2024: Um ano de viragem para a Igreja Católica?


Apesar de terem sido dados passos muito significativos na resposta às situações de violência sexual cometida por membros da Igreja, permanecem ainda importantes desafios. O primeiro diz respeito à formação.


2023 foi um ano marcante para a Igreja Católica em Portugal. O início do ano ficou marcado pela publicação do relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica. O longo e detalhado documento apresenta um estudo sobre o fenómeno dos abusos sexuais cometidos por membros da Igreja Católica, com base nos 512 testemunhos recolhidos entre janeiro e outubro de 2022, apontando, por extrapolação, para um número total de quase 5.000 vítimas nos últimos 70 anos. Num primeiro momento, a apresentação do relatório foi recebida pela opinião pública num clima de contenção e serenidade. Todavia, três semanas mais tarde, abater-se-ia sobre a Igreja Católica uma autêntica tempestade mediática. No dia 03 de março, a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) apresentou em conferência de imprensa a resposta da Igreja à crise dos abusos. O tom pouco empático e defensivo despertou a indignação geral, provocando uma importante erosão da imagem e credibilidade da Igreja em Portugal, particularmente do episcopado.

A profunda crise em que mergulhou a Igreja Católica depois da apresentação do relatório da Comissão Independente eclodiu precisamente no ano em que se realizaria, em Lisboa, a Jornada Mundial da Juventude (JMJ), o grande encontro internacional de juventude. Dificilmente se poderia imaginar um ano de maiores contrastes. O clima sombrio do início do ano daria lugar, em agosto, a uma autêntica explosão de alegria, que surpreenderia mesmo os mais críticos da Igreja. Uma onda de entusiasmo e frescura invadiu as ruas de Lisboa e mostrou o rosto jovem de uma Igreja já anciã, que manifesta, pelo menos na velha Europa, sinais de cansaço e uma manifesta dificuldade em comunicar com o mundo contemporâneo. O Papa Francisco, que no passado dia 17 completou 87 anos, partilhou com os jovens o sonho de uma Igreja acolhedora e aberta, onde todos têm lugar. Ficou a ressoar o grito «todos, todos, todos»!

Durante o ano que agora termina, o Papa Francisco, cuja saúde se vai deteriorando visivelmente, cumpriu uma intensa agenda, com várias viagens internacionais. Francisco visitou a República Democrática do Congo, a Hungria, a Mongólia e a França, onde participou no encerramento dos «Encontros Mediterrâneos». O acontecimento eclesial mais importante do ano foi, no entanto, a realização, em outubro, da primeira sessão da XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos. Trata-se um importante marco no caminho sinodal convocado pelo Papa em 2021, com o objetivo de promover um discernimento o mais alargado possível sobre o modo como a Igreja pode avançar no caminho da sinodalidade. Trata-se, no fundo, de sonhar uma Igreja mais participativa e inclusiva.

Depois de ter vivido um ano particularmente intenso e marcado por profundos contrastes, quais os principais desafios que a Igreja Católica deverá enfrentar em 2024? A JMJ foi, sem dúvida, um acontecimento extraordinário, que manifestou ao mundo o melhor da Igreja Católica: a energia e a alegria dos jovens, o seu compromisso com a construção de um mundo mais humano e mais fraterno, a experiência sempre surpreendente da comunhão, o testemunho de paciência, civismo e tolerância, que surpreendeu a tantos. Preparada ao longo de vários anos, a JMJ convocou o entusiamo, a criatividade e o espírito de colaboração dos jovens católicos. Seria irrealista esperar da JMJ uma renovação radical e miraculosa do tecido eclesial. Acredito, no entanto, que a experiência transformadora que tantos jovens viveram durante a JMJ pode e deve traduzir-se em propostas arrojadas que possam acolher o seu desejo de aprofundar a fé e a pertença à Igreja. Ao longo dos últimos meses, os jovens foram convocados, por algumas dioceses, movimentos e congregações religiosas, para atividades celebrativas da JMJ, algumas de timbre bastante nostálgico. Não é suficiente. A experiência da JMJ foi, para a maioria dos jovens, epidérmica e emotiva. Sem propostas consistentes de aprofundamento, que convoquem a profundidade espiritual, a reflexão e o compromisso com comunidades concretas, os esperados frutos da JMJ podem não chegar a amadurecer.

