o mesmo CFO desse tempo, muito próximo do ministro das infraestruturas que lhe sucedeu no cargo. O sentido da contestação judicial no processo judicial do despedimento, com inclusão de novos argumentos que eram do conhecimento das tutelas, só pode ter tido validação política, no mínimo, das finanças. A mesma validação que esteve presente no relatório da Inspeção Geral das Finanças sobre a indemnização a Alexandra Reis, que permitiu determinadas omissões e exclusões, por conveniente de resultado final.
São demasiados os sinais que se percecionam sobre as expectativas num futuro que não seja o ambicionado por quem chegou agora à liderança e pelos seus apoiantes, para que possa haver uma repristinação de uma liderança e de um acervo patrimonial. O êxito poderá colocar em causa o sentido desses sinais, dos posicionamentos e das expressões mediáticas que vão existindo, com protagonistas a jogarem em vários tabuleiros, como se o país fosse apenas isso, à imagem dos umbigos e dos egos.
Sabendo-se que existem estes passados todos, que estão no presente e ambicionam-se projetar no futuro, quiçá com regresso a lideranças internas, importa concretizar um esforço sustentado de clarificação das propostas para o tempo que virá e das condições para a sua concretização. Sem grandes alentos de alma e de mobilização pelo atual quadro político, é importante que as escolhas dos portugueses possam ser, como na saúde, um consentimento minimamente informado. Venham de lá essas propostas para o futuro, com rigor, sustentabilidade e foco no que importa para a maioria dos portugueses.
NOTAS FINAIS
O TRIUNFO DOS INTERESSES PARTICULARES. Do espaço de lusofonia da CPLP à União Europeia é evidente a incapacidade de gerar coesão no pensamento e na ação perante os desafios políticos e geoestratégicos. Na CPLP, assiste-se a rotas de convergência do Brasil e da Guiné Equatorial com a Rússia, enquanto Cabo Verde converge com uma China cada vez mais presente em África. Na Europa é o deslaço que se vê.
AÇORES A 4 DE FEVEREIRO. Incomoda a indiferença de atenção cívica e mediática em relação aos Açores que vão a votos a 4 de fevereiro, depois da solução governativa com o apoio inicial do Chega ter sido insuficiente para manter a estabilidade e aprovar o orçamento regional. Tal como agora na República, o PSD disse que nada queria com o Chega, mas depois namoriscou com ele por conveniência de acesso ao poder. Apesar das especificidades regionais, será importante dar mais atenção aos comportamentos entre o esforço de manutenção do poder e a renovada ambição do PS.
AS NOTÍCIAS DA NOTÍCIAS. Sim, é preciso haver sustentabilidade nos projetos jornalísticos, mas também é preciso um jornalismo que tenha em conta quem lê, quem vê e quem ouve, num tempo em que podemos, cada vez mais, configurar os conteúdos a que queremos ter acesso. A democracia precisa de todos, mas prescinde de irresponsabilidades, de geometrias variáveis, de agendas pessoais e de corporativismos desfasados da missão e do tempo. Garantido o essencial, é tempo de ajustar a missão aos desafios, sob pena de perpetuar os circuitos fechados, bons para os egos, inconsequentes para a sustentabilidade, objetividade e rigor que se querem.