Perfect days


Era precisamente a rotina pobre, mas rigorosamente cumprida, que permitia a Hirayama maravilhar-se – sem sobressaltos demasiado produtivistas ou exageradas preocupações meritocráticas – com os livros que avidamente lia e as cassetes gravadas que sempre ouvia.


Na semana passada, pude ver Perfect Days, mais um espantoso filme de Wim Wenders.

Não pretende este texto assumir, todavia, a função de crítica cinematográfica.

Ele pretende, tão só, exprimir as sensações estéticas e as reflexões que o filme me suscitou.

Considero-me incapaz de intervir na discussão das suas qualidades técnicas e na adivinhação das mensagens que o realizador pretendeu, porventura, transmitir aos espectadores.

Ter de assistir e de ouvir algumas vacuidades infundadas sobre o sistema judiciário português, com que algumas distintas personalidades da nossa política se atrevem, de vez em quando, a presentear-nos, sem verdadeiramente terem a mínima noção do que dizem, custa.

E alguns de tais especialistas até podiam não proceder assim, pois muitos dos melhores estudos que se conhecem sobre a matéria estão escritos em alemão, língua que cultivam e gostam de usar quando pretendem que os tomem a sério.

Sendo tempo de Natal, deixo-lhes, por isso, aqui, duas sugestões de leitura para que, querendo insistir em falar de  uma matéria que, notoriamente, ainda não conhecem bem, possam adquirir uma primeira e ilustrada abordagem ao tema: Die «Juristische Profession und das Jurastudium», um conjunto de ensaios coligido por Judith Brockman (Ed. Nomos, 2017) e uma outra obra, também coletiva, esta em inglês – Strengten the Judiciary’s Independence in Europe (Ed. BMW Berliner Wissenschafts – Verlag Intersentia N.V., Berlin, 2009), mas orientada, igualmente, por um académico alemão: o renomado Professor de Direito Penal, Peter-Alexis Albrecht, da Goethe Universität de Frankfurt.

Se é compreensível o estupor que alguns sentem quando, desnecessária e maldosamente, são submetidos ao opróbrio público de terem de dar a cara a uma câmara de televisão, quando da realização de certas diligências processuais, que deviam decorrer no maior recato, já parece menos razoável que, sem cuidarem de estudar o assunto, falem sobre ele, exorbitando muito a expressão indignada da revolta que tais enxovalhos, justamente, lhes fazem sentir.

Mas, note-se, estamos, ainda assim, a falar de políticos profissionais e que, por isso, devem ser mais resilientes aos truques que ajudaram a inventar e a pôr em prática em relação a outros.

Durante os tempos áureos do blogue pró-socrático intitulado Câmara Corporativa, foi raro o dia em que, como muitos outros, não fui alvo de um legionário apedrejamento mediático por parte dos que – ainda disfarçados hoje de piratas, assumiram, depois, responsabilidades políticas relevantes – se escondiam, cobardemente, sob o heterónimo/pseudónimo de um tal «Abrantes».

A única resposta certa era nunca lhes responder, ignorando-os.

A escola de ativismo cívico que eu e muitos outros da minha geração frequentámos era, acreditem, muito mais séria e, por isso, em todos os sentidos, muito melhor do que a deles.  

Retorno, porém, ao tema inicial: exprimir e explorar as sensações estéticas e as reflexões que o filme suscita.

O que se quer, pois, é sublinhar, aqui, um dos temas fundamentais de tal obra cinematográfica: a insuspeitada – e nada sexy, atualmente- revelação da possibilidade de uma vivência feliz no exercício de uma rotina diária de um trabalhador totalmente dedicado às suas pouco imaginativas tarefas diárias.

Hirayama, o personagem principal – que o ator Kōji Hashimoto interpreta – trabalhava, quotidianamente, na lavagem das latrinas de Tóquio, limpando-as com toda a dedicação e rigor possíveis, como se de um exigente trabalho laboratorial se tratasse.

A essa – para nós, pouco atrativa atividade – Hirayama aliava, porém, uma considerável cultura literária e musical, que neutralizava a alienação que o seu pouco imaginativo ganha-pão traria a qualquer outro trabalhador desprovido dos instrumentos de reflexão espiritual e cultural que aquele possuía.

Era precisamente essa rotina pobre, mas rigorosamente cumprida, que lhe permitia maravilhar-se – sem sobressaltos demasiado produtivistas ou exageradas preocupações meritocráticas – com os livros que avidamente lia e as cassetes gravadas que sempre ouvia nos mesmos momentos do dia.