A JMJ desviou da atenção mediática a temática dos abusos, oferecendo uma oportunidade única para travar o acelerado processo de descredibilização despoletado por essa crise. Seria ingénuo, no entanto, supor que esta crise já terminou. O presidente da CEP soube reconhecer que a referida conferência de imprensa de 3 março não correu bem. Desde então, os responsáveis da Igreja em Portugal souberam afinar o discurso, que se tornou mais humilde, empático para com as vítimas e mais realista e consequente. A criação do Grupo Vita constituiu um marco importante na resposta da Igreja pois, além de dar continuidade ao trabalho da Comissão Independente na recolha dos testemunhos de vítimas, criou uma estrutura capaz de oferecer apoio psicológico, psiquiátrico e também social. O relatório apresentado há poucos dias dá conta do acolhimento e acompanhamento de um número significativo de vítimas, o que evidencia que o Grupo Vita foi capaz de criar um capital de confiança. É animadora, também, a crescente articulação entre as Comissões Diocesanas e Proteção de Menores e Adultos Vulneráveis e destas com o Grupo Vita, que tem possibilitado uma resposta mais eficaz às necessidades das vítimas.

Apesar de terem sido dados passos muito significativos na resposta às situações de violência sexual cometida por membros da Igreja, permanecem ainda importantes desafios. O primeiro diz respeito à formação. Apesar das múltiplas ações de formação dirigidas a clérigos, a agentes de pastoral e a colaboradores das instituições da Igreja já realizadas, continua a faltar uma proposta de formação suficientemente ambiciosa e de alcance universal, que possa criar uma cultura robusta de prevenção e cuidado. Continua a ser urgente, por outro lado, a promoção de uma reflexão consistente, fundamentada e devidamente articulada sobre os modos de compensação das vítimas.

No plano universal, o grande desafio da Igreja será a realização, em outubro próximo, da segunda sessão da XVI Assembleia Sínodo dos Bispos. A publicação da síntese da primeira sessão despertou, em alguns setores, um sentimento de desilusão. Os documentos produzidos nas diversas etapas do caminho sinodal geraram a expectativa de que a Igreja pudesse dar passos significativos no que diz respeito a temas percebidos como prioritários: o celibato dos padres, a ordenação de mulheres ou a doutrina sobre a homossexualidade. Estes temas foram, sem dúvida, discutidos na sessão deste ano, mas fica-se com a perceção de que não foi possível alcançar um consenso. Aliás, num documento enviado recentemente à secretária-geral da Conferência Episcopal da Alemanha, o Secretário de Estado do Vaticano advertiu que são assuntos encerrados a ordenação sacerdotal reservada aos homens e a doutrina da Igreja sobre a homossexualidade. Neste sentido, um dos grandes desafios que a Igreja precisará seguramente de enfrentar em 2024 diz respeito à gestão de expectativas, face à possibilidade cada vez mais real de não ser possível alcançar um consenso em relação a alguns dos temas mais polémicos e mediatizados. Em todo o caso, os responsáveis do sínodo advertiram várias vezes que o objetivo do caminho sinodal consiste em fomentar na Igreja práticas sinodais, ou seja, de participação, comunhão e discernimento. Trata-se, porventura, de um objetivo menos mediático, mas sem dúvida vital para a Igreja do século XXI. Não há dúvida de que a Igreja deseja empreender um caminho de renovação, que lhe devolva a capacidade de dialogar com o mundo complexo que habitamos. Talvez o primeiro passo seja justamente aprender a escutar a voz de todos

 

Sacerdote jesuíta

2024: Um ano de viragem para a Igreja Católica?


