"Se pensarmos em 5% da população (segundo a OMS) com depressão é muita gente. A depressão é uma doença um bocado escondida. Houve uma atenção maior às questões de saúde mental, na pandemia, nomeadamente à depressão e à ansiedade. Mas a depressão não se vê e, muitas das vezes, é mal compreendida por terceiros. Apesar do impacto que tem – até do ponto de vista económico porque, geralmente, leva a baixas prolongadas -, volto a dizer que é muito mal compreendida", começa por dizer ao i o médico psiquiatra Ciro Oliveira, que trabalha no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa e em clínicas privadas como a Leão Miranda.
Um estudo promovido pela Lundbeck Portugal, uma farmacêutica especializada em doenças neurológicas e psiquiátricas, revelou que cerca de 30% dos portugueses foram diagnosticados com depressão, enquanto seis em cada dez já experimenciaram sinais da doença em algum momento das suas vidas. Os dados foram obtidos através de um inquérito que através do qual se procurava compreender a perceção dos portugueses sobre a depressão. Dos participantes, 33,6% afirmaram ter recebido um diagnóstico de depressão por um profissional de saúde. Além disso, 62,1% admitiram ter sentido sintomas depressivos em algum momento, e 77,3% conheciam pessoalmente alguém próximo que recebeu o diagnóstico da doença.
O estudo indicou que, apesar de a maioria dos portugueses reconhecer a depressão como uma doença, 28,5% ainda consideram-na um estado de espírito. Mais de 70% dos inquiridos acreditam que a sociedade subestima a gravidade da depressão, e 29% percebem a condição como crónica, ou seja, algo que persiste ao longo da vida. Quanto aos sintomas associados à depressão, a tristeza (91,3%) e a perda de autoestima (89,6%) foram os mais mencionados pelos participantes, seguidos pela falta de prazer e interesse (85,3%), ansiedade (82,3%) e cansaço físico ou diminuição de energia (81,9%). O inquérito, intitulado "A Visão dos Portugueses sobre a Depressão", entrevistou 1.215 pessoas por telefone entre 27 de setembro e 3 de outubro de 2022.
E Ciro Oliveira confirma. "Os sintomas são a tristeza, falta de sentido para a vida, falta de energia, incapacidade de se mobilizar para fazer, perda de prazer em relação às coisas de que gostava, isolamento, ansiedade e insónia. Podemos ter quadros de depressão em que a pessoa se pode sentir triste e sem motivação, mas ainda é capaz de se manter a trabalhar, ir ao ginásio, ir jantar fora, etc. apesar de tudo lhe custar. Em quadros de depressão mais graves a pessoa acha que nada vale a pena e até pode ter ideação suicida. Aí, pode ser ponderado o internamento", explica, observando que a depressão é uma doença, como quase todas as doenças do foro psiquiátrico, multifatorial.
"Por um lado, é uma doença do cérebro: isto é importante porque muitas pessoas acham que uma coisa é a mente e outra é o corpo. Como se não controlássemos aquilo que acontece ao nosso corpo, mas controlássemos aquilo em que pensamos, a forma como agimos, etc. Muitas das vezes, as pessoas adiam a procura de cuidados porque pensam 'Se isto é da minha mente, sou eu que a controlo. Se me sinto mal, sou fraco, tenho poucas qualidades, não consigo combater os meus pensamentos'. Não sabemos totalmente os motivos pelos quais a depressão se manifesta. Temos a hipótese de haver o défice da utilização dos neurotransmissores, que são químicos que temos no cérebro. Como a serotonina, que é o mais conhecido. No fundo, a utilização das substâncias não é adequada. E isso leva a que se manifestem os fatores depressivos", diz, afirmando também que há fatores da personalidade – por exemplo, alguém pode focar-se muito nos problemas e não nas soluções -, outros como a perda de emprego ou as ruturas afetivas.
