Como se diz em direito, a doutrina divide-se entre o encorpar de um fenómeno partidário populista em função da não resolução de problemas estruturais, das injustiças aos casos de falta de senso e o interesse estratégico tático em promover um desgaste relevante no principal partido de oposição à direita, que foi parte da solução de poder nos Açores e pode ser o elefante eleitoral no meio da sala das porcelanas nacionais a 10 de março. Nesta altura do campeonato, pouco importa o criador e os fertilizantes, a criatura já ganhou vida própria, em registo de contestação, sublinhando os problemas e as insatisfações, mais do propondo soluções sustentáveis para a sua superação ou erradicação. É uma força de contestação, de protesto, pronta a acolher os votos inconsequentes de descontentamento com o funcionamento dos partidos tradicionais e do sistema político, mascarando o acervo ideológico de recuperação de registos que abandonámos há 50 anos, a 25 de abril e a 25 de novembro.
Mas, não sendo central, é importante não esquecer a responsabilidade de alguns no crescimento do fenómeno pelas oportunidades que disponibilizaram para a evolução e pelas estratégias políticas de alto risco que concretizaram no parlamento, ao conferir relevância institucional a um confronto sempre favorável aos populistas. É como a história da luta com os porcos.
O fenómeno ganhou asas e voou a partir da orfandade das lideranças à direita; de causas de descontentamento nas forças de segurança, nos militantes e nos bombeiros; de ataques a dinâmicas rurais existentes em parte do país e do desgaste persistente da confiança dos cidadãos com o funcionamento do sistema político face ao exercício de funções públicas e aos problemas concretos do país.
O fenómeno medra nas disfunções e nas injustiças, na persistência de querer despejar no Estado novas funções sem cumprir com brio as que lhes estão atribuídas pela Constituição como essenciais para as pessoas e para o país como um todo.
O fenómeno agiganta-se com a generalização da ideia de corrupção e de falta de ética, mesmo que os conceitos se tenham transformado numa espécie de albergue espanhol onde tudo cabe, sem critério, rigor ou sentido de equilíbrio, ainda que o seu funcionamento interno seja uma das maiores disrupções partidárias em termos de transparência e fiabilidade.
O projeto pessoal de poder consolidou-se com os embates parlamentares inconsequentes gerados no suposto pressuposto de combate à extrema-direita, sem assegurar que as causas do seu crescimento eram erradicadas. É um erro e foi desastroso promover embates inconsequentes, sem alteração das circunstâncias que fundaram a sua existência e emergência eleitoral. No Parlamento, começaram a casa pelo telhado, sem assegurar a diminuição ou erradicação das causas de descontentamento setorial, territorial e social com os protagonistas do sistema político democrático. A profusão de casos envolvendo protagonistas políticos, as disfunções do Estado e dos serviços públicos e a persistência de injustiças sem qualquer tipo de resposta sustentada, além dos nichos eleitorais de referência para o poder, com voz ou peso eleitoral, geraram o atual quadro de referência pré-eleitoral, que tende a ser mais gravosa no momento do voto, a degradação real e percecionada do ambiente político. Acresce ainda que, enfunados com as possibilidades da maioria absoluta, desvalorizaram totalmente a relevância política da participação do CHEGA na solução de governo dos Açores, em jeito da solução para a República de 2015, depois do PS não ter ganho as eleições legislativas. Desvalorizaram a participação e a zanga, no que representam de inconsistência para a participação de uma intervenção política que vá além do mero protesto ou do aproveitamento populista das circunstâncias. Dava jeito para desgastar o PSD?
Chegados a este ponto, ainda a mais de dois meses das eleições, não será possível reescrever o passado, embora as narrativas políticas possam ter essas tentações de namoro com a memória curta, mas é possível responder ao que está na base da sementeira da extrema-esquerda.
Com uma renovada exigência ética para o exercício de funções públicas, implacável com as situações que possam ser lesivas do sistema democrático, do que é a exigência dos desempenhos e da promoção do bem comum.
Com propostas e caminhos para responder sustentadamente aos principais problemas que persistem no desempenho das funções de soberania, na falta de atenção a partes relevantes do território nacional, na valorização do potencial do mundo rural e na melhoria substancial dos serviços públicos essenciais para as pessoas, qualquer que seja a sua condição.
Com um sentido de equilíbrio que vá além dos afagos ideológicos ou das respostas aos nichos eleitorais fidelizados, que responda às disfunções, às injustiças e ao fustigo de uma classe média transformada considerada rica nos rendimentos pelos critérios fiscais, mas indigente nas vivências concretas depois de liquidados mensalmente os compromissos com o essencial para os quotidianos.
Sim, é possível reverter o fenómeno, no limiar do meio século sobre a Revolução dos Cravos, mas não se vai lá só com conversa ou confronto. É preciso ir à base, que originou e cresceu a partir das circunstâncias e oportunidades criadas por quem tinha o poder político e institucional. Já vai tarde, mas, com o registo certo, mais vale tarde do que nunca.
NOTAS FINAIS
O DRAMA DAS PERDAS.
O drama das perdas de personalidades como Jacques Delors é a ausência de vislumbre de sucedâneos na visão, no rasgo e na capacidade de ação inspiradora e consequente para os projetos de interesse comum, além do aglomerado de perspetivas parcelares ou táticas. E a falta que fazem em tempos de exigência.
A DISFUNÇÃO NÃO PODE SER O NOVO NORMAL.
Com a narrativa vigente sobre o Serviço Nacional de Saúde e as disfunções que se registam no acesso aos cuidados de saúde, os problemas nas urgências e nos cuidados primários não podem ser o novo normal como resulta da indigente narrativa do ministro da saúde. Lá porque existem problemas cíclicos nesta altura do ano, não significam que sejam aceitáveis, até porque são previsíveis. Não com a carga fiscal e o volume de seguros de saúde dos portugueses.