Como e quando surgiu a ideia de criares as contas no Instagram e no Facebook, sendo que também criaste o blogue?
A ideia da página 'Pérolas da Urgência' surgiu em 2016. O objectivo era criar uma página que me permitisse retratar os episódios com os quais me deparava diariamente, durante a minha actividade profissional, na altura no SNS. Esse retrato era feito, na maior parte das vezes, de forma sarcástica, ou com apenas um toque humorístico, algo que me permitia também explorar a minha própria criatividade. Primeiro, criei a página do Facebook. Só mais tarde, em 2018, é que criei a página do Instagram. Aliás, acho que quando criei a página no Facebook nem sequer sabia o que era o Instagram. O blogue foi um projecto paralelo, no qual podia exprimir-me mais livremente, sem os constrangimentos do número limitado de caracteres impostos pelas redes sociais. Acabei por desistir do blogue quando percebi que a maior parte das pessoas tem um limiar de atenção semelhante a um peixe-balão e optei por apostar mais nas mensagens curtas e grossas do Instagram.
E sempre tiveste o objetivo de manter o anonimato durante tanto tempo ou pensaste que tal não seria possível?
Manter o anonimato sempre foi uma prioridade para mim. Não me interessa ser famoso. Interessa-me dizer o que tenho a dizer, sem filtros, sem receios do que esta ou aquela pessoa possam achar de mim, sem restrições de quem tem uma imagem ou reputação a manter na vida real. E nesse aspecto, a personagem Pearls é o veículo ideal para o fazer. Por isso, respondendo à tua questão, se ao fim de uma jornada de sete anos me surpreende continuar a ser anónimo, não, não surpreende. Foi sempre o que quis.
Como e quando tiveste a ideia de criar uma linha de merch?
A linha de artigos Pearls era uma ideia que já tinha há algum tempo. Sempre achei que não tinha disponibilidade para me dedicar a um projecto desses em "full-time" e foi por isso que não avancei. Entretanto, uma empresa chamada Mistura de Amor contactou-me e agora temos uma parceria engraçada. Eles produzem e enviam os artigos, eu contribuo com ideias para novos artigos e publicito-as na minha página. Tem funcionado bem!
E como apareceram os vídeos?
Os vídeos foram criados como uma forma de aumentar a literacia em saúde da população portuguesa. Há um limite de informação que consegues transmitir numa publicação de Facebook ou Instagram. Se te perdes em muitos detalhes, as pessoas perdem o interesse. Os vídeos permitem-me transmitir a informação de forma mais eficaz. Geralmente faço-o sob a forma de tópicos, para ser mais interessante. Fosse eu uma pessoa menos info-excluída e com mais conhecimentos em edição de vídeos e já teria um portefólio de centenas de tópicos no canal!
Quem vê os teus vídeos não diria que és info-excluído!
Obrigado pelo elogio. Faço o meu melhor!
Como é que manténs sempre o sentido de humor e a força de vontade? Quando estás mais em baixo decides não publicar ou afastas os maus pensamentos e acabas por ter a conta como um refúgio?
Digamos que as redes sociais não são propriamente o melhor local para te refugiares dos maus pensamentos!
Pois, tens razão. Até porque, por exemplo, tens vindo a explicar, ao longo do tempo, que és ameaçado por variadas pessoas. Algumas até alegam que sabem quem és. Como é que te sentes quando isso acontece?
Sinto-me exactamente na mesma. Não me afecta nem um bocadinho. Ninguém, ou quase ninguém, sabe quem eu sou. Muita gente suspeita que sabe quem eu sou, mas é mesmo só isso, uma suspeita. Ninguém tem provas objectivas da minha identidade. E mesmo que tenha e um dia a minha identidade seja irrefutavelmente descoberta, como se diz em Paris de França, "c'est la vie". Estou preparado para isso. Por isso, como dizia o Joker no filme 'Dark Knight', "you have absolutely nothing to threaten me with"! E em boa verdade, é importante ressalvar aqui também que mais de noventa por cento das interacções que eu tenho com as pessoas são positivas. Claro que são as negativas as que acabam por ter mais destaque mas, felizmente, são raras. A maior parte das pessoas conserva o bom-senso!
Já ponderaste eliminar a conta e, consequentemente, a persona do Doc Pearls?
