Jeffrey Epstein. Quando o poder abafa tudo

Jeffrey Epstein. Quando o poder abafa tudo


Não se sabe bem quando é que o seu esquema de tráfico e abuso de menores começou. Os primeiros registos fazem-nos viajar até 1996, mas acredita-se que pode haver ainda mais vítimas. O seu nome voltou a estar na ordem do dia depois de terem surgido mais dados sobre o seu caso.


Esta podia ser uma daquelas histórias que vemos nos filmes de terror e desejamos que nunca se tornem realidade. Aquelas histórias que nos dão a volta à barriga de tão macabras, e que nos fazem interrogar que mundo é este onde vivemos. Até onde se pode ir quando se tem poder? Durante quanto tempo uma história pode ser abafada quando se tem milhões? O seu nome tem estado espalhado por todo o lado, apesar de a história já ser antiga. O medo, a intimidação e o dinheiro foram o seu maior triunfo. E agora, o caso volta a estar na ordem do dia por terem surgido mais dados. «Não sou um predador sexual, sou um infrator», declarou Jeffrey Epstein ao The New York Post, em 2011. «Essa é a diferença entre um assassino e uma pessoa que rouba um pão», acrescentou. «Nenhuma rapariga foi a minha casa. Eu nunca saí de casa», afirmava depois de forma contraditória ao jornalista Georg Rush. «As raparigas iam a minha casa por dinheiro, para receber dinheiro […]. Trata-se de uma acusação de solicitação de prostituição. Não tem nada a ver com menores», garantia. No entanto, as raparigas de que falava estavam no ensino médio e secundário, em média, possuíam 14 anos. Eram crianças e não «prostitutas menores», como lhes chamaram durante algum tempo, segundo uma das vítimas. Uma «teia de aranha» onde caíram inúmeras raparigas menores que, intimidadas e de mãos atadas, passaram grande parte da vida sem que alguém acreditasse nelas – e mesmo quem acreditava acabou durante muito tempo por não poder fazer nada, no seio de uma investigação conjunta entre o FBI e a procuradoria geral dos EUA. Os rostos multiplicavam-se, enquanto Epstein era protegido a alto nível.

Recentemente, a juíza encarregue do caso autorizou que fossem divulgados novos dados, que mostram o envolvimento de várias figuras ilustres no esquema liderado por Epstein, que lhes dava acesso a sexo com menores numa casa do empresário e em outros locais. São 187 pessoas, segundo a BBC. Além do Príncipe André de Inglaterra, há muito envolvido no caso, veem agora a luz do dia nomes como o de Michael Jackson, o antigo presidente dos EUA Bill Clinton ou do físico Stephen Hawking. Também se fala de Trump e Woody Allen. Recorde-se que os ficheiros foram tornados públicos a 3 de janeiro, após ter chegado ao fim o prazo de recurso colocado por dois dos mencionados no documento. No entanto, é importante sublinhar, tal como referem tanto o The New York Times como o The Guardian, que na maioria dos 46 documentos tornados públicos existem apenas «meras referências a figuras que em muitos casos Epstein conhecia, contactava ou mencionava». Ou seja, a inclusão dos nomes na lista não implica que tenha havido «alguma infração dessas pessoas», ou que tenham sido acusadas de atos ilícitos relacionados com o magnata. Aliás, constam da lista até jornalistas que fizeram reportagens sobre os casos.

A ponta do Icebergue

Tudo «começou» em 2003, quando a jornalista de investigação Vicky Ward foi convidada pela revista Vanity Fair para escrever o perfil do empresário Jeffrey Epstein. Durante muito tempo foi o homem misterioso e introvertido da cidade das luzes. Solteiro, muito rico, atraente e narcisista, tal como concluiu a avaliação psicológica que lhe foi feita durante a investigação. Um enigma, ou «o mestre das marionetas», como diziam muitos. Não se sabia de onde vinha o seu dinheiro, mas era notório que este se dava com os maiores e mais ricos: desde o empresário Leslie Wexner – ex-CEO da Victoria’s Secret -, académicos de renome, advogados como Alan Dershowitz, políticos e figuras do mundo do espetáculo. Além disso, estava sempre rodeado de mulheres lindas e muito mais jovens. O mais estranho é que tinha uma namorada: Ghislaine Maxwell. Bastante encantadora e extrovertida aos olhos de todos, mas, tal como ele, perversa e desequilibrada, já que era ela que estava no topo da sua cadeia: um esquema de pirâmide que envolvia raparigas menores. A companheira ajudava-o a recrutar essas jovens para «uma massagem» que rapidamente se transformava um «abuso». O milionário começava de barriga para baixo, mas rapidamente se virava para cima, todo nu, obrigando as jovens a satisfazerem os seus pedidos. Umas vezes sozinho, outras vezes na presença da namorada.

