A poucos dias da véspera de Natal, o frio já se faz sentir nas ruas da capital. Apesar dos termómetros não marcarem menos do que 10 graus, parece que o frio corta e que as pessoas que deambulam nas ruas procuram um lugar onde se aquecer enquanto fazem as suas últimas compras de natal. Esta é uma época festiva. O sorriso marca o rosto de quem percorre a Rua Augusta. As luzes iluminam-na, ouvem-se músicas natalícias dos estabelecimentos que ecoam nos passeios e se misturam com as músicas tocadas pelos artistas de rua, ou pelos grupos académicos que se reúnem e fazem serenatas a quem passa, de gorro de Pai Natal na cabeça. As esplanadas estão cheias. Já são 18h45. O céu está completamente negro, mas a sensação é que ainda estamos a meio da tarde. Uns bebem cerveja enquanto vão esfregando as mãos com esperança de as aquecer. Outros, aquecem-nas agarrando o seu copo de chocolate quente. Há também pessoas que fazem fila para comprar o famoso pastel de bacalhau com queijo da Serra. Veem-se pessoas que, carregadas de sacos, vão riscando os nomes das prendas escritas num papel. Por outro lado, há quem se apresse para chegar à missa, marcada para às 19 horas na Igreja de Nossa Senhora da Conceição Velha, fixada na Rua da Alfândega 108.
Quer sejamos portugueses ou estrangeiros, é impossível que ao passar nesta Casa de Deus, não paremos para a contemplar. “Uma igreja que antes de o ser já o era”, descreve-a a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Recorde-se que esta foi a primeira sede construída de raiz para albergar a Santa Casa e, apesar de estar, neste momento, situada perto do Terreiro do Paço, a sua história começou noutro local: em Belém.
Missa tridentina
Todas as igrejas são diferentes, cada uma delas impressiona à sua maneira. Aqui, ao entrar, quer sejamos crentes ou não, é muito difícil que fiquemos indiferentes ao seu ambiente e à energia desta missa que apenas se celebra nesta mesma Igreja da capital seguindo os rituais tradicionais e rigorosos. Uma missa “à antiga”, celebrada em latim, com o padre virado de frente para o altar e de costas para os fiéis – quando se vira para a plateia, para por exemplo, fazer a homilia, tem de beijar o altar –, o que mostra que o movimento mais conservador do catolicismo se mantém vivo, mesmo que a chama já pareça muito ténue. Para os menos tradicionalistas, celebrar a eucaristia desta forma é “virar as costas ao mundo”. Já para os mais conservadores, esta é a “verdadeira forma de tornar Jesus Cristo o protagonista da celebração”. Ou seja, a missa não sobre o Papa, ou para as pessoas que lá se encontram. É sobre Deus e para Deus.
Esta forma de celebrar missa, conhecida como “Rito Antigo”, “forma extraordinária do rito romano” ou por “tridentina” (desde o Concílio de Trento, no século XVI), corresponde à missa que era celebrada por, praticamente, toda a Igreja Católica de rito latino, antes da reforma da liturgia, decidida pelo Concílio Vaticano II (1962-1965). De salientar que o rito de 1962 continuou a ser celebrado por pequenos grupos durante os anos depois do Concílio. No entanto, acabou por ser liberalizado primeiro por João Paulo II e mais tarde por Bento XVI, para grupos de pessoas que se sentissem “particularmente ligadas às tradições antigas” e à “liturgia anterior ao Concílio”. Um dos propósitos seria evitar cisões e fomentar a comunhão na Igreja com grupos tradicionalistas.
Um espaço de introspeção
Estão pouco mais de 15 pessoas sentadas nos bancos castanhos corridos que preenchem o espaço. São sobretudo mulheres que, ao chegarem, retiram pequenos véus brancos e bordados das suas carteiras – usados pelas solteiras – colocando-os sobre a cabeça. Devem estar na casa dos 30 anos, não mais. Vestem saias compridas que combinam também com os seus cabelos longos e maioritariamente negros. Vê-se apenas uma com um véu preto, o que significa que é casada. Ao contrário de outras missas, predomina o silêncio que só é interrompido por um sussurrar, em latim, em resposta às orações do sacerdote. Dá-nos a sensação que estamos numa missa mais introspetiva, cheia de momentos de reflexão. As pessoas, que parece que vêm e estão sozinhas, ajoelham-se e baixam as cabeças nas marcações ditadas por um sino, mais estridente que o habitual (a campainha litúrgica caiu em desuso, porque se usava para sinalizar momentos importantes que o uso do latim não permitia descodificar). As pessoas estão coordenadas, tanto nas orações, como nos movimentos, como se assistíssemos a uma coreografia bem ensaiada. Silenciosamente há quem vá limpando as lágrimas discretas que caem no rosto.
