“Evitar que a IA se substitua à Inteligência do Aluno” é a chave

“Evitar que a IA se substitua à Inteligência do Aluno” é a chave


Será que tudo é perfeito quando falamos na utilização da inteligência artificial (IA) no Ensino Superior? Existem pontos positivos, mas também muitos desafios. Por exemplo, o do plágio, que poderá trazer com ele as provas orais.


A utilização da inteligência artificial (IA) no Ensino Superior pode revolucionar a maneira como os alunos aprendem, os professores ensinam e as instituições educacionais operam. Por exemplo, a IA adapta o ensino de acordo com as necessidades específicas de cada aluno, com base na sua performance e estilo de aprendizagem, os chatbots baseados em IA fornecem suporte aos alunos para questões administrativas, como matrícula e informações sobre eventos, disponíveis 24 horas, todos os dias, e as ferramentas de avaliação automáticas analisam o desempenho dos alunos, oferecendo feedback imediato e aliviando a carga de trabalho dos professores. No entanto, será que tudo é perfeito no mundo da IA? Não, e é por esse motivo que o falámos com o assistente convidado David Silva Ramalho e os professores Nuno da Silva Jorge e Nelson Ribeiro.

“A IA terá certamente, se é que não tem já, um impacto muito significativo no modo como se investiga e como se elaboram trabalhos científicos no ensino superior. A sua utilidade, bem como o risco do seu uso fraudulento, serão, naturalmente, maiores em modelos de avaliação que dependam de trabalhos escritos, como acontece em algumas cadeiras da licenciatura, e, com mais destaque, nos mestrados e doutoramentos, mas continuarão a ser úteis como auxiliares de estudo e de investigação na licenciatura”, começa por dizer David Silva Ramalho, docente na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e advogado na Morais Leitão. “No Direito, pelo menos em língua portuguesa, as ferramentas publicamente disponíveis ainda demonstram falhas relevantes, e não dispõem de muitas fontes doutrinárias, por na sua maioria ainda existirem apenas em papel, o que torna a sua utilização falível e, por isso, dependente de revisão atenta por quem conheça as questões”.

“No entanto, não é difícil de antecipar que as insuficiências atuais dos sistemas de IA de hoje não serão as de amanhã, e nem sequer são as de hoje noutros locais, por isso o seu impacto chegará, mais cedo ou mais tarde, ao ensino superior do Direito em Portugal”, frisa. “As consequências, claro está, poderão passar pela necessidade de adaptação dos modelos de avaliação, quando sejam, por definição, muito dependentes de trabalhos escritos, para incorporar modelos mais interativos, combinados com avaliação oral, de modo a evitar que a IA se substitua à Inteligência do Aluno”, realça.

O recurso à IA

 “O modelo de avaliação que vigora na licenciatura na Faculdade de Direito de Lisboa, essencialmente assente em exames escritos e em provas orais, e menos em trabalhos escritos (embora também os haja), torna mais difícil o recurso à IA no momento da avaliação. É certo que, na fase de investigação, durante a preparação para exames e provas orais, o aluno poderá recorrer a ferramentas de IA para ajudar a sua investigação, o que me parece, pelo menos até certa medida, positivo, embora comporte um risco de o aluno se demitir da sua tarefa de estudo e investigação”, observa. “Isso dito, até à data não identifiquei ainda o recurso a estas ferramentas durante o momento de avaliação, mas não posso excluir, como ninguém poderá, que tenha já acontecido”.

“Parece-me que a utilização de IA no Ensino Superior deverá ser regulada, sim. Aliás, na Faculdade de Direito de Lisboa existem já orientações do Conselho Científico relativamente à utilização da Inteligência Artificial em trabalhos académicos e que não proíbem a sua utilização. O caminho parece-me ser esse. A IA, à semelhança do que aconteceu antes com o advento da Internet, será certamente uma ferramenta muito útil na investigação científica, seja na identificação de fontes, no resumo de correntes doutrinárias e jurisprudenciais, ou mesmo na descoberta de temas de investigação”, clarifica. 