A jornalista não sabia de nada antes de começar a sua investigação e não esperava que aquilo que deveria ser um artigo normal sobre um homem poderoso se tornaria rapidamente uma história de terror e pedofilia. Esta seria só a ponta do icebergue.

Vicky Ward conseguiu chegar até duas das primeiras vítimas. Haviam sido abusadas por Epstein em 1996. Fizeram queixa na altura, mas nada havia acontecido. Segundo as duas irmãs, o milionário prometeu-lhes ajuda na carreira, levou-as para algumas das suas casas e, depois de um tempo, ao pedir uma massagem, abusou delas. A jornalista escreveu a história, sem perceber onde se estava a meter. A revista teve de fazer o contraditório e, falando com Epstein. O empresário negou qualquer acusação, dizendo que estas jovens estavam apaixonadas por ele e o acusavam como vingança por «não terem sido correspondidas». Logo aqui se começou a observar o poder que Epstein conseguia exercer em qualquer lugar. Ameaçou Vicky, que estava grávida. No jardim do diretor da revista da altura apareceu uma cabeça de gato. As raparigas acabaram por sair da peça, por se tratar de um «assunto delicado» e o artigo publicado não passou de um perfil normal. A jornalista acredita que o jornal tenha sido subornado.

Vítimas atrás de vítimas

As primeiras fortes suspeitas criminais datam apenas 2005, quando uma mulher acusou o financeiro de ter levado para a sua mansão em Palm Beach, na Flórida, a enteada dela, e alegadamente pago uma quantia de 300 dólares à jovem de 14 anos para o massajar. Até lá, pouco se saboa sobre este financeiro para lá dos sinais exteriores de uma enorme riqueza. Tinha uma casa de 15 a 20 milhões em Palm Beach, uma das maiores casas de Nova Iorque, um apartamento enorme em Paris, um rancho vasto no Novo México, um helicóptero e dois aviões. Mas a partir desse ano, as vítimas iam aparecendo e as histórias eram todas muito parecidas. O interesse estava no dinheiro que recebiam. Normalmente, 200 dólares por uma massagem, mais se trouxessem outra amiga. Depois de perceberem o esquema, muitas desapareciam, outras, bastante vulneráveis, em situações precárias, iam ficando durante meses ou até anos, aguardando a melhor altura para fugir (já que eram intimidadas sempre que mostravam desagrado). Muitas foram testemunhando ao longo dos anos, com a promessa de serem protegidas. Entre 2008 e 2019, ano da sua detenção, Virginia Giuffre, na altura uma jovem de 17 anos, alegou ter sido traficada e coagida a praticar atividades sexuais com várias pessoas, nomeadamente Epstein, Ghislaine Maxwell, Alan Dershowitz e o príncipe André, que sempre negaram todas as acusações. Segundo a sua advogada, antes de ter 18 anos, Giuffre foi traficada quase 30 vezes, nacional e internacionalmente. Quando a história se tornou pública, a jovem foi humilhada. Uma outra ‘sobrevivente’, Sarah Ransome, revelou a sua história em 2016, na altura das eleições americanas. Tanto Trump como Clinton tinham ligações a Epstein e a jovem fez questão de percorrer todos os meios de comunicação, tanto ingleses como americanos, para tirar o véu sobre os horrores que estes homens encobriram. Mais uma vez, garantiu, ninguém a quis ouvir.