Apesar de terem sido dados passos muito significativos na resposta às situações de violência sexual cometida por membros da Igreja, permanecem ainda importantes desafios. O primeiro diz respeito à formação.


2023 foi um ano marcante para a Igreja Católica em Portugal. O início do ano ficou marcado pela publicação do relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica. O longo e detalhado documento apresenta um estudo sobre o fenómeno dos abusos sexuais cometidos por membros da Igreja Católica, com base nos 512 testemunhos recolhidos entre janeiro e outubro de 2022, apontando, por extrapolação, para um número total de quase 5.000 vítimas nos últimos 70 anos. Num primeiro momento, a apresentação do relatório foi recebida pela opinião pública num clima de contenção e serenidade. Todavia, três semanas mais tarde, abater-se-ia sobre a Igreja Católica uma autêntica tempestade mediática. No dia 03 de março, a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) apresentou em conferência de imprensa a resposta da Igreja à crise dos abusos. O tom pouco empático e defensivo despertou a indignação geral, provocando uma importante erosão da imagem e credibilidade da Igreja em Portugal, particularmente do episcopado.

A profunda crise em que mergulhou a Igreja Católica depois da apresentação do relatório da Comissão Independente eclodiu precisamente no ano em que se realizaria, em Lisboa, a Jornada Mundial da Juventude (JMJ), o grande encontro internacional de juventude. Dificilmente se poderia imaginar um ano de maiores contrastes. O clima sombrio do início do ano daria lugar, em agosto, a uma autêntica explosão de alegria, que surpreenderia mesmo os mais críticos da Igreja. Uma onda de entusiasmo e frescura invadiu as ruas de Lisboa e mostrou o rosto jovem de uma Igreja já anciã, que manifesta, pelo menos na velha Europa, sinais de cansaço e uma manifesta dificuldade em comunicar com o mundo contemporâneo. O Papa Francisco, que no passado dia 17 completou 87 anos, partilhou com os jovens o sonho de uma Igreja acolhedora e aberta, onde todos têm lugar. Ficou a ressoar o grito «todos, todos, todos»!

Durante o ano que agora termina, o Papa Francisco, cuja saúde se vai deteriorando visivelmente, cumpriu uma intensa agenda, com várias viagens internacionais. Francisco visitou a República Democrática do Congo, a Hungria, a Mongólia e a França, onde participou no encerramento dos «Encontros Mediterrâneos». O acontecimento eclesial mais importante do ano foi, no entanto, a realização, em outubro, da primeira sessão da XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos. Trata-se um importante marco no caminho sinodal convocado pelo Papa em 2021, com o objetivo de promover um discernimento o mais alargado possível sobre o modo como a Igreja pode avançar no caminho da sinodalidade. Trata-se, no fundo, de sonhar uma Igreja mais participativa e inclusiva.

Depois de ter vivido um ano particularmente intenso e marcado por profundos contrastes, quais os principais desafios que a Igreja Católica deverá enfrentar em 2024? A JMJ foi, sem dúvida, um acontecimento extraordinário, que manifestou ao mundo o melhor da Igreja Católica: a energia e a alegria dos jovens, o seu compromisso com a construção de um mundo mais humano e mais fraterno, a experiência sempre surpreendente da comunhão, o testemunho de paciência, civismo e tolerância, que surpreendeu a tantos. Preparada ao longo de vários anos, a JMJ convocou o entusiamo, a criatividade e o espírito de colaboração dos jovens católicos. Seria irrealista esperar da JMJ uma renovação radical e miraculosa do tecido eclesial. Acredito, no entanto, que a experiência transformadora que tantos jovens viveram durante a JMJ pode e deve traduzir-se em propostas arrojadas que possam acolher o seu desejo de aprofundar a fé e a pertença à Igreja. Ao longo dos últimos meses, os jovens foram convocados, por algumas dioceses, movimentos e congregações religiosas, para atividades celebrativas da JMJ, algumas de timbre bastante nostálgico. Não é suficiente. A experiência da JMJ foi, para a maioria dos jovens, epidérmica e emotiva. Sem propostas consistentes de aprofundamento, que convoquem a profundidade espiritual, a reflexão e o compromisso com comunidades concretas, os esperados frutos da JMJ podem não chegar a amadurecer.