Sim. Houve uma altura, mais ou menos há um ano, em que achei que estava na altura de enterrar o Pearls. Felizmente, essa fase já me passou!
Na tua primeira publicação do Instagram, em outubro de 2018, publicaste uma imagem curiosa: um estetoscópio acompanhado pelo nome da tua conta e a frase ‘37ºC não é febre’. Como é que te lembraste da mesma e que poderia ser aquela que marcaria a tua presença nas redes sociais enquanto Doc Pearls?
Foi apenas um logotipo piroso que criei no PowerPoint. Sabia que a frase "37ºC não é febre" era uma frase "instagramável" e decidi juntá-la a um estetoscópio, porque se tratava de uma página sobre saúde. Mas gosto muito mais do logotipo actual.
Que motivo te levou a pôr fim à rubrica ‘Spooky Friday’?
Falta de tempo, apenas. Eu adorava fazer as 'Spooky Fridays'. E sabia que uma parte das pessoas que acompanham a página também gostavam. É um tema de nicho. Quem gosta, gosta mesmo. E eu sou das pessoas que gosta mesmo. Infelizmente, o dia só tem vinte e quatro horas, com muita pena minha. Não há tempo para tudo. Mas quem sabe se em breve as 'Spooky Fridays' não poderão voltar, quiçá até em formato de vídeo?
Entre as mais de 1600 publicações que já veiculaste, tens alguma preferida?
Gosto particularmente das publicações que me obrigam a puxar mais pela cabeça e ser mais criativo. Por exemplo, a história de quando a levofloxacina, que é um antibiótico, foi ao psicólogo porque se sente desvalorizada. Ou a "Insuficiência cardíaca para totós", onde o coração e os pulmões adquirem identidade própria e a sua interacção serve como base para explicar a fisiologia da doença. Também gosto de fazer publicações de cariz político, não só porque me permitem expressar aquilo que sinto, mas também porque sei que acabam por ofender meio mundo. Curiosamente, ou não, a minha publicação mais popular de todos os tempos foi a "Estou cansado de Portugal", onde me limitei a exprimir a desilusão que senti com o resultado das eleições em Portugal. Talvez seja essa a minha publicação preferida. E infelizmente, algo me diz que a vou reeditar muito em breve.
Como é que decidiste sair do SNS? Foi uma decisão que demoraste a tomar ou já te sentias tão exausto que não ponderaste muito?
Eu saí do SNS há alguns anos. As coisas já não estavam bem na altura, mas nem se comparam ao estado a que chegaram agora. Agora estão mil vezes pior. Ou seja, não foi tanto uma questão de exaustão, foi mais uma questão de percepção. Percebi o rumo que o SNS estava a levar, percebi que as condições de trabalho se estavam a degradar de dia para dia, percebi que dali para a frente seria sempre a piorar. E então decidi sair. No fundo, tomei a decisão que muitos dos meus colegas acabaram por tomar, apenas mais cedo.
Como é que tem sido trabalhar no setor privado?
No global, está a ser óptimo. Não há locais de trabalho perfeitos, há fases boas e menos boas, mas a decisão de me mudar para o privado foi uma das melhores decisões da minha vida, da qual não me arrependo rigorosamente nada e acho que vai ser muito difícil, para não dizer impossível, algum dia voltar para o sector público. É triste, mas é a realidade.
Que características do setor privado achas que deviam existir no público?
A meritocracia é uma delas. Infelizmente, acho que existem muitos profissionais na área da saúde, particularmente no sector público, que não têm qualidade suficiente para exercer. E isto aplica-se a todas as classes profissionais, de médicos a administrativos. A partir do momento em que te tornas efectivo, tornas-te praticamente intocável. Podes simplesmente levantar-te e passear o dia todo pelo hospital, que ninguém quer saber. É virtualmente impossível despedir alguém no sector público. E isso faz com que algumas pessoas se encostem, enquanto outras se esforçam a dobrar para manter o barco à tona de água. E no fim do dia, as pessoas que se esforçam e são verdadeiramente dedicadas, nem sequer vêem o seu esforço justamente recompensado e acabam por se desmotivar. No privado as coisas não são bem assim. Há resultados para atingir. Há números para mostrar. É um negócio como outro qualquer. Se não és produtivo, vais embora. Se a saúde pública fosse gerida como um negócio privado, o SNS não estava na situação precária em que está no presente momento.
