Os dias cinzentos da nossa democracia e os diferentes riscos que em diferentes palcos ela corre


Nos meios de comunicação formais que sobrevivem, sobram ainda opiniões diferentes e distintas leituras da realidade, que nos ajudam e nos permitem pensar e refletir sobre o mundo, as suas penas e alegrias. Doloroso é, por outro lado, assistir ao que, para o comum dos cidadãos, possa ser entendido como um fenómeno de balcanização de um…


Vivemos, hoje, dias difíceis.

Já aqui o havia dito, mas, reconheço, cada dia a mais que passa acrescenta, fatalmente, algo de mais sério e desencorajante.

1. A nível nacional, por exemplo, vemos um grupo dos poucos jornais, rádios e revistas que nos restam, e mantinham alguma credibilidade, entrar em crise e ameaçar desaparecer.

Podemos aqui fazer um obituário, não muito exaustivo, dos títulos merecedores de uma memória e que, desde o 25 de Abril – alguns nasceram com ele – se finaram: o Século, o Primeiro de Janeiro, o Comércio do Porto, o Diário de Lisboa, o Diário Popular, a República, a Capital, o Jornal, o Diário, o Independente, o Semanário, o Europeu e o Extra.

Estes são apenas alguns dos títulos mais significativos que nos fizeram viver, de diversos modos, quer os tempos da ditadura e da resistência contra ela, quer os da revolução e, depois, como sempre acontece, os da já não muito entusiasmante normalização da Democracia.

Cada um, à sua maneira, contribuiu para as nossas alegrias, para os nossos sobressaltos, para, apesar de tudo, as nossas esperanças, também as nossas mais cinzentas deceções, os nossos súbitos e momentâneos enfados e, mesmo assim, a nossa vontade de não desistir dela, da Democracia.

O fenómeno não é, contudo, exclusivamente nosso.

Depois da pandemia, quando trabalhava em Haia, deixou de ser distribuído o El País, na sua versão europeia, e o Le Monde passou apenas a aparecer ao sábado, juntamente com o número editado na sexta. Os jornais italianos e restantes jornais espanhóis, desapareceram, também, de repente, das bancas.

Queira-se, ou não, a leitura da realidade política internacional através de jornais anglo-saxónicos e continentais dá dela perspetivas muito diferentes: já Júlio Verne, em «Miguel Strogoff», parodiava essa diferença, por via dos despachos de dois jornalistas, um inglês e um outro francês, que descreviam a paisagem que cada um observava a partir das diferentes e opostas janelas do comboio por onde olhavam.

Não deixar afunilar demasiado as perspetivas veiculadas pelos meios de comunicação social formais que ainda existem – mesmo quando estes parecem, no que respeita ao noticiário internacional, limitar-se a divulgar apenas os mesmos despachos das mesmas agências noticiosas – é, ainda assim, um momento de luta pela Democracia.

 

2. Num outro – mas não menos importante – plano da luta pela Democracia, parece igualmente penoso assistir, hoje, ao que, para o comum dos cidadãos, possa aparecer como um fenómeno de balcanização progressiva do nosso Ministério Público (MP).

Esta magistratura – não raro, tão mal e injustamente atacada do exterior – confronta-se, agora, por fim, com o questionamento interno e uma genuína preocupação manifestada por alguns dos seus procuradores com experiência comprovada e currículos irrepreensíveis, a respeito do propósito e real utilidade de algumas estratégias processuais mais ousadas.

O cenário complexo a que assistimos – com inquéritos e processos disciplinares incluídos – tenderá a favorecer, temo eu, algumas enganadoras ideias públicas sobre o funcionamento do MP.

Por um lado, a de que existe ainda uma magistratura concebida como um corpo único, coerente e superiormente orientado na condução das investigações judiciárias mais relevantes.

Por outro, a ideia de que, no seu todo, esta magistratura, em função das circunstâncias presentes, adota agora uma posição defensiva, fechando-se, ainda mais, sobre si própria e, sobretudo, manifestando uma grande dificuldade em admitir diferentes pontos de vista internos, mesmo no que se refere ao uso de algumas estratégias e metodologias processuais mais arrojadas.

