Dentro de dois meses estaremos na véspera das eleições legislativas antecipadas, entre o esforço de manutenção do poder por quem o exerce e a ânsia de mudança por quem está fora dele. A equação é a tradicional, mas as circunstâncias formais da contenda não o são.
É a primeira vez que alguém com maioria absoluta se apeia do exercício político.
É a primeira vez que alguém em funções políticas de liderança de governo é envolvido diretamente num processo judicial.
É a primeira vez que um Presidente da República dissolve um Parlamento com maioria absoluta.
Não é a primeira vez que o discurso político aposta tudo na recorrente ligeireza e memória curta dos portugueses para fazer vingar propostas políticas que basicamente passam pela reposição de soluções do passado, à esquerda, uma maioria parlamentar e de governo reeditando 2015, à direita, uma aliança democrática procurando superar as insuficiências materiais da alternativa política e a ameaça de atratividade eleitoral do CHEGA.
É apostar na memória curta tentar diabolizar o funcionamento da justiça, alimentada durante anos por empoderamentos pelos titulares políticos e por proximidades perigosas para os equilíbrios do funcionamento do sistema, quando se exercitou uma inequívoca linha vermelha de distanciamento em relação às acusações a José Sócrates. “Os sentimentos de solidariedade e amizade pessoais não devem confundir a ação política do PS, que é essencial preservar, envolvendo o partido na apreciação de um processo que, como é próprio de um estado de Direito, só à justiça cabe conduzir com plena independência, que respeitamos. Ao PS cabe concentrar-se na sua ação de mobilizar Portugal na afirmação da alternativa ao Governo e à sua política.”, António Costa, 22 de novembro de 2014.
É jogar com a memória curta, invocar a governação do tempo da troika para fustigar a direita, enquanto se procura iludir as responsabilidades políticas da participação de uma governação que, em parte, foi enfunada pela solução que esboça para o futuro, estando por isso, por ação ou por inação na base dos problemas essenciais com que os cidadãos estão confrontados, porque não se tomou a iniciativa de resolver ou de começar a responder no caso dos problemas estruturais, sempre precisados de sustentação das ações e de tempo. O problema é que iludidos com o esgrimir de passados e com o esbracejar de medos, corre-se o risco de não discutir o futuro além de soluções requentadas, algumas desfasadas de assertividade para um contexto de dificuldades e incertezas em que o acervo orçamental para distribuir é insuficiente para as expectativas, sem macular as marcas construídas como a da melhoria das contas públicas.
Arrumadas as casas, o tempo terá de ser de clarificação do sentido do pedido de acesso ao exercício do poder, além dos soundbites, dos tribalismos ou dos ajustes de posicionamento individual e coletivo para português ver e percecionar. Manter o poder para fazer o que e em que circunstâncias, com que pessoal político? Mudar o poder para fazer que políticas diferentes, em que conjugação de apoios parlamentares e com que protagonistas?
É evidente que tudo será diferente, qualquer que seja o cenário eleitoral. À esquerda, havendo maioria de governo, o quadro de referência tenderá a ser ainda de maior desvio para soluções que, mesmo invocando Abril e os valores do PS, muito pouco terão a ver com a sua história. À direita, havendo maioria de governo, com ou sem CHEGA, a tendência é para diferente da última experiência em várias áreas as soluções foram muito além do que estava consagrado no memorando celebrado com a troika e validado pelo PS.
A ambição de querer fazer diferente, mesmo tirando borda fora parte da governação de Passos Coelho e de António Costa, tem de ser esmiuçada na apresentação concreta de propostas que sustentem esse registo para o futuro que se aproxima e que respondam aos bloqueios existentes no acesso aos cuidados de saúde, na escola pública, na justiça, na carga fiscal, nos rendimentos da classe média, nas desigualdades ou na coesão territorial. Não é possível, mesmo com narrativas políticas que nos projetam para o topo e para a esperança de melhores dias, ter realidades que nos reconfiguram cada vez mais para menos, nivelando por baixo Portugal, o funcionamento da sociedade e a vida concreta dos portugueses.
O poucochinho real não pode ser o novo normal.
NOTAS FINAIS
FISCO ACIMA DA LEI? Fortes com os fracos e fracos com os fortes, a Autoridade Tributária (AT) terá deixado caducar o direito à liquidação do Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) de 2019 e retroativo aos últimos quatro anos, relativo a mais de 160 barragens em todo o país. No país da proficiência judicial seletiva é estranho que ainda não tenha sido aberto nenhum processo em relação a esta implosão da defesa do interesse geral.
CTT E A MELHORIA NÃO SE VÊ. A degradação do serviço postal concessionado é uma evidência em todo o país. Soubesse que, mais ou menos pela calada, o Estado comprou ações dos CTT privados quando estava em avaliação a renovação da concessão. A verdade é que compradas as ações não há nenhuma melhoria além da reabertura de alguns postos dos correios no interior. Terá sido esse o pressuposto da reposição?
TARDIO DE CONTAS ARRASA PRIVATIZAÇÃO DA ANA. Mais de uma década depois da privatização, o Tribunal de Contas publicou uma auditoria em que arrasa a operação do governo PSD/CDS em 2012 e fustiga a falta de fiscalização posterior da concessão. Não será possível ter outra noção de tempo útil, em defesa do erário público?
ARREPENDIMENTOS.PT Parece que alguns descobriram agora que não deviam ter apoiado a recandidatura de Marcelo e que se deveria ter feito mais em algumas áreas chave para a vida dos portugueses. Tarde piaram.