Principais desafios à Igreja hoje


Se a Igreja simplesmente se acomoda às “tendências da moda” de cada época e de cada sociedade – dizendo que está certo o que o mundo diz que está certo, sem uma avaliação crítica e madura a partir dos princípios e fundamentos que geram a Igreja – então, rápido perde a sua pertinência e transforma-se…


«Uma refundação axiológica torna-se premente, cada vez mais premente, numa sociedade que não sabe para onde anda»

 

Ao longo dos séculos muitos têm vaticinado o fim da Igreja Católica: parece que é uma instituição que ameaça permanentemente desaparecer. Já Afonso Costa, na Primeira República, afirmava que em duas gerações acabaria com o catolicismo em Portugal. A maior dificuldade é que essa ideia já tinha 150 anos e nunca tinha conseguido realizar o que pretendia. Cem anos depois da Primeira República, também hoje a Igreja permanece na sociedade portuguesa. Dado que passam os tempos e a Igreja continua a ser parte integrante da sociedade, qual o seu lugar, identidade e missão no mundo atual?

Penso que o principal ingrediente que permitiu à Igreja ultrapassar as muitas e diversas crises ao longo dos tempos é a sua essência mais profunda: ela sabe que a sua origem não é humana – a Igreja não se entende a si mesma como uma instituição meramente humana (ainda que tenha traços de instituição humana), nem como agremiação com fins políticos, humanitários ou ideológicos – mas que recebe a sua identidade e missão de Deus. Ora, é a realidade de Deus que torna a missão da Igreja pertinente e, por isso, será na medida em que há uma Palavra divina a dizer ao mundo atual que a Igreja permanece viva e atuante. Se a Igreja simplesmente se acomoda às “tendências da moda” de cada época e de cada sociedade – dizendo que está certo o que o mundo diz que está certo, sem uma avaliação crítica e madura a partir dos princípios e fundamentos que geram a Igreja – então, rápido perde a sua pertinência e transforma-se numa ONG piedosa, como afirmou o Papa Francisco.

No entanto, a fidelidade à sua identidade e missão não afastam a Igreja das particularidades de cada sociedade e de cada tempo. O compromisso com os princípios que a formam não tornam a Igreja reacionária diante da mudança. Por isso, outro dos grandes desafios que se colocam à Igreja hoje é a forma como lida com os reptos dos tempos atuais. A presença no panorama global – cada vez mais estilhaçado pelas guerras e conflitos – e a pertinência no meio mais local – sendo motor de serviço concreto ao bem comum – devem ser assuntos sérios para a vida eclesial. Uma questão incontornável é a forma como a Igreja é produtora de cultura: quando olhamos para cada época histórica, vemos como a Igreja esteve na vanguarda da vida cultural – não só artística –, mas de formas diferentes de viver o dia-a-dia moldadas por valores novos. Os mártires dos primeiros séculos impressionavam pela alegria e paz com que seguiam para a execução. Os mosteiros da Idade Média foram verdadeiros centros de cultura, com a promoção da educação, da assistência e da organização social. Mais tarde, ainda na Idade Média, foi à sombra da Igreja que nasceram as universidades, o intercâmbio intelectual e o surgimento do método científico. A expansão marítima na modernidade foi acompanhada pelo ardor missionário de levar cultura autenticamente cristã a outros povos e a oferecer uma matriz de valores realmente moderna, porque dignificadora do ser humano. No meio dos tumultos sociais e políticos depois da Revolução francesa, a Igreja soube encontrar o seu lugar como Mãe e Mestra, comprometendo os católicos com a ação na vida social, quer seja na renovação dos estudos universitários, na causa da dignidade da vida dos trabalhadores ou na promoção do ensino e dos cuidados de saúde. Também hoje a Igreja é chamada a encontrar o seu lugar na sociedade: há uma novidade constante do Evangelho que a Igreja no seu todo e cada um dos crentes em particular deve ser sinal e instrumento. Dizia Jesus, transmite o Evangelho de Mateus: «Vós sois o sal da terra. Ora, se o sal se corromper, com que se há de salgar? Não serve para mais nada, senão para ser lançado fora e ser pisado pelos homens» (5, 13). Hoje e sempre a Igreja tem de permanecer este sal da terra que não perde o seu autêntico sabor.

