Polónia. Restauração do Estado de Direito arranca com liquidação dos media

Polónia. Restauração do Estado de Direito arranca com liquidação dos media


O Governo de Donald Tusk anunciou a liquidação da televisão, da rádio e da agência de notícias públicas como medida de ‘restauração’ do Estado de Direito ma Polónia.


Quase uma década depois, Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu entre 2014 e 2019, volta a chefiar o Executivo polaco. Depois de assegurar uma maioria de apoio na Assembleia, Tusk reafirmou os compromissos da campanha: prometeu reinvindicar a «posição legítima» da Polónia na União Europeia, lançou um apelo «alto e claro à mobilização total do mundo livre, do Ocidente, em apoio à Ucrânia», referiu o propósito de desbloquear fundos e empréstimos europeus no valor de 59,8 mil milhões de euros, e a restauração do «Estado de direito».

Quando deu posse a Tusk, o Presidente Andrzej Duda afirmou que, apesar das divergências políticas entre os dois, iria cooperar com o Governo: «Por favor, estejam cientes de que eu estou aberto à cooperação. Vimos de campos diferentes, mas considero que em matérias importantes, como a segurança, podemos chegar a um entendimento».

Primeiro duelo

Mas pouco tempo depois iniciava-se o primeiro duelo entre Presidência e Governo polacos.

Com vista à ‘restauração’ do Estado de Direito, o novo Governo está a proceder a profundas alterações nos media, nos tribunais e na sociedade civil (desde logo com a criação de um Ministério da Sociedade Civil e Igualdade). Mas o ímpeto transformador foi travado pelo Presidente Duda, que vetou uma lei proposta pelo novo Executivo englobando fundos no valor 3 mil milhões de Zlotys para a criação de uma nova versão da televisão pública.

Como reação ao bloqueio presidencial, o ministro da Cultura e Património Nacional, Bartlomiej Sienkiewicz, anunciou a liquidação das empresas de televisão, rádio e agência de notícias públicas. Sienkiewicz justificou a decisão, que a Federação Europeia de Jornalistas classifica como «radical», alegando que «na situação atual (…) irá garantir que estas empresas continuam operacionais, permitindo a restruturação necessária e evitando o lay-off dos trabalhadores». Joanna Scheuring-Wielgus, que foi deputada do partido Nova Esquerda e agora é secretária de Estado da Cultura, afirmou que o processo de insolvência iria permitir «uma reorganização e auditoria completa.»

O novo Governo também demitiu os presidentes da televisão, da rádio a da agência de notícias públicas e os membros do Conselho da Comunicação Social e suspendeu as emissões daTVP Info, TVP World e TVP3.

Política e legalidade

Reagindo na rede social X, o Presidente afirmou: «Um objetivo político não pode ser desculpa para violar princípios constitucionais e a lei». Mas as críticas à decisão do Governo não vêm apenas dos conservadores, agora na oposição, mas também da sociedade civil. A ONG polaca Helsinki Human Rights Foundation levanta dúvidas quanto à legalidade do processo: «Compreendemos que as condições políticas e legais dificultam as reformas. Mas não podemos ignorar que a forma como estas alterações aos media estatais foram iniciadas levanta sérias questões legais».

A Federação Europeia de Jornalistas, que considera que o veto do Presidente ao financiamento e a decisão do Governo de liquidar os meios de comunicação social são «contrários ao interesse público», afirmou que as reformas «devem ser feitas com respeito pelos direitos dos jornalistas, sem interferência política e num contexto que garanta aos cidadãos o acesso a informação independente e confiável».

Perante as críticas, Tusk reconheceu que o processo de reestruturação dos media podia «ter sido mais lento».

Imparcialidade ou ‘purga política’?

Mas se, para o Governo, as medidas são justificadas pela necessidade de garantir neutralidade, para os críticos do novo Governo, trata-se de uma «purga política». E os efeitos da decisão podem comprometer o direito dos cidadãos à informação, consagrado na Constituição.

A guerra aberta entre Presidente e primeiro-ministro levanta uma questão de fundo, sobre a possibilidade dos media e as instituições culturais – fundamentais na formação da opinião pública e da memória coletiva – serem, de facto, neutras. Num evento público após as eleições, o escritor e humorista Marcin Wolski, que esteve à frente da TVP2, disse, afirmando-se «cúmplice» que a estação pública «criou mais propaganda do que nos anos 70». Mas Wolski mostra-se cético em relação aos resultados da iniciativa do executivo: «Está na natureza dos políticos quererem que os media atuem como seus porta-vozes».

Coexistência pouco pacífica

Num ano de avanços e triunfos para o nacional-populismo europeu, a Coligação Cívica trouxe ânimo aos progressistas quando, apesar de ficar em segundo lugar nas eleições de outubro, conseguiu a chave para uma maioria parlamentar.

Mas esta batalha pelos media evidencia os obstáculos enfrentados pelo Executivo liderado por Donald Tusk. A dias de ser oficialmente nomeado, Tusk viu o Tribunal Constitucional polaco (que em 2021 determinou que algumas partes do Tratado Europeu são incompatíveis com a Constituição) declarar que as medidas interinas decretadas pelo Tribunal de Justiça da União Europeia no âmbito de dois processos contra a Polónia são inconstitucionais. O que, na prática, pode dificultar o desbloqueio dos fundos.

E, para além dos tribunais, o Presidente também não deverá tornar a vida fácil ao primeiro-ministro. O próximo desafio de Tusk será, a partir de uma coligação com várias contradições internas (incluindo progressistas, socialistas, verdes, conservadores e um partido agrário), garantir a aprovação do orçamento para 2024 no Sejm. Falhar a aprovação do orçamento resultaria em eleições antecipadas, num ano em que os polacos serão chamados às urnas para as eleições locais e para as europeias.

E, se o futuro do novo Executivo é incerto, é possível que mesmo que algumas coisas mudem, muita coisa fique na mesma em matérias fundamentais. Por exemplo, Donald Tusk, apesar de mais alinhado com Bruxelas, é muito crítico da possibilidade de se limitar o direito de veto aos Estados-membros, um dos pontos incluídos num relatório sobre a alteração dos tratados da União que foi a votação no Parlamento Europeu em novembro. Uma ideia que, segundo Tusk, «representa o tipo de euro-entusiasmo naive que levou o Reino Unido a abandonar a União.» E, em matéria de imigração, a sua posição está próxima da dos conservadores nacionalistas.