E essa situação precária, parece-me, ganhou outras proporções desde o surgimento da covid-19, mas tu saberás melhor explicar-me isto. Como é que foi ser médico durante a pandemia?
Eu não te posso dar uma perspectiva completa do que foi ser médico durante a pandemia, porque nessa altura já tinha abandonado o SNS e foram os hospitais do SNS que receberam a maioria dos doentes com COVID-19. Seria hipócrita da minha parte lamentar-me sobre o cenário dantesco a que assisti durante esse período, porque sei que muitos colegas meus passaram por muito mais do que eu passei.
O que tens a dizer sobre a gestão da pandemia em Portugal? No lançamento do livro 'Covid-19 em Portugal: a estratégia', na reitoria da Universidade do Minho, em Braga, no ano passado, António Costa disse que "a chave de tudo" foi o comportamento dos cidadãos e o seu bom senso.
Dois anos depois, é fácil falar. Muito honestamente, acho que foi um período difícil, desafiante, em que fomos obrigados a reformular a forma como trabalhamos e como nos relacionamos. Tentámos adaptar-nos à situação conforme pudemos. Se fizemos tudo certo? Não, não fizemos. Acho que algumas medidas foram demasiado drásticas. Demasiado castradoras. Proibiu-se pessoas de visitar familiares doentes a lares e hospitais, restringiu-se a circulação de pessoas entre concelhos em épocas festivas, muitos negócios foram por água abaixo, muita gente perdeu o acompanhamento médico relativo a doenças não COVID… E, no fim de contas, não sei até que ponto é que estas medidas tiveram verdadeiramente algum impacto em relação ao número total de casos e mortes por COVID-19.
Em novembro de 2022, foi noticiado que haviam sido reportados mais de 1300 casos de violência contra profissionais de saúde na plataforma Notifica, da Direção-Geral da Saúde (DGS), um aumento superior a 40% relativamente ao ano anterior. O que sentiste ao ter conhecimento deste número?
Não me surpreendeu, honestamente. Revoltante? Sem dúvida. Surpreendente? Nem por isso.
Nos primeiros dez meses de 2022, os profissionais de saúde enfrentaram uma significativa incidência de agressões. Os médicos representaram a maioria das vítimas, compreendendo 32%, seguidos por enfermeiros com 31% e assistentes técnicos com 29%. Os dados da Plataforma Notifica revelam que a violência psicológica foi a forma mais predominante de agressão, correspondendo a 67% dos casos relatados durante o período mencionado. Em segundo lugar, o assédio foi registado em 14% dos casos, enquanto a violência física foi responsável por 13%. Estando tu no terreno diariamente, e tendo vivido a realidade do setor público e agora a do setor privado, achas que estes números espelham a realidade?
Não. Acho que o número verdadeiro de agressões, particularmente no que respeita a violência psicológica, é significativamente superior.
No final de dezembro de 2019, uma médica que estava a prestar serviço de urgência no Hospital de São Bernardo, em Setúbal, foi alvo de agressão por parte de uma utente. A agressora entrou no gabinete da médica e atacou-a violentamente. A gravidade do ferimento num dos olhos exigiu que a profissional de saúde fosse submetida a uma pequena cirurgia no Hospital de São José, em Lisboa. Poucos dias depois, um casal de médicos esteve trancado dentro de uma sala com um doente, no mesmo hospital, mas a instituição de saúde desmentiu as agressões. O que pensas destes episódios?
Acho que, por algum motivo que ultrapassa a minha limitada capacidade cognitiva, as administrações hospitalares continuam a não priorizar a segurança dos seus profissionais. A forma relaxada e casual como a Administração do Hospital de Setúbal respondeu ao incidente foi o que mais me chocou. Foi uma resposta quase ao nível de "Ups, paciência, isto são coisas que acontecem". Se ser agredido por um utente durante o desempenho da nossa actividade profissional é, por si só, um acontecimento deplorável, sentir que os nossos "patrões" se estão completamente a borrifar para esse facto torna tudo mil vezes pior.
