Chibanga. E o touro todo o coração, avança!

Chibanga. E o touro todo o coração, avança!


Juntamente como Carlos Mabunga, Ricardo Chibanga foi o primeiro toureiro e matador negro português. Nasceu na Mafalala como Eusébio, foram amigos de infância. Fez-se grande em Espanha e no México. Era um cavalheiro luzidio que se ajoelhava em frente do touro vencido, vermelho de feridas, e lhe pousava a mão no focinho, respeitando a valentia da…


Há uns anos largos entrei num café e, sentado a um canto, pires e chávena na frente, estava um indivíduo luzidio que demorei apenas segundos a reconhecer: era o Chibanga. Hoje talvez ninguém saiba mais quem foi Ricardo Chibanga, mas na minha infância e adolescência, Chibanga era uma das personagens mais fascinantes de Portugal. Como diria o Nelson Rodrigues de cada vez que tinha de falar sobre alguém absolutamente especial: «Uma figura! Uma figura!».
Chibanga nasceu na então Lourenço Marques, no bairro da Mafalala. Em Novembro de 1942 – onze meses depois de Eusébio, seu amigo de garoto. Se fizessem estátuas a bairros como fazem estátuas a pessoas, Mafalala tinha de ter uma estátua. O que Mafalala deu ao Portugal colonial, imperial, uno e indivisível do Minho a Timor, e principalmente a Moçambique, foi de truz. Além de Eusébio de Chibanga, nasceram lá o Hilário e o Craveirinha, a Noémia de Sousa e o Samora Machel, o Joaquim Chissano e o Pascoal Mocumbi. Pelo menos assim de repente, lembrando-me ao ritmo da escrita. E ainda dizem que era um bairro de lata. De ouro, isso sim.
No café no qual entrei há muitos anos e vi Ricardo Chibanga sentado na sua mesa solitária não pude deixar de ir ter com ele e cumprimentá-lo. Era um homem suave, de sorriso franco. Uma daquelas entrevistas que nunca fiz e me arrependo. Um homem como Ricardo Chibanga cumprimenta-se com um agradecido e vigoroso shake hands. Gente de estirpe. As lembranças como as cerejas. Como as ginjas. Presas umas às outras sem fazerem parte umas das outras. Ao mesmo tempo que me recordei de Chibanga, lembrei-me do Benje. Esse era angolano, de Luanda, também de 1942, mas de Agosto. Reparem: no tempo em que o Benje jogava, era tão comum existirem guarda-redes negros como toureiros negros. E o tempo do Benje e do Chibanga era o mesmo. Era algures na minha infância que já tive e perdi.
Para os miúdos como eu, que agora correm no carreiro da ternura dos avós, o Benje era um personagem e peras. Pedro Benje Neto. Ainda jogou com Eusébio no Benfica. O Benje era elástico. Parecia feito de borracha. Tinha um estilo único, felino. De gato. Gato preto: e dava azar aos adversários, pulando e agarrando bolas como ninguém. Chibanga bailava. Fazia rodopios com a sua capa carmesim e ninguém seria capaz de dizer qual dos dois era mais negro, mais brilhante, mais luzidio, se ele se o touro.

Às cinco em ponto da tarde

Certa vez, Ricardo Chibanga, rabiava um touro de 450 quilos à força de chicuelinas. Talvez fossem, como dizia Lorca, «las cinco en punto de la tarde», mas não sei. O touro espumava pela boca num cansaço doloroso, a língua pendente, sangue escuro sobre o lombo escuro. «Ay qué terribles cinco de la tarde! Eran las cinco en sombra de la tarde!».
Porra! Isto é bonito: As cinco em sombra da tarde!

Eu estava a ver ao longe, pela televisão. O Madeirense, um dos bananeiros, como se chamavam aos pequenos navios de carga que faziam a carreira entre Lisboa e o Funchal, ou se calhar o Funchalense, sei lá agora, eram iguais como gémeos univitelinos, estava encostado no Caio do Conde de Óbidos e nós à espera do desembarque. A televisão ligada com riscas teimosas a subirem pelo ecrã, recusando-se a fixar a imagem. Mas eu fixei a imagem do Chibanga. Até hoje.

Os dois, ele e o touro, impressionantemente negros, frente a frente.
Fixando-se, percebendo-se, entendendo-se.
«Las heridas quemaban como soles».
Em seguida, Ricardo Chibanga dirigiu-se ao touro com todo o respeito, como diria o meu amigo Jorge Palma. Tinha a capa vermelha debaixo do braço. Dobrou um joelho até ao chão e fez uma festa no focinho húmido e vencido. Esqueçam os riscos do ecrã. Eu estava fascinado. Absolutamente fascinado. Nunca ninguém me parecera tão valente desde que Teseu venceu o Minotauro. E, mais tarde, ali apenas, numa mesa de café, uma bica sem bagaço, apertei-lhe a mão e voltei atrás até ao momento em que, de joelho no chão, ele prestou homenagem à fera ferida e derrotada.
Depois, o povo erguia-se numa totalidade admirativa, soltando olés e atirando chapéus. Era grande, o Chibanga! Ricardo Chibanga! Com ponto de exclamação.

Ficava ali na sua solenidade príncipe vestido de lantejoulas, brilhando como se estivesse coberto por milhares de minúsculos sóis coloridos.
«Y el toro, sólo corazón arriba!».
Chibanga foi assim uma espécie de Eusébio das arenas, sol ou sombra. Como Benje era, também ele, o Eusébio das balizas, igualmente sol ou sombra quando os jogos de futebol tinham lugar às três em ponto da tarde.
«Num mundo de coisas raras/Faz uma pega de caras/Não te deixes vencer», dizia o fado.

E o filme: A Última Pega. Morte na campina, morte nas praças. Uma voz de mãe: «Os touros têm sido razão de muitas desgraças». Eusébio Benje e Chibanga: todos impecavelmente negros! Benje a fazer chicuelinas à bola afagando-lhe o focinho redondo de couro límpido.

Era o estilo! Uma elegância negra no voo; um ar distinto de cavalheiro dos trópicos. Sempre correto, sempre profundamente educado. Entretanto Chibanga ia cansando touros com as suas chicuelinas perfeitas, um pouco por todo o mundo, também ele corretamente negro, ossos e flautas soando-lhe ao ouvido, às cinco horas da tarde que eram as horas em que Lorca mandava as pessoas quebrarem as janelas. Recordei-me de Benje e de Chibanga ao mesmo tempo. O cromo do Benje era disputado pela meninada do meu tempo. Um cromo ímpar. Não havia outro guarda-redes negro. Tal como não havia outro Chibanga, embora tivesse vindo para Lisboa com ele, lá da Mafalala, Carlos Mabunga que se perdeu nas memórias de todos nós, um pouco ou por inteiro.

Quando se erguia, na grande área era sereno e luzidio, de uma escuridão intensa. Toureiro da bola: e ela mansa, repousando nas suas mãos. Toureiro da arena, bonito como um Mercúrio negro de asas nos pés.