Um jovem afrodescendente recolhe as contribuições e ouvem-se as moedas a cair umas sobre as outras. O seu barulho contrasta com o silêncio. “Mea culpa!”, ouve-se mais tarde, com as pessoas colocando a mão no peito em movimentos repetidos.
No momento da comunhão, as pessoas levantam-se organizadamente e, chegando perto do padre, ajoelham-se. O sacerdote dá a hóstia aos fiéis sempre na boca, ao contrário daquilo que se sucede nas missas novas, onde esta é colocada na mão. Além disso, no decorrer da cerimónia, são feitos mais sinais de cruz do que o habitual. Por norma, 33 vezes, a idade que tinha Cristo quando morreu.
Hoje, o padre veste vermelho que, segundo o Secretariado Nacional de Liturgia, se usa no Domingo da Paixão (ou de Ramos) e na Sexta-Feira da Semana Santa, no Domingo do Pentecostes, nas celebrações da Paixão do Senhor, nas festas natalícias dos Apóstolos e Evangelistas e nas celebrações dos Santos Mártires. Simboliza o amor e o sacrifício. Já o acólito que o assiste, com não mais de 30 anos, veste uma túnica branca.
A missa durou sensivelmente 45 minutos. As pessoas, ao saírem, não viram as costas ao altar. Salta à vista um casal que permanece sentado e parece saído de um quadro. Com as testas encostadas e olhos fechados – ela com um véu branco e ele vestido com um polo verde –, oram em sussurro, como se declarassem um poema de amor um ao outro em latim.
Missas instrumentalizadas?
Recorde-se que em julho de 2021, o Papa Francisco publicou um documento que limitou o uso do missal de 1962 para a celebração da missa. Numa carta dirigida aos bispos de todo o mundo, que acompanhou o motu próprio “Traditionis Custodis”, Francisco explicou que, apesar de “bem-intencionadas”, estas iniciativas dos seus antecessores “acabaram por ser instrumentalizadas”. “Infelizmente, a intenção pastoral dos meus antecessores, que pretendiam ‘envidar todos os esforços para que todos aqueles que verdadeiramente desejam a unidade possam permanecer nesta unidade ou redescobri-la’, muitas vezes foi seriamente negligenciada. Uma possibilidade oferecida por São João Paulo II e com ainda maior magnanimidade por Bento XVI para recompor a unidade do corpo eclesial no que diz respeito às várias sensibilidades litúrgicas foi utilizada para aumentar distâncias, endurecer diferenças, construir contrastes que ferem a Igreja, atrapalham seu progresso, expondo-o ao risco de divisões”, escreveu o pontífice.
Então, o novo documento do Vaticano estabeleceu que o rito saído da reforma litúrgica promovida pelo Concílio Vaticano II é a “expressão única” da “lex orandi” do Rito Romano e dá aos bispos locais a autoridade plena para regular o seu uso nas suas dioceses. Ou seja, os grupos que já existiam, na altura, pelo mundo e que celebram o rito antigo podem continuar a fazê-lo, mediante a autorização dos bispos, que devem ceder igrejas para o efeito. Porém, estas não devem ser igrejas paroquiais, pedindo-se aos bispos que “não permitam a criação de novos grupos para além dos que já existem”. “Uma razão final que quero acrescentar ao fundamento da minha escolha: a estreita relação entre a escolha das celebrações de acordo com os livros litúrgicos anteriores ao Concílio Vaticano II e a rejeição da Igreja e suas instituições é cada vez mais evidente nas palavras e atitudes de muitos nomes do que eles consideram a ‘verdadeira Igreja’. Este é um comportamento que contradiz a comunhão”, disse ainda Francisco.