Dois anos depois, dois enfermeiros e um vigilante foram agredidos no Hospital de Famalicão por 15 acompanhantes de uma doente. Nas primeiras horas após o ataque, soube-se que um dos enfermeiros – atacado com uma barra ferro usada para suporte de soro e que ficou com a cara ensanguentada, a cabeça partida e um rasto de sangue – fora submetido a uma intervenção cirúrgica. Naquele dia, em comunicado, a PSP afirmou que, à chegada ao hospital, “não foi possível identificar nem deter os eventuais agressores, por os mesmos terem fugido do local” e indicou que, das agressões, resultaram também “danos na porta de acesso ao respetivo serviço de urgência”. Para além deste e dos outros episódios, existem outros que te marcaram e que achas que devem ser lembrados?
Todos esses episódios são absolutamente chocantes e deploráveis, independentemente de quem os pratica. Aquilo que eu gostava de saber é que medidas é que foram efectivamente tomadas para punir os agressores. Seja no caso de Famalicão, Setúbal ou outro qualquer. Alguém foi multado? Alguém cumpriu pena de prisão? Alguém foi punido de alguma forma?
Ficam as perguntas: pode ser que obtenhamos respostas. Já foste alvo de agressões físicas e/ou psicológicas durante a tua carreira?
Físicas, nem pensar. Acho que até a pessoa mais exaltada do mundo percebe que talvez não seja boa ideia partir para confronto físico com uma pessoa com o dobro do seu tamanho. Psicológicas talvez mas, honestamente, não me recordo de nenhum episódio em particular. Acho que consigo mostrar claramente às pessoas que há uma linha que não aceito que seja pisada. E a maior parte das pessoas percebe e acaba por se comportar.
A partir de janeiro de 2024, mais de 1.800 médicos internos iniciarão a sua formação médica especializada pelo quinto ano consecutivo. Apesar de 28 especialidades terem mais colocados em comparação com o ano anterior, preocupa a diminuição nas escolhas pela Medicina Interna, com apenas 104 das 248 vagas preenchidas. O Ministério da Saúde planeia analisar as razões por trás dessa menor preferência, dada a importância desta especialidade para o funcionamento dos hospitais. Isto deve-se a que motivos?
As razões são mais que óbvias e não é preciso uma "taskforce" para as descortinar. A Medicina Interna tem sido uma das especialidades mais desvalorizadas no SNS durante os últimos anos. A Medicina Interna passou de ser a especialidade que se ocupa dos diagnósticos difíceis, do tratamento dos doentes complexos e dos diagnósticos misteriosos, para a especialidade que é relegada a fazer aquilo que mais nenhuma especialidade quer fazer. A receber os doentes que mais nenhuma especialidade quer receber. Só a título de exemplo, há dez ou quinze anos, as equipas de urgência eram constituídas por médicos de várias especialidades. À medida que as condições de trabalho na urgência se foram degradando e as pessoas começaram a perceber que fazer urgência era horrível, todas as especialidades foram arranjando forma de se escapar das escalas de urgência. A única especialidade que ficou para trás e não se protegeu foi a Medicina Interna. E agora está a pagar o preço. Agora tornou-se a especialidade que ninguém quer escolher. Isto vai ter repercussões graves para o SNS. A Medicina Interna é um dos pilares dos hospitais do SNS. Sem Medicina Interna, não há SNS.
No início de novembro do ano passado, o ministro da Saúde mencionou que a escassez de médicos no SNS persistirá nos próximos dois a três anos, até que o problema seja resolvido estruturalmente. O ministro afirmou que, nos próximos anos, ainda haverá dificuldades que serão enfrentadas com o sacrifício dos profissionais de saúde, mas que o objetivo é resolver o problema de forma estrutural a longo prazo. O que julgas disto?
Honestamente, não percebo como é que o ministro da Saúde pretende resolver os problemas estruturais do SNS. Suspeito que uma das medidas envolva aumentar ainda mais o número de vagas nas faculdades de Medicina. Esse tem sido um dos grandes objectivos dos últimos Governos, no que diz respeito à saúde. Infelizmente, isso só vai agravar o problema, porque vai comprometer a qualidade formativa dos médicos, gerar ainda mais médicos que saem da faculdade e não têm vaga para ingressar no internato e completar a sua formação. Para além disso, vai criar uma pressão de selecção negativa, porque vão ser os piores, e não os melhores, que se vão sujeitar às condições de trabalho miseráveis que o Estado oferece. Aqueles que sabem a qualidade que possuem e que não aceitam trabalhar para aquecer, vão acabar por fugir para o privado, ou emigrar, quando o privado ficar saturado.