Além de todo o património que já foi referido, Jeffrey Epstein possuía ainda uma ilha privada no arquipélago das Ilhas Virgens Americanas – que muitos conhecem pela ‘Ilha do pedófilo’ -, onde o milionário recebia menores para lh satisfazerem os fetiches ou os de amigos próximos. No documentário da Netflix Jeffrey Epstein: Poder e Perversão, várias vítimas contam os terrores que viveram nesse lugar, alegando terem sido violadas vezes sem conta. Uma chegou a tentar fugir a nado. No entanto, Epstein havia instalado um sistema de vigilância e sabia exatamente onde se encontravam as jovens, por isso, conseguiu impedi-la. Também um ex-funcionário conta o que viu, admitindo que durante muito tempo o ignorou pelo dinheiro, até ter sido interrogado por um outro funcionário se deixaria as suas filhas menores chegarem perto do empresário. Ao ouvir a pergunta, despediu-se automaticamente.

Um processo longo e ilegal

Segundo alguns dos investigadores envolvidos que falam no documentário Jeffrey Epstein: Poder e Perversão, o governo tinha um manancial imenso de informação nas mãos, capaz de colocar o empresário na cadeia para o resto da vida. Só no princípio da investigação havia entre 35 a 40 vítimas dispostas a testemunhar… No entanto, nada acontecia, já que os advogados de Epstein acabaram por conseguir um acordo com a procuradoria geral da Florida. «Foi o único caso de toda a minha carreira em que senti que não conseguia proteger as vítimas», afirmou um polícia de Palm Beach envolvido no caso. «O Jeffrey Epstein recebeu imunidade em relação às outras acusações do estado e em relação às acusações federais, tanto para ele como para todos os cúmplices identificados e sem ser identificados. Para mim é inexplicável que um procurador pudesse fazer este tipo de acordo judicial», afirmou um advogado que trabalhava no caso há mais de uma década. Alex Acosta era o procurador na altura. «Tanto pressionaram, que conseguiram o que queriam», defende outro advogado das vítimas. «Eles decidiram que seria melhor ter um pássaro na mão do que dois a voar. Concordaram que se ele se declarasse culpado das acusações do estado – solicitação de prostituição -, cumpria pena (18 meses) e, depois, dava grandes indemnizações às alegadas vítimas», confidenciou o advogado de Epstein, Alan Dershowitz, no mesmo documentário. Durante esses 18 meses numa prisão municipal, Epstein fez o que quis. Podia sair 12 horas por dia e manteve muitas das suas rotinas. Quando saiu, a vida continuou igual. Mas as coisas não ficaram por aí.

Em 2017, depois do surgimento do movimento #Metoo, os meios de comunicação começaram a dar mais atenção ao tema e a publicar a história. O acordo confidencial começou a ser analisado e o mundo ficou em choque com aquilo que lia e ouvia. Na altura, Acosta era secretário do Trabalho de Trump. Em 2019, o juiz responsável pelo caso emitiu a sua decisão sumária e entendeu que o Governo Federal participou numa conspiração conjunta com Jeffrey Epstein, violando a Lei de Direitos da Vítima do Crime. Seguiu-se uma nova audiência, onde as vítimas tiveram direito de expressar as suas opiniões contrárias ao acordo, olhar nos olhos do milionário e finalmente livrar-se do nó que tinham na garganta há muito tempo. A 10 de agosto de 2019, o magnata financeiro americano foi encontrado morto numa cela de prisão na cidade de Nova Iorque, enquanto esperava julgamento por acusações de tráfico sexual. Há quem diga que se suicidou, enforcando-se, no entanto, o mais provável é que tenha sido assassinado para se calar de vez e para sempre, levando para o túmulo os segredos que conhecia de inúmeras personalidades importantes.

O motivo da detenção foram as suspeitas de um vasto leque de crimes de natureza sexual, nomeadamente tráfico sexual, incluindo de menores, algo que foi corroborado pelas provas encontradas na sua casa em Manhattan (fotografias de todas as raparigas nuas, vídeos de pornografia infantil, passaportes falsos, etc.). Jeffrey Epstein negou tudo até ao fim. Já Ghislaine Maxwell foi condenada a 20 anos de prisão em 2022.