A JMJ desviou da atenção mediática a temática dos abusos, oferecendo uma oportunidade única para travar o acelerado processo de descredibilização despoletado por essa crise. Seria ingénuo, no entanto, supor que esta crise já terminou. O presidente da CEP soube reconhecer que a referida conferência de imprensa de 3 março não correu bem. Desde então, os responsáveis da Igreja em Portugal souberam afinar o discurso, que se tornou mais humilde, empático para com as vítimas e mais realista e consequente. A criação do Grupo Vita constituiu um marco importante na resposta da Igreja pois, além de dar continuidade ao trabalho da Comissão Independente na recolha dos testemunhos de vítimas, criou uma estrutura capaz de oferecer apoio psicológico, psiquiátrico e também social. O relatório apresentado há poucos dias dá conta do acolhimento e acompanhamento de um número significativo de vítimas, o que evidencia que o Grupo Vita foi capaz de criar um capital de confiança. É animadora, também, a crescente articulação entre as Comissões Diocesanas e Proteção de Menores e Adultos Vulneráveis e destas com o Grupo Vita, que tem possibilitado uma resposta mais eficaz às necessidades das vítimas.

Apesar de terem sido dados passos muito significativos na resposta às situações de violência sexual cometida por membros da Igreja, permanecem ainda importantes desafios. O primeiro diz respeito à formação. Apesar das múltiplas ações de formação dirigidas a clérigos, a agentes de pastoral e a colaboradores das instituições da Igreja já realizadas, continua a faltar uma proposta de formação suficientemente ambiciosa e de alcance universal, que possa criar uma cultura robusta de prevenção e cuidado. Continua a ser urgente, por outro lado, a promoção de uma reflexão consistente, fundamentada e devidamente articulada sobre os modos de compensação das vítimas.

No plano universal, o grande desafio da Igreja será a realização, em outubro próximo, da segunda sessão da XVI Assembleia Sínodo dos Bispos. A publicação da síntese da primeira sessão despertou, em alguns setores, um sentimento de desilusão. Os documentos produzidos nas diversas etapas do caminho sinodal geraram a expectativa de que a Igreja pudesse dar passos significativos no que diz respeito a temas percebidos como prioritários: o celibato dos padres, a ordenação de mulheres ou a doutrina sobre a homossexualidade. Estes temas foram, sem dúvida, discutidos na sessão deste ano, mas fica-se com a perceção de que não foi possível alcançar um consenso. Aliás, num documento enviado recentemente à secretária-geral da Conferência Episcopal da Alemanha, o Secretário de Estado do Vaticano advertiu que são assuntos encerrados a ordenação sacerdotal reservada aos homens e a doutrina da Igreja sobre a homossexualidade. Neste sentido, um dos grandes desafios que a Igreja precisará seguramente de enfrentar em 2024 diz respeito à gestão de expectativas, face à possibilidade cada vez mais real de não ser possível alcançar um consenso em relação a alguns dos temas mais polémicos e mediatizados. Em todo o caso, os responsáveis do sínodo advertiram várias vezes que o objetivo do caminho sinodal consiste em fomentar na Igreja práticas sinodais, ou seja, de participação, comunhão e discernimento. Trata-se, porventura, de um objetivo menos mediático, mas sem dúvida vital para a Igreja do século XXI. Não há dúvida de que a Igreja deseja empreender um caminho de renovação, que lhe devolva a capacidade de dialogar com o mundo complexo que habitamos. Talvez o primeiro passo seja justamente aprender a escutar a voz de todos

 

Sacerdote jesuíta