Só que, no presente, do ponto de vista estatutário e organizativo, a realidade é bem outra:  apesar de se tratar de uma magistratura gerida hierarquicamente, no que respeita à vida diária dos magistrados, no plano puramente operacional cada procurador é, com todas as consequências daí resultantes, o responsável cabal e único pelas opções que faz na condução dos processos de que é titular.

Apesar das simplificações dos discursos jornalísticos e políticos, que, quando se referem à autoria de atos processuais, sempre invocam genericamente o MP, a responsabilidade pelos atos processuais a cargo dos procuradores só pode, hoje, em rigor, ser assacada aos seus concretos autores: e estes têm nomes próprios.

E, por ser assim, não será que só a eles deveria, pessoalmente, caber defender-se e reagir, quando, melindrados, acreditam que as suas intervenções processuais são diretamente identificadas e postas em causa?

Esta individualização funcional da responsabilidade por estratégias e atos processuais parece ser, afinal, a contrapartida da visão adotada da autonomia do MP, na parte em que esta magistratura – os seus magistrados – prescinde do suporte hierárquico, no plano da intervenção processual.

O MP, por si e como órgão coletivo, pouco poderá responder, assim, atualmente, por tais condutas e atos.

Por isso, pergunto-me ainda; pode ele – o MP – sofrer coletivamente as dores individuais dos que, sem se assumirem, se sentem magoados pelo que julgam e consideram ser críticas dirigidas especificamente a atuações por si decididas e tomadas em processos concretos?

E, em tais circunstâncias, poderá a amplificação de tais dores ao corpo do MP ser justa para com os que nunca, desse modo atuaram e, menos ainda, para os que, num plano abstrato, mesmo que refletindo a realidade, discutem e defendem pontos de vista e o uso de estratégias diferentes?

Repare-se que, finalmente, nem uns nem outros, vinculam, com as suas opções e opiniões, o corpo institucional do MP.

Designadamente, quando, sobre uma dada matéria, não exista nenhuma diretiva superior de como atuar.

Questão, aparentemente diferente, pelo menos em parte, poderá ser a que se refere ao dever de reserva, analisado este num plano puramente objetivo, pois ele só pode ser examinado nos termos da relação direta entre o magistrado que, alegadamente, exprimiu, em público, uma opinião sobre um caso concreto e o MP como corpo e instituição regulada pelo seu Estatuto.

 Veremos, até em face de exemplos pretéritos, que amplitude se lhe irá desenhar.

Na ausência de um fórum interno especializado, permanente e especificamente adequado a uma reflexão própria e conjunta sobre os meios usados e resultados obtidos por todos e cada um dos procuradores, os alertas e reflexões críticas sobre aspetos do funcionamento do MP tendem, pois, naturalmente, a exprimir-se, de forma refletida e transparente, no sítio possível: a imprensa responsável.

Atitude muito mais franca e leal para com o MP e os seus magistrados, aliás, do que a daqueles que, com frequência, sob anonimato, dizem-me, se exprimem, desbocadamente, em certas redes sociais corporativas, fechadas e abertas, abordando questões de serviço – inclusive diretivas da PGR – e aproveitando para tecer, a propósito delas, opiniões mais ou menos doutrinais, mais ou menos ideológicas, não condicentes, em nada, com o espírito da nossa Constituição e o perfil por ela definido para esta magistratura. 

Na constatação destes paradoxos e contradições, reside, hoje, muita da perplexidade que atravessa o mundo judiciário e, mais ainda, a sociedade civil e política em relação ao MP e à sua autonomia constitucional e estatutária.

É na clarificação desta problemática que a imprensa – toda ela e não somente a que relativamente à Justiça é beneficiada por fontes anónimas – pode, também, contribuir para esclarecer a sociedade e, desse modo, permitir decisões políticas bem fundamentadas e sérias sobre a sempre invocada necessidade de reforma da Justiça, sobretudo quando que esta intervém no âmbito do exercício dos outros poderes.