Depois, há questões dos nossos tempos atuais que se tornam incontornáveis. Por exemplo, a forma como a Inteligência Artificial significa um passo à frente no entendimento da vida em sociedade. No panorama atual, surge uma experiência que vem questionar o próprio ser humano e obrigá-lo a reconhecer que não é a inteligência o único aspeto que o torna diferente do resto das criaturas. Este é o desafio do ser humano olhar para si próprio como aquele que pensa: não só que faz deduções, mas que é capaz de uma leitura interior (ler por dentro = inteligência) que lhe é própria. Habituámo-nos a pensar segundo uma norma jurídica positiva: só é proibido aquilo que a lei diz que o é. Isso pode aplicar-se como limites à Inteligência Artificial, mas não ao ser humano: há uma identidade interior – uma substância – que torna o ser humano diferente de tudo o resto e que o leva a escolher de forma autenticamente livre.

Outro assunto pertinente é o testemunho ético-moral que a Igreja é chamada a fazer no mundo. Bento XVI trouxe para o centro da reflexão acerca da identidade da cultura europeia a necessidade de recordar as suas origens e a sua matriz fundamental: o Direito romano, a Filosofia grega e a Ética judaico-cristã. Como única entidade que dá unidade à história da cultura ocidental dos últimos dois milénios, a Igreja deve ser testemunho deste património e facilitadora dos instrumentos para uma renovação ou reforma (= voltar à forma) que passa pelo regresso ao que é fundante e fundamental. Isto tem relevo para todos os âmbitos da vida social – da educação à política, da técnica à reflexão. Uma refundação axiológica torna-se premente, cada vez mais premente, numa sociedade que não sabe para onde anda. E a Igreja pode ter, se o souber fazer, um papel fundamental.

Concluindo: parece-me particularmente pertinente que a Igreja seja chamada a dar testemunho da vida sobrenatural. Quando tantas vezes o ser humano é reduzido a um simples instrumento de produtividade ou prazer, a Igreja recorda que o ser humano é muito mais que o seu tubo digestivo. Tem alma imortal e a sua dignidade funda-se na sua origem em Deus – à sua imagem e semelhança – e no seu destino à bem-aventurança no Céu. Da capacidade de dar este testemunho e de o tornar real e operativo na vida das pessoas depende a credibilidade e a eficácia da missão e da identidade da Igreja.

Autor e Doutorado em Teologia

Principais desafios à Igreja hoje


Se a Igreja simplesmente se acomoda às “tendências da moda” de cada época e de cada sociedade – dizendo que está certo o que o mundo diz que está certo, sem uma avaliação crítica e madura a partir dos princípios e fundamentos que geram a Igreja – então, rápido perde a sua pertinência e transforma-se…


«Uma refundação axiológica torna-se premente, cada vez mais premente, numa sociedade que não sabe para onde anda»

 

Ao longo dos séculos muitos têm vaticinado o fim da Igreja Católica: parece que é uma instituição que ameaça permanentemente desaparecer. Já Afonso Costa, na Primeira República, afirmava que em duas gerações acabaria com o catolicismo em Portugal. A maior dificuldade é que essa ideia já tinha 150 anos e nunca tinha conseguido realizar o que pretendia. Cem anos depois da Primeira República, também hoje a Igreja permanece na sociedade portuguesa. Dado que passam os tempos e a Igreja continua a ser parte integrante da sociedade, qual o seu lugar, identidade e missão no mundo atual?

Penso que o principal ingrediente que permitiu à Igreja ultrapassar as muitas e diversas crises ao longo dos tempos é a sua essência mais profunda: ela sabe que a sua origem não é humana – a Igreja não se entende a si mesma como uma instituição meramente humana (ainda que tenha traços de instituição humana), nem como agremiação com fins políticos, humanitários ou ideológicos – mas que recebe a sua identidade e missão de Deus. Ora, é a realidade de Deus que torna a missão da Igreja pertinente e, por isso, será na medida em que há uma Palavra divina a dizer ao mundo atual que a Igreja permanece viva e atuante. Se a Igreja simplesmente se acomoda às “tendências da moda” de cada época e de cada sociedade – dizendo que está certo o que o mundo diz que está certo, sem uma avaliação crítica e madura a partir dos princípios e fundamentos que geram a Igreja – então, rápido perde a sua pertinência e transforma-se numa ONG piedosa, como afirmou o Papa Francisco.