“No entanto, tal como acontece já com outras ferramentas de investigação, é uma tecnologia que se presta também ao mau uso, ou seja, ao uso para a fraude académica. O seu uso para este fim coloca, porém, dificuldades adicionais ao avaliador, já que, ao contrário da fraude mais frequente com que nos deparamos, e que consiste na cópia, total ou parcial, de outros escritos, o uso de inteligência artificial dificulta a deteção da sua utilização. É, por isso, mais insidioso e mais difícil de combater. A solução deverá passar, por isso, por aceitar o seu uso, mas com condições, e por privilegiar formas de avaliação mesmo propensas ao uso destas tecnologias”.

Quem concorda com David Silva Ramalho é Nuno da Silva Jorge, professor na Escola Superior de Comunicação Social do Instituto Politécnico de Lisboa e Managing Partner da Aurora. “A IA é duplamente fascinante e assustadora, digamos assim. É fascinante porque nos permite fazer coisas que apenas sonhávamos em cenários de ficção científica e possibilitam que nós, humanos, sejamos muito melhores e mais rápidos naquilo que fazemos. Ou seja, ela abre -nos portas para coisas que eram inimagináveis no nosso dia-a-dia. Por outro lado, é altamente assustadora, porque ninguém sabe ao certo como é que ela vai evoluir, que impactos vai ter exatamente no nosso nosso dia-a-dia. Apenas sabemos que a sua evolução será exponencial”, explica. “Ou seja, isso, para todos os efeitos, acaba por ser um pouco assustador, coloca-nos um pouco em alerta porque a inteligência artificial que nós conhecemos hoje é um pouco como aqueles microorganismos que deram origem à vida biológica na Terra, não é? Só que, ao contrário desses microorganismos, ela não demorará milhões de anos a evoluir”, deixa claro.

Os fascinados e os assustados

“Neste momento, penso que o Ensino Superior está dividido entre quem está fascinado pelo potencial da IA e aqueles que estão realmente assustados. No mês passado tive a oportunidade de ir a Varsóvia lecionar um curso na Universidade sobre IA e no âmbito desse curso convidaram-me para dar uma conferência sobre o tema, especificamente para académicos. Vê-se que o ensino está muito preocupado com isto. Nessa conferência, uma professora perguntou-me claramente o que é que resta para os professores a partir do momento em que podemos criar chatbots personalizados, que têm a matéria toda e que explicam tudo e criam uma interação one to one com o aluno. Ela tinha medo de se tornar obsoleta”, recorda.

O regresso das provas orais

“Há três desafios fundamentais que os estudantes enfrentam. Primeiro, perceber o impacto da IA. Depois, saber utilizar as ferramentas de forma eficiente, pois a IA será altamente instrumental para aquilo que vai ser o seu futuro, o mercado de trabalho no seu quotidiano. E depois, e penso que este é se calhar menos visível, mas altamente importante, que é compreender as implicações éticas que envolve não só o uso, mas também a exposição a esta tecnologia”, continua o professor.

“Há muitas pessoas que estão preocupadas, por exemplo, com o problema do plágio, não é? E essa é uma questão importante, mas que não é propriamente muito diferente de um aluno ir a um site e ir buscar um trabalho já feito. O problema não é tanto ter um aluno a plagiar, porque sempre aconteceu e sempre houve maneiras de tentar travar o plágio. É mais tentar que o aluno compreenda primeiro que está a plagiar. Segundo, que o que está a fazer não é correto. E, terceiro, que será altamente prejudicial para o seu desenvolvimento futuro. Do ponto de vista ético, eu acho que me parece que é uma questão importante que os alunos percebam, mas também os professores, de educar ou tentar chamar a atenção para esse sentido, não tanto numa de tentar impedir o plágio, porque isso há maneiras de o fazer e se calhar vamos ter um regresso das provas orais como método de validação”, salienta. “Quanto mais conscientes nós estivermos dos riscos da inteligência artificial, menos expostos estaremos a ser vítimas dos mesmos. Só assim conseguiremos tirar partido do potencial incrível que isto tem para melhorar as nossas vidas”, finaliza.