Os dias cinzentos da nossa democracia e os diferentes riscos que em diferentes palcos ela corre


Nos meios de comunicação formais que sobrevivem, sobram ainda opiniões diferentes e distintas leituras da realidade, que nos ajudam e nos permitem pensar e refletir sobre o mundo, as suas penas e alegrias. Doloroso é, por outro lado, assistir ao que, para o comum dos cidadãos, possa ser entendido como um fenómeno de balcanização de um…


Vivemos, hoje, dias difíceis.

Já aqui o havia dito, mas, reconheço, cada dia a mais que passa acrescenta, fatalmente, algo de mais sério e desencorajante.

1. A nível nacional, por exemplo, vemos um grupo dos poucos jornais, rádios e revistas que nos restam, e mantinham alguma credibilidade, entrar em crise e ameaçar desaparecer.

Podemos aqui fazer um obituário, não muito exaustivo, dos títulos merecedores de uma memória e que, desde o 25 de Abril – alguns nasceram com ele – se finaram: o Século, o Primeiro de Janeiro, o Comércio do Porto, o Diário de Lisboa, o Diário Popular, a República, a Capital, o Jornal, o Diário, o Independente, o Semanário, o Europeu e o Extra.

Estes são apenas alguns dos títulos mais significativos que nos fizeram viver, de diversos modos, quer os tempos da ditadura e da resistência contra ela, quer os da revolução e, depois, como sempre acontece, os da já não muito entusiasmante normalização da Democracia.

Cada um, à sua maneira, contribuiu para as nossas alegrias, para os nossos sobressaltos, para, apesar de tudo, as nossas esperanças, também as nossas mais cinzentas deceções, os nossos súbitos e momentâneos enfados e, mesmo assim, a nossa vontade de não desistir dela, da Democracia.

O fenómeno não é, contudo, exclusivamente nosso.

Depois da pandemia, quando trabalhava em Haia, deixou de ser distribuído o El País, na sua versão europeia, e o Le Monde passou apenas a aparecer ao sábado, juntamente com o número editado na sexta. Os jornais italianos e restantes jornais espanhóis, desapareceram, também, de repente, das bancas.

Queira-se, ou não, a leitura da realidade política internacional através de jornais anglo-saxónicos e continentais dá dela perspetivas muito diferentes: já Júlio Verne, em «Miguel Strogoff», parodiava essa diferença, por via dos despachos de dois jornalistas, um inglês e um outro francês, que descreviam a paisagem que cada um observava a partir das diferentes e opostas janelas do comboio por onde olhavam.

Não deixar afunilar demasiado as perspetivas veiculadas pelos meios de comunicação social formais que ainda existem – mesmo quando estes parecem, no que respeita ao noticiário internacional, limitar-se a divulgar apenas os mesmos despachos das mesmas agências noticiosas – é, ainda assim, um momento de luta pela Democracia.

 

2. Num outro – mas não menos importante – plano da luta pela Democracia, parece igualmente penoso assistir, hoje, ao que, para o comum dos cidadãos, possa aparecer como um fenómeno de balcanização progressiva do nosso Ministério Público (MP).

Esta magistratura – não raro, tão mal e injustamente atacada do exterior – confronta-se, agora, por fim, com o questionamento interno e uma genuína preocupação manifestada por alguns dos seus procuradores com experiência comprovada e currículos irrepreensíveis, a respeito do propósito e real utilidade de algumas estratégias processuais mais ousadas.

O cenário complexo a que assistimos – com inquéritos e processos disciplinares incluídos – tenderá a favorecer, temo eu, algumas enganadoras ideias públicas sobre o funcionamento do MP.

Por um lado, a de que existe ainda uma magistratura concebida como um corpo único, coerente e superiormente orientado na condução das investigações judiciárias mais relevantes.

Por outro, a ideia de que, no seu todo, esta magistratura, em função das circunstâncias presentes, adota agora uma posição defensiva, fechando-se, ainda mais, sobre si própria e, sobretudo, manifestando uma grande dificuldade em admitir diferentes pontos de vista internos, mesmo no que se refere ao uso de algumas estratégias e metodologias processuais mais arrojadas.