Em julho, enquanto a greve dos médicos se fazia sentir nos centros de saúde e nas urgências, o Governo estava a planear a admissão de 300 médicos cubanos para reforçar o SNS, sendo que solicitara a opinião do Conselho de Escolas Médicas Portuguesas (CEMP) e da Ordem dos Médicos sobre o processo de reconhecimento das qualificações desses profissionais. O que achaste?
Achei pouco surpreendente, atendendo à tendência que este Governo tem de identificar os problemas e arranjar a pior solução possível para os resolver. Não tenho rigorosamente nada contra médicos cubanos, apenas considero que não existe escassez de médicos em Portugal. Portugal é um dos países da União Europeia com maior número de médicos por cem mil habitantes. Existe uma péssima distribuição de médicos entre centros urbanos e o interior, existem médicos mal aproveitados, enterrados em burocracias e tarefas administrativas e existem médicos desmotivados em Portugal. Isso não se resolve com a importação de médicos cubanos. Resolve-se com a reformulação do modelo de funcionamento do SNS, de forma a cativar e estimular a produtividade dos médicos portugueses.
Por outro lado, em agosto, dizia-se que o Governo tinha intenções de contratar médicos brasileiros por 2863 euros por mês, seis euros de subsídio de refeição por dia e casa de função. Pensaste o mesmo?
Claro. O princípio é o mesmo.
Desde o início do ano, mais 122 camas encerraram num total de 342 camas desde 2021 em unidades de Cuidados Continuados, devido a dificuldades financeiras, de acordo com a Associação Nacional dos Cuidados Continuados (ANCC). O presidente da associação, José Bourdain, testemunhou perante a Comissão de Saúde, afirmando que todas as unidades fechadas nos anos anteriores também enfrentaram dificuldades financeiras. Apontou os baixos valores pagos pelo Estado em relação ao aumento das despesas das instituições como a principal causa. Bourdain mencionou o fecho de quatro unidades em 2023, sendo uma delas no Algarve, e as outras três no Norte de Portugal, destacando que o subfinanciamento levou ao encerramento dessas unidades em apenas três semanas. O que falha mais nos Cuidados Continuados?
Não me posso pronunciar com substância em relação ao funcionamento dos Cuidados Continuados, porque não é a minha área de trabalho. Mas os dados que me apresentas são preocupantes e o motivo pelos quais essas unidades encerraram parece-me óbvio. Unidades de Cuidados Continuados são bastantes dispendiosas, porque tratam pessoas idosas, com muitas comorbilidades, que necessitam de apoio no desempenho de actividades de vida diária. Por isso, se não são adequadamente financiadas pelo Governo, é mais que natural que encerrem. E essa escassez de vagas em Cuidados Continuados acaba por se repercutir no funcionamento dos hospitais e serviços de urgência, porque aumenta o número de doentes com alta clínica que não conseguem abandonar os hospitais, os chamados casos sociais. E por cada doente que se torna um caso social, há outro doente com um enfarte ou uma pneumonia, que não consegue ter vaga para ser internado.
Também gostaria de saber aquilo que pensas relativamente ao estado atual dos Cuidados Paliativos. Segundo a Rádio Renascença, "há mais de 100 mil pessoas a precisar de ajuda e só 30 por cento têm acesso". “Entre 100 mil pessoas, entre crianças, e adultos a precisar desta área de cuidados todos os anos ainda continuamos a falar de apenas 30% terem acesso, o que nos deve preocupar enquanto país, enquanto sociedade e deve alertar para uma prioridade absoluta do sistema de saúde a nível de estratégia e a nível de investimento sério, para que, de facto, possamos mudar esta esta realidade”, disse Catarina Pazes, presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos, àquele órgão de informação em outubro.
Acho que acaba por ser um problema semelhante ao dos Cuidados Continuados. Por muito bons que sejam os profissionais que integram essas equipas, ninguém consegue fazer omeletes sem ovos.
Uma realidade que abordas muito na tua conta, e que mencionaste há pouco, é a dos casos sociais. Segundo o coordenador do Plano Nacional do Envelhecimento Ativo, em declarações à Agência Lusa, mais de 500 pessoas – 580, mais precisamente – internadas nos hospitais aguardam respostas sociais e em Cuidados Continuados. O que pensas disto e o que achas que devia ser feito para combater este panorama?