Era essa rotina pobre que lhe facilitava a desalienação do quotidiano trabalho sujo, sem ter de se socorrer de forçadas e patéticas mudanças no «ramram» da vida, traduzidas, por exemplo, como frequente sucede agora, em rápidas e esgotantes viagens turísticas com que muitos enganam, hoje, a indisponibilidade para contemplar e pensar realmente o mundo.

Olhando para o céu por cima dos ramos das mesmas árvores e visualizando sempre, pois, um céu diferente – mas sempre, também, infindavelmente belo – não carecia Hirayama de outras distrações que o obrigassem a lutar por outros e mais esforçados rendimentos.

Sem proceder como uma acomodatícia e pouco curiosa pessoa – que afinal não era, como revelam os livros que lia e canções que ouvia – não necessitava, todavia, de fugas ilusórias e frenéticas, pagas a preços incomportáveis para a remuneração das tarefas que, com denodo, cumpria e lhe permitiam sustentar as opções que fizera na vida.

Para esse quadro de existência, Wim Wenders conseguiu, soberbamente, dar-nos, até dos lugares aparentemente mais lúgubres, imagens belas e fantasias quase paradisíacas, que procuraram justificar o prazer novo de cada dia que Hirayama queria e sabia usufruir.

Alguns chamar-lhe-iam, rudemente, falta de ambição; outros, simplesmente, vontade de poesia.           

A síntese quase perfeita das bem assumidas virtualidades de tal rotina pobre e de como, apesar e através dela, pode alguém colher aí a sua felicidade diária é-nos dita, não pelo discurso verbal do personagem principal – que quase não fala e muito menos de si próprio –, mas pelas suas diária e pontualmente repetidas, mas, afinal, sempre diferentes, expressões faciais e, sobretudo, quando o filme acaba, pelos versos certeiros de uma das canções dele preferida: «Feeling Good», cantada pela inimitável Nina Simone:

«Birds flying high, you know how I feel / Sun in the sky, you know how I feel /
Breeze driftin' on by, you know how I feel / It's a new dawn It's a new day, It's a new life for me / yeah / And I'm feeling good».

Perfect days


Era precisamente a rotina pobre, mas rigorosamente cumprida, que permitia a Hirayama maravilhar-se - sem sobressaltos demasiado produtivistas ou exageradas preocupações meritocráticas - com os livros que avidamente lia e as cassetes gravadas que sempre ouvia.


Na semana passada, pude ver Perfect Days, mais um espantoso filme de Wim Wenders.

Não pretende este texto assumir, todavia, a função de crítica cinematográfica.

Ele pretende, tão só, exprimir as sensações estéticas e as reflexões que o filme me suscitou.

Considero-me incapaz de intervir na discussão das suas qualidades técnicas e na adivinhação das mensagens que o realizador pretendeu, porventura, transmitir aos espectadores.

Ter de assistir e de ouvir algumas vacuidades infundadas sobre o sistema judiciário português, com que algumas distintas personalidades da nossa política se atrevem, de vez em quando, a presentear-nos, sem verdadeiramente terem a mínima noção do que dizem, custa.

E alguns de tais especialistas até podiam não proceder assim, pois muitos dos melhores estudos que se conhecem sobre a matéria estão escritos em alemão, língua que cultivam e gostam de usar quando pretendem que os tomem a sério.

Sendo tempo de Natal, deixo-lhes, por isso, aqui, duas sugestões de leitura para que, querendo insistir em falar de  uma matéria que, notoriamente, ainda não conhecem bem, possam adquirir uma primeira e ilustrada abordagem ao tema: Die «Juristische Profession und das Jurastudium», um conjunto de ensaios coligido por Judith Brockman (Ed. Nomos, 2017) e uma outra obra, também coletiva, esta em inglês – Strengten the Judiciary’s Independence in Europe (Ed. BMW Berliner Wissenschafts – Verlag Intersentia N.V., Berlin, 2009), mas orientada, igualmente, por um académico alemão: o renomado Professor de Direito Penal, Peter-Alexis Albrecht, da Goethe Universität de Frankfurt.

Se é compreensível o estupor que alguns sentem quando, desnecessária e maldosamente, são submetidos ao opróbrio público de terem de dar a cara a uma câmara de televisão, quando da realização de certas diligências processuais, que deviam decorrer no maior recato, já parece menos razoável que, sem cuidarem de estudar o assunto, falem sobre ele, exorbitando muito a expressão indignada da revolta que tais enxovalhos, justamente, lhes fazem sentir.