Só que, no presente, do ponto de vista estatutário e organizativo, a realidade é bem outra:  apesar de se tratar de uma magistratura gerida hierarquicamente, no que respeita à vida diária dos magistrados, no plano puramente operacional cada procurador é, com todas as consequências daí resultantes, o responsável cabal e único pelas opções que faz na condução dos processos de que é titular.

Apesar das simplificações dos discursos jornalísticos e políticos, que, quando se referem à autoria de atos processuais, sempre invocam genericamente o MP, a responsabilidade pelos atos processuais a cargo dos procuradores só pode, hoje, em rigor, ser assacada aos seus concretos autores: e estes têm nomes próprios.

E, por ser assim, não será que só a eles deveria, pessoalmente, caber defender-se e reagir, quando, melindrados, acreditam que as suas intervenções processuais são diretamente identificadas e postas em causa?

Esta individualização funcional da responsabilidade por estratégias e atos processuais parece ser, afinal, a contrapartida da visão adotada da autonomia do MP, na parte em que esta magistratura – os seus magistrados – prescinde do suporte hierárquico, no plano da intervenção processual.

O MP, por si e como órgão coletivo, pouco poderá responder, assim, atualmente, por tais condutas e atos.

Por isso, pergunto-me ainda; pode ele – o MP – sofrer coletivamente as dores individuais dos que, sem se assumirem, se sentem magoados pelo que julgam e consideram ser críticas dirigidas especificamente a atuações por si decididas e tomadas em processos concretos?

E, em tais circunstâncias, poderá a amplificação de tais dores ao corpo do MP ser justa para com os que nunca, desse modo atuaram e, menos ainda, para os que, num plano abstrato, mesmo que refletindo a realidade, discutem e defendem pontos de vista e o uso de estratégias diferentes?

Repare-se que, finalmente, nem uns nem outros, vinculam, com as suas opções e opiniões, o corpo institucional do MP.

Designadamente, quando, sobre uma dada matéria, não exista nenhuma diretiva superior de como atuar.

Questão, aparentemente diferente, pelo menos em parte, poderá ser a que se refere ao dever de reserva, analisado este num plano puramente objetivo, pois ele só pode ser examinado nos termos da relação direta entre o magistrado que, alegadamente, exprimiu, em público, uma opinião sobre um caso concreto e o MP como corpo e instituição regulada pelo seu Estatuto.

 Veremos, até em face de exemplos pretéritos, que amplitude se lhe irá desenhar.

Na ausência de um fórum interno especializado, permanente e especificamente adequado a uma reflexão própria e conjunta sobre os meios usados e resultados obtidos por todos e cada um dos procuradores, os alertas e reflexões críticas sobre aspetos do funcionamento do MP tendem, pois, naturalmente, a exprimir-se, de forma refletida e transparente, no sítio possível: a imprensa responsável.

Atitude muito mais franca e leal para com o MP e os seus magistrados, aliás, do que a daqueles que, com frequência, sob anonimato, dizem-me, se exprimem, desbocadamente, em certas redes sociais corporativas, fechadas e abertas, abordando questões de serviço – inclusive diretivas da PGR – e aproveitando para tecer, a propósito delas, opiniões mais ou menos doutrinais, mais ou menos ideológicas, não condicentes, em nada, com o espírito da nossa Constituição e o perfil por ela definido para esta magistratura. 

Na constatação destes paradoxos e contradições, reside, hoje, muita da perplexidade que atravessa o mundo judiciário e, mais ainda, a sociedade civil e política em relação ao MP e à sua autonomia constitucional e estatutária.

É na clarificação desta problemática que a imprensa – toda ela e não somente a que relativamente à Justiça é beneficiada por fontes anónimas – pode, também, contribuir para esclarecer a sociedade e, desse modo, permitir decisões políticas bem fundamentadas e sérias sobre a sempre invocada necessidade de reforma da Justiça, sobretudo quando que esta intervém no âmbito do exercício dos outros poderes.