Acho que são muito mais do que 580 doentes. E acho também que o flagelo dos casos sociais nos hospitais portugueses tem muitas causas, algumas já abordadas nesta entrevista, mas deve-se também muito à irresponsabilidade e desinteresse de muitas famílias. Isto é triste de se dizer, mas é a verdade, vinda de quem já viu muita coisa acontecer. Infelizmente, muitos doentes são abandonados nos hospitais por familiares que não os querem receber em casa. Isto é um problema grave, porque não tem apenas a ver com o funcionamento do sistema de saúde que temos, mas sim com a mentalidade da população. É um problema difícil de resolver. Acho que uma das medidas que devia ser adoptada para tentar minorar o problema dos casos sociais era implementar a seguinte medida: a partir do momento que um doente fosse abandonado pela família, a sua reforma passava a reverter para o Hospital, desse momento em diante e até o mesmo abandonar a instituição de saúde. Acho que era o mínimo. Não seria suficiente para compensar os custos do tratamento desse doente para o Estado, mas pelo menos seria um gesto simbólico.
Em novembro, a Inspeção Geral das Atividades em Saúde (IGAS) abriu um processo de investigação ao caso das gémeas que vivem no Brasil e que receberam um tratamento de quatro milhões de euros no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Em causa está uma reportagem transmitida, pela TVI, segundo a qual duas gémeas luso-brasileiras vieram a Portugal, em 2019, receber o medicamento Zolgensma, um dos mais caros do mundo, para a atrofia muscular espinhal. O que tens a dizer sobre esta situação e o alegado envolvimento de personalidades como Marcelo Rebelo de Sousa no caso?
A única coisa que tenho a dizer sobre esse caso é que só tenho pena de não ter amigos importantes.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) destaca a importância da literacia em saúde para a promoção do bem-estar, afirmando que "a literacia dá mais Saúde". Contudo, em alguns países, como Portugal, os níveis de literacia em saúde são extremamente baixos, estimando-se que cerca de 50% da população tenha baixa literacia nessa área. Isso significa que entre cinco a seis milhões de pessoas enfrentam dificuldades em compreender e aceder adequadamente aos recursos de saúde, resultando em tomadas de decisão menos informadas. Isto preocupa-te? O que deve ser feito?
Preocupa-me, mas mais uma vez não me surpreende. Acho que parte da responsabilidade de aumentar os níveis de literacia em saúde tem de partir de nós mesmos, profissionais de saúde. Não creio que a nossa função seja apenas tratar doentes. Acho que a capacidade de instruir os doentes sobre a sua própria saúde tem de fazer parte das competências básicas de um profissional de saúde. E creio também que, para além dos profissionais de saúde, também os meios de comunicação social deviam ter um papel mais activo no aumento da literacia em saúde da população. Já perdi a conta ao número de vezes que leio expressões como "ataque cardíaco" ou notícias do género "faleceu de paragem cardio-respiratória". Infelizmente, acho que os meios de comunicação social, no geral, são veículos importantes de transmissão de informação e têm também a responsabilidade de instruir as pessoas a quem se dirigem.
O que sugeres aos jornalistas que façam para aumentarem a sua literacia em saúde?
Acho que devem fazer um trabalho de pesquisa básico antes de publicarem notícias. Tão simples como isso.
Estás associado a algum sindicato? Independentemente disso, o que pensas do Sindicato Independente dos Médicos (SIM) e da Federação Nacional dos Médicos (FNAM)?
Talvez esteja, talvez não. Não vou responder à segunda pergunta senão estou automaticamente a responder à primeira pergunta.
Quais seriam as tuas prioridades se fosses bastonário da Ordem dos Médicos?
Acho que os problemas estruturais do SNS ultrapassam o escopo de actuação do Bastonário da Ordem dos Médicos.
E ministro da Saúde?
Se fosse ministro da Saúde, a minha prioridade seria alterar fundamentalmente o modo de funcionamento do Serviço Nacional de Saúde. Faria os possíveis para tornar as instituições do SNS locais mais estimulantes para se trabalhar. Recompensar devidamente quem efectivamente tem qualidade e faz a diferença. Estimular a formação contínua de todos os profissionais de saúde. Monitorizar com sistemas de auditoria em condições a actuação de todos os profissionais. Ao tornar o SNS um local apetecível para se trabalhar, não são só os profissionais de saúde que beneficiam. Aliás, eu diria que os principais beneficiários seriam os doentes!