Mas, note-se, estamos, ainda assim, a falar de políticos profissionais e que, por isso, devem ser mais resilientes aos truques que ajudaram a inventar e a pôr em prática em relação a outros.

Durante os tempos áureos do blogue pró-socrático intitulado Câmara Corporativa, foi raro o dia em que, como muitos outros, não fui alvo de um legionário apedrejamento mediático por parte dos que – ainda disfarçados hoje de piratas, assumiram, depois, responsabilidades políticas relevantes – se escondiam, cobardemente, sob o heterónimo/pseudónimo de um tal «Abrantes».

A única resposta certa era nunca lhes responder, ignorando-os.

A escola de ativismo cívico que eu e muitos outros da minha geração frequentámos era, acreditem, muito mais séria e, por isso, em todos os sentidos, muito melhor do que a deles.  

Retorno, porém, ao tema inicial: exprimir e explorar as sensações estéticas e as reflexões que o filme suscita.

O que se quer, pois, é sublinhar, aqui, um dos temas fundamentais de tal obra cinematográfica: a insuspeitada – e nada sexy, atualmente- revelação da possibilidade de uma vivência feliz no exercício de uma rotina diária de um trabalhador totalmente dedicado às suas pouco imaginativas tarefas diárias.

Hirayama, o personagem principal – que o ator Kōji Hashimoto interpreta – trabalhava, quotidianamente, na lavagem das latrinas de Tóquio, limpando-as com toda a dedicação e rigor possíveis, como se de um exigente trabalho laboratorial se tratasse.

A essa – para nós, pouco atrativa atividade – Hirayama aliava, porém, uma considerável cultura literária e musical, que neutralizava a alienação que o seu pouco imaginativo ganha-pão traria a qualquer outro trabalhador desprovido dos instrumentos de reflexão espiritual e cultural que aquele possuía.

Era precisamente essa rotina pobre, mas rigorosamente cumprida, que lhe permitia maravilhar-se – sem sobressaltos demasiado produtivistas ou exageradas preocupações meritocráticas – com os livros que avidamente lia e as cassetes gravadas que sempre ouvia nos mesmos momentos do dia.

Era essa rotina pobre que lhe facilitava a desalienação do quotidiano trabalho sujo, sem ter de se socorrer de forçadas e patéticas mudanças no «ramram» da vida, traduzidas, por exemplo, como frequente sucede agora, em rápidas e esgotantes viagens turísticas com que muitos enganam, hoje, a indisponibilidade para contemplar e pensar realmente o mundo.

Olhando para o céu por cima dos ramos das mesmas árvores e visualizando sempre, pois, um céu diferente – mas sempre, também, infindavelmente belo – não carecia Hirayama de outras distrações que o obrigassem a lutar por outros e mais esforçados rendimentos.

Sem proceder como uma acomodatícia e pouco curiosa pessoa – que afinal não era, como revelam os livros que lia e canções que ouvia – não necessitava, todavia, de fugas ilusórias e frenéticas, pagas a preços incomportáveis para a remuneração das tarefas que, com denodo, cumpria e lhe permitiam sustentar as opções que fizera na vida.

Para esse quadro de existência, Wim Wenders conseguiu, soberbamente, dar-nos, até dos lugares aparentemente mais lúgubres, imagens belas e fantasias quase paradisíacas, que procuraram justificar o prazer novo de cada dia que Hirayama queria e sabia usufruir.

Alguns chamar-lhe-iam, rudemente, falta de ambição; outros, simplesmente, vontade de poesia.           

A síntese quase perfeita das bem assumidas virtualidades de tal rotina pobre e de como, apesar e através dela, pode alguém colher aí a sua felicidade diária é-nos dita, não pelo discurso verbal do personagem principal – que quase não fala e muito menos de si próprio –, mas pelas suas diária e pontualmente repetidas, mas, afinal, sempre diferentes, expressões faciais e, sobretudo, quando o filme acaba, pelos versos certeiros de uma das canções dele preferida: «Feeling Good», cantada pela inimitável Nina Simone:

«Birds flying high, you know how I feel / Sun in the sky, you know how I feel /
Breeze driftin' on by, you know how I feel / It's a new dawn It's a new day, It's a new life for me / yeah / And I'm feeling good».