"É algo que acompanhamos com muito interesse"

"A IA Generativa está a ter um impacto significativo no Ensino Superior, não apenas pelo potencial de acelerar a inovação e a investigação, mas também pelo seu uso indevido, que inclui a violação da lei dos direitos de autor ou da proteção de dados pessoais. Existe também o risco de levar a que os alunos invistam menos tempo a exercitar as suas competências de redação de texto, o que pode reduzir as suas capacidades de articular ideias e de desenvolver raciocínios críticos complexos", começa por afirmar Nelson Ribeiro, diretor da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa. "Em primeiro lugar está o desafio da segurança no uso correto e legal da informação. Se, por um lado, plataformas como o ChatGPT parecem não respeitar os direitos de autor, por outro lado colocam o desafio às universidades de encontrarem novas formas de garantir que os estudantes continuam a desenvolver competências de articulação de ideias complexas. Na universidade formamos pessoas para o futuro pelo que estas têm de saber usar estas plataformas mas também devem conhecer os seus limites. Paralelamente, há que fazer sentir aos alunos que tecnologias como a IA Generativa, quando não reguladas, podem criar novos problemas societais e quando utilizadas de forma errada no processo de aprendizagem podem contribuir para a criação de uma geração de pessoas menos capazes de pensar pela sua própria cabeça".

"Perguntas simples a plataformas de IA Generativa podem facilitar muito a pesquisa de informação e, embora atualmente muitas das respostas estejam incompletas ou mesmo erradas, é previsível que estas plataformas venham a melhorar num curto espaço de tempo. Poderá, no futuro, ajudar a que os estudantes pesquisem facilmente autores e conceitos os podem a expandir os conhecimentos adquiridos em contexto de aula. Mas é importante não esquecermos os limites da sua utilização. Perante uma resposta ou orientação da IA Generativa, temos de ser capazes de procurar a sua confirmação, colocar a informação em perspetiva e muitas vezes tentar refutá-la. Em suma, traz benefícios na poupança de tempo de um trabalho mais mecânico e na procura de informação, mas obriga a uma maior capacidade crítica na validação da informação", explica o Professor Associado com agregação cujas principais áreas de pesquisa, segundo o site da FCH-Católica, são a história dos media, propaganda e desinformação, media e colonialismo e estudos de jornalismo.

"Não é difícil de identificar [a utilização de IA] pela linguagem utilizada, pelos padrões de resposta e pelas fontes de informação que são referenciadas pois a IA tende a socorrer-se dos textos e autores que são aqueles mais conhecidos e citados (mesmo quando estes contêm informações erradas). Por outro lado, conhecimentos bem a bibliogafia que os nossos alunos dominam, o que torna não muito difícil perceber quando se socorrerem deste tipo de ferramentas. Tais trabalhos não podem ser avaliados pois na universidade avaliamos os alunos e não os sistemas de IA. Os alunos estão bem conscientes disso", continua o docente, especificando que aquela instituição de Ensino Superior está atenta ao desenvolvimento da IA.

"É algo que acompanhamos com muito interesse a nível internacional, não só no que se refere à regulamentação em contexto do ensino superior, mas também às questões éticas levantadas pela IA. A Comissão Europeia está a dar um passo significativo na regulação destas plataformas, o que se revela crucial pelo facto de termos de defender os direitos de autor e também de colocar entraves à utilização da IA como um poderoso instrumento de disseminação da desinformação. No caso das universidades, na Faculdade de Ciências Humanas a nossa postura é a de que não vale pena tentar proibir os alunos de aceder a estas plataformas. Pelo contrário, devemos ajudá-los a utilizá-las de forma consciente, ética e de forma a que os ajudem a desenvolver as suas competências", conclui.