Um padre ouvido pelo i, traduz melhor os objetivos do Papa. “O que Francisco disse foi que esta história de celebrar missa em latim, no rito antigo, não é só porque um padre gosta muito de latim, de músicas antigas, etc. O que ele disse no fundo, é que esta forma de celebrar tem consequências na compreensão do que significa a Igreja. E, portanto, o Papa diz, não. A forma ordinária, isto é, a forma como a gente hoje em dia celebra o rito, é a forma normal na Igreja e é a forma que deve ser promovida. O Papa abre a exceção à outra, mas a outra não é para se normalizar. Essa é a grande preocupação do Papa. E, portanto, esta questão da autorização do bispo local, no fundo, é que o bispo local chama o padre e pergunte-lhe porque quer celebrar missa antiga. Pode concordar, mas a tendência não é para normalizar a missa antiga, e o bispo até pode não autorizar. No fundo, o Papa Francisco limitou muito a possibilidade de celebrar a missa em latim, no sentido em que requer mais autorizações, requer mais discernimento, dizendo que o rito normal não é esse”.
Então qual a razão para haver missa antiga? “De alguma forma, agora há uma maior pressão para não se autorizar de ânimo leve e para se ter maior controlo sobre as coisas. Isto é, este segundo rito não é para concorrer com o outro. É autorizado praticamente de forma excecional. De alguma forma, o Papa Bento tinha um bocadinho normalizado a missa antiga. E este documento do Papa Francisco o que fez no fundo foi dizer não, isto não é para normalizar. Isto é extraordinário, excecional e é para se manter excecional. Sem eliminar o rito, que também não o podia fazer, mas de alguma forma cria, no fundo, uma estrutura que controla e que não promove a difusão deste rito antigo. O Papa percebeu que há aqui uma relação entre este rito e uma forma de conceber a Igreja, que pode ser muito pré-Vaticano II. O problema é esse. É a história, começo com a missa e depois começo a acreditar e a dizer coisas que já pouco têm a ver com a forma como se pensa sobre a Igreja hoje em dia, basicamente. Nada disto é inócuo”, acrescenta o mesmo padre.
Igreja jesuíta
Estamos no dia seguinte à missa antiga. O cenário é igual. No entanto, estamos no chamado “coração de Lisboa”, no Chiado. Vê-se ainda mais gente. É difícil percorrer as ruas. As pessoas desviam-se umas das outras. Perto do Largo de Camões – decorado com uma enorme bola iluminada – está a conhecida Igreja da Encarnação. A missa também começa às 19 horas e já se veem pessoas a entrar. No entanto, ao contrário da missa da Igreja de Nossa Senhora da Conceição Velha, aqui, os fiéis são mais velhos. Dá a ideia de que se tratam de pessoas que vivem ou trabalham por aqui e parece que vêm quase todos acompanhados, como se fosse um ritual de todos os dias. O tamanho não se compara com a anterior. Mais imponente, alta e adornada é, contudo, muito mais escura e fria.
Nesta missa, os fiéis parecem ter um papel mais ativo, já que ao chegar, uma pessoa já se encontra a fazer as leituras no altar, perto do padre. Apesar de ser muito maior, a missa começou com menos de 20 pessoas. Quase só mulheres. Porém, há quem entre e saía, quem se sente e se levante, quem entre apenas para tirar uma fotografia ou ver o espaço. Quem se encontra sentado nos bancos de madeira aparenta ser português e também se veem crianças que contemplam os tetos trabalhados.
De frente para os fiéis, o padre fala “alto”, é coloquial e cativante. Está vestido de branco que simboliza a alegria, a paz e a ressurreição de Jesus Cristo. Por isso, é a veste litúrgica da Páscoa, do Natal, das Festas do Senhor, de Nossa Senhora e dos Santos não-mártires. Aqui, são poucos os silêncios. Os fiéis respondem também em uníssono às solicitações das orações, parecendo abraçar o espaço. A interação é maior. Quem recolhe ao contributo é uma senhora de meia idade, que sorri. Já o acólito está vestido de forma casual, com o que parece ser uma espécie de kispo bege.
Na hora da comunhão, também organizadamente, as pessoas colocam-se em fila. No entanto, não precisam de se ajoelhar e o padre coloca-lhes a hóstia na mão. Depois disso, há quem aproveite uma das saídas laterais para abandonar a missa que durou apenas 30 minutos.
No fundo, estas duas missas representam o que está em causa na Igreja. Há quem queira recuperar a tradição anterior ao Concílio Vaticano II e há quem queira abrir a Igreja aos tempos modernos, onde todos têm uma palavra a dizer, já que todos se entendem, pois o latim é mesmo para uma imensa minoria. Por alguma razão Francisco quer que a missa antiga seja excecional, onde nem todos se sentem bem vindos.