"Há ainda muito estigma associado à doença mental e a depressão não foge a ele. Culturalmente, ensinam-nos que o corpo e a mente são coisas distintas. E somos educados para ter uma elevada performance em tudo: temos de ser capazes de chegar a todo o lado em todos os momentos. Temos de estar sempre com um sorriso na cara. Quando há uma pessoa que não é capaz de fazer isso… É olhada de lado. Pensam que é preguiçosa, foge às situações, não se importa, etc. E quem sofre de depressão ouve/lê esses comentários e pensa que são verdadeiros. As doenças psiquiátricas, no geral, traduzem-se no comportamento", diz, adiantando que enquanto se tiver hipertensão ou diabetes consegue medir valores, na depressão isso não acontece. "A pessoa fazia e deixou de fazer, gostava e agora não gosta, habituou-se a dar uma resposta boa perante determinada situação e agora não é capaz… Ninguém nos diz que temos culpa da hipertensão e da diabetes, mas na depressão dizem-nos coisas como 'Vai mas é beber um copo com os amigos! Tens de sair disso. O que é que te aconteceu? Era só o que faltava!'".
"Há um preconceito muito grande relativamente ao tratamento também. As pessoas têm medo dos psiquiatras, acham que são 'para os malucos', para 'quem não diz coisa com coisa'. E acham que conseguem dar a volta e isso atrasa a procura de tratamento. E há a ideia de que a medicação deixa a pessoa diferente do que é, como se ficasse zombie, parada, a babar-se, a dormir o dia inteiro. E se isto, de alguma maneira, era verdade nos anos 80 porque os antidepressivos, nessa altura, eram de facto eficazes mas davam muita sonolência, boca seca, visão turva e aumento do apetite, hoje os fármacos são fabricados para que a pessoa se mantenha o mais funcional possível", salienta, frisando que numa economia como a nossa, em que a pessoa tem de produzir constantemente, é normal que as farmacêuticas produzam medicamentos que deixem as pessoas com energia, bem-dispostas, com capacidade para fazer. "Mas os doentes ainda chegam às consultas a dizer coisas como 'Doutor, por favor, não me ponha a dormir. Eu tenho de trabalhar. E não posso engordar'. São as principais preocupações juntamente com a da dependência". E no inquérito anteriormente referido tal é espelhado, pois foi concluído que 20% dos portugueses desconfiam destes fármacos e não os tomariam.
"Se os antidepressivos, por um lado, não causam dependência, ao contrário das benzodiazepinas, o tempo indicado para tratar uma depressão vai de 6 meses a 1 ano. E o que acontece, por vezes, é que o doente toma o medicamento durante dois ou três meses, sente-se melhor, abandona o esquema terapêutico e isso aumenta a probabilidade de ter uma recaída. Por outro lado, há pessoas que têm quadros depressivos repetidos", continua, acrescentando que aquilo que os estudos mostram é que, a partir do terceiro episódio, deve ponderar-se a terapêutica antidepressiva crónica. "Costumo usar a metáfora da palmilha: se eu tiver uma perna mais curta do que a outra vou coxear. E a perna não vai crescer porque sou adulto. Se puser uma palmilha dentro do sapato, se a diferença não for muita, ninguém vê a palmilha e deixo de coxear. Deixo de ter dores na perna e nas costas. E a palmilha é para sempre! Como se gasta, tenho de mudá-la por vezes. Isto tudo acontece com os antidepressivos: ninguém sabe que as pessoas os tomam, mitigam sintomas e podem ter de ser alterados".
"O Dia Mundial do Combate à Depressão é importante porque constitui uma oportunidade para alertar as pessoas para esta doença e é uma forma de levar a que quem está deprimido entenda que não está sozinho! Fala-se muito em saúde mental, mas ninguém fala em doença mental, em doentes, em Psiquiatria. Mas a verdade é que a saúde mental diz respeito a questões mais políticas, de saúde pública. Se tivermos uma sociedade em que as pessoas têm tempo para si e para a família, podem relaxar e ir de férias, ganham o suficiente para não estarem preocupadas… Isto é saúde mental!", conclui Ciro Oliveira.