No entanto, a fidelidade à sua identidade e missão não afastam a Igreja das particularidades de cada sociedade e de cada tempo. O compromisso com os princípios que a formam não tornam a Igreja reacionária diante da mudança. Por isso, outro dos grandes desafios que se colocam à Igreja hoje é a forma como lida com os reptos dos tempos atuais. A presença no panorama global – cada vez mais estilhaçado pelas guerras e conflitos – e a pertinência no meio mais local – sendo motor de serviço concreto ao bem comum – devem ser assuntos sérios para a vida eclesial. Uma questão incontornável é a forma como a Igreja é produtora de cultura: quando olhamos para cada época histórica, vemos como a Igreja esteve na vanguarda da vida cultural – não só artística –, mas de formas diferentes de viver o dia-a-dia moldadas por valores novos. Os mártires dos primeiros séculos impressionavam pela alegria e paz com que seguiam para a execução. Os mosteiros da Idade Média foram verdadeiros centros de cultura, com a promoção da educação, da assistência e da organização social. Mais tarde, ainda na Idade Média, foi à sombra da Igreja que nasceram as universidades, o intercâmbio intelectual e o surgimento do método científico. A expansão marítima na modernidade foi acompanhada pelo ardor missionário de levar cultura autenticamente cristã a outros povos e a oferecer uma matriz de valores realmente moderna, porque dignificadora do ser humano. No meio dos tumultos sociais e políticos depois da Revolução francesa, a Igreja soube encontrar o seu lugar como Mãe e Mestra, comprometendo os católicos com a ação na vida social, quer seja na renovação dos estudos universitários, na causa da dignidade da vida dos trabalhadores ou na promoção do ensino e dos cuidados de saúde. Também hoje a Igreja é chamada a encontrar o seu lugar na sociedade: há uma novidade constante do Evangelho que a Igreja no seu todo e cada um dos crentes em particular deve ser sinal e instrumento. Dizia Jesus, transmite o Evangelho de Mateus: «Vós sois o sal da terra. Ora, se o sal se corromper, com que se há de salgar? Não serve para mais nada, senão para ser lançado fora e ser pisado pelos homens» (5, 13). Hoje e sempre a Igreja tem de permanecer este sal da terra que não perde o seu autêntico sabor.

Depois, há questões dos nossos tempos atuais que se tornam incontornáveis. Por exemplo, a forma como a Inteligência Artificial significa um passo à frente no entendimento da vida em sociedade. No panorama atual, surge uma experiência que vem questionar o próprio ser humano e obrigá-lo a reconhecer que não é a inteligência o único aspeto que o torna diferente do resto das criaturas. Este é o desafio do ser humano olhar para si próprio como aquele que pensa: não só que faz deduções, mas que é capaz de uma leitura interior (ler por dentro = inteligência) que lhe é própria. Habituámo-nos a pensar segundo uma norma jurídica positiva: só é proibido aquilo que a lei diz que o é. Isso pode aplicar-se como limites à Inteligência Artificial, mas não ao ser humano: há uma identidade interior – uma substância – que torna o ser humano diferente de tudo o resto e que o leva a escolher de forma autenticamente livre.

Outro assunto pertinente é o testemunho ético-moral que a Igreja é chamada a fazer no mundo. Bento XVI trouxe para o centro da reflexão acerca da identidade da cultura europeia a necessidade de recordar as suas origens e a sua matriz fundamental: o Direito romano, a Filosofia grega e a Ética judaico-cristã. Como única entidade que dá unidade à história da cultura ocidental dos últimos dois milénios, a Igreja deve ser testemunho deste património e facilitadora dos instrumentos para uma renovação ou reforma (= voltar à forma) que passa pelo regresso ao que é fundante e fundamental. Isto tem relevo para todos os âmbitos da vida social – da educação à política, da técnica à reflexão. Uma refundação axiológica torna-se premente, cada vez mais premente, numa sociedade que não sabe para onde anda. E a Igreja pode ter, se o souber fazer, um papel fundamental.

Concluindo: parece-me particularmente pertinente que a Igreja seja chamada a dar testemunho da vida sobrenatural. Quando tantas vezes o ser humano é reduzido a um simples instrumento de produtividade ou prazer, a Igreja recorda que o ser humano é muito mais que o seu tubo digestivo. Tem alma imortal e a sua dignidade funda-se na sua origem em Deus – à sua imagem e semelhança – e no seu destino à bem-aventurança no Céu. Da capacidade de dar este testemunho e de o tornar real e operativo na vida das pessoas depende a credibilidade e a eficácia da missão e da identidade da Igreja.

Autor e Doutorado em Teologia