“Sonho em ajudar um casal a ter um filho. Desde que tive conhecimento da existência das denominadas ‘barrigas de aluguer’, sei que nasci para ser uma delas. Tenho três filhos e se posso auxiliar alguém a ser mãe e pai, o que me impede? Só mesmo a lei. Mas, agora, tudo vai mudar e tenho a certeza de que concretizarei o meu sonho e o de, pelo menos, um casal”, começa por contar Susana (nome fictício), de 39 anos. O Conselho de Ministros aprovou um decreto-lei que regulamenta o regime jurídico aplicável à gestação de substituição, marcando o último passo para a implementação plena das chamadas ‘barrigas de aluguer’ no país. O Governo destaca que o diploma cria condições para a efetivação do regime da gestação de substituição, incluindo procedimentos administrativos de autorização prévia para a celebração do contrato e o estabelecimento de um regime de proteção na parentalidade aplicável aos beneficiários e à gestante de substituição.
Esse desenvolvimento encerra um processo que se estendeu por cinco anos. Em 2018, o Tribunal Constitucional considerou que algumas normas da lei original violavam a Constituição, pois previam que a gestante não poderia reverter a decisão de entregar o bebé. Após revisões na legislação, que incluíram um período de arrependimento para a gestante, a lei foi novamente promulgada pelo Presidente da República em novembro de 2021. Agora, o Ministério da Saúde avança com a regulamentação, permitindo a aplicação efetiva da gestação de substituição em Portugal.
Ainda em agosto, foi noticiado um acordo mal sucedido de ‘barriga de aluguer’ que se transformou num caso de polícia. Uma brasileira prometeu entregar o bebé a um casal de mulheres em troca de dinheiro e sustento. Contudo, a mãe biológica arrependeu-se e tudo começou a ser investigado como tráfico de pessoas.
As mulheres, de 34 e 38 anos, foram detidas e aguardavam a conclusão da investigação em liberdade, mas estavam sujeitas a apresentações semanais à polícia em Braga. A brasileira teve que entregar o passaporte. O casal, incapaz de engravidar, recorreu à ‘barriga de aluguer’ da brasileira. Durante a gravidez, a gestante, desempregada e enfrentando dificuldades económicas, aceitou morar com o casal em Braga, que ofereceu alojamento, alimentação e despesas relacionadas com a gravidez, além de uma pequena quantia em dinheiro.
Para evitar a identificação da mãe biológica, evitaram o acompanhamento médico pelo Sistema Nacional de Saúde. No momento do nascimento, a mãe deveria ir ao hospital sem documentos, fornecendo o nome do casal como os pais do recém-nascido.
No entanto, quando o bebé nasceu a 19 de junho, a mãe – que alega ter sido ameaçada e coagida pelo casal – decidiu ficar com a criança, rompendo o acordo. O bebé foi colocado num centro de acolhimento para menores em situação de risco pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de Braga.
“Não quero dinheiro”
“Há que esperar pelo momento certo para fazer as coisas e não violar a lei. Sei que tenho de aguardar para ser gestante e, por isso, não o farei ilegalmente, digamos assim. Honestamente, não entendo quem o faz. Só se, efetivamente, necessitar muito do dinheiro. No meu caso, não quero dinheiro algum”, diz Susana, notando que, “do fundo do coração”, deseja “dar a mão” a quem não pode ter filhos “naturalmente”. E já tem duas pessoas em vista: Joana e Paulo (nomes fictícios), de 40 e 44 anos, respetivamente, que estão em contacto permanente com ela e esperam ansiosamente por atualizações legislativas e sabem de cor e salteado os motivos pelos quais tantas pessoas recorrem a esta solução.
“Casais ou indivíduos que enfrentam problemas de fertilidade, como dificuldades na conceção ou condições médicas que impedem a gravidez, podem recorrer à barriga de aluguer como uma opção para realizar o sonho de ter filhos biológicos. É este o nosso caso. Depois, em alguns casos, a futura mãe pode ter problemas de saúde que tornam a gestação perigosa para ela ou para o bebé. A barriga de aluguer permite que outra mulher leve a gestação a termo”, refere Joana. “Por outro lado, também há os casais de homens que desejam ter filhos biológicos e podem optar pela barriga de aluguer, envolvendo uma mulher que carregará o bebé”.
“Exato, e os casais que passaram por abortos espontâneos ou recorrentes podem considerar a barriga de aluguer como uma alternativa para aumentar as probabilidades de uma gravidez bem-sucedida”, continua Paulo, notando que algumas mulheres podem ter uma incapacidade médica de levar uma gravidez a termo, mesmo que possam conceber. A barriga de aluguer permite que outra mulher realize essa parte do processo. “Algumas mulheres podem escolher a barriga de aluguer devido a preferências de carreira ou estilo de vida, optando por não passar pela gravidez para preservar a sua saúde ou manter a sua rotina de trabalho”, observa.
O casal espera por este momento há uma década. “Queremos muito ser pais e sabemos que a Susana seria a pessoa ideal para ser a gestante do nosso bebé. Tem três filhos, é tranquila, transmite-nos calma e segurança… Que mais podemos pedir?”, questionam ambos, apelando ao Governo que não dê nenhum passo atrás e continue a “evoluir positivamente naquilo que diz respeito às ‘barrigas de aluguer’ porque este é um marco importantíssimo no panorama da fertilidade em Portugal”.
A realidade noutros países
O uso de ‘barrigas de aluguer’, ou gestação de substituição, é um tópico complexo e variado em termos de regulamentação e aceitação em todo o mundo. A prática é legal em alguns países, enquanto noutros é proibida ou fortemente regulamentada. Nos Estados Unidos, por exemplo, a legalidade varia entre os estados, mas a gestação de substituição é geralmente aceite, especialmente em estados como Califórnia e Illinois. O mesmo sucede na Austrália e no México. No Canadá é permitida, mas sem pagamento adicional além das despesas relacionadas com a gravidez, tal como no Reino Unido. Na Grécia é legal e regulamentada. Na Rússia é permitida em algumas jurisdições, com regulamentação específica. Na Índia a prática é permitida, mas regulamentada pelo Governo.
Em França a prática é proibida, assim como na Alemanha, em Itália e na China. Na Tailândia, após alguns escândalos, as leis foram alteradas, e a prática é agora mais restrita. Na Ucrânia é permitida, mas sem regulamentação clara.
Mas os problemas continuam a surgir. Em setembro, as autoridades de Shenzhen, no sudeste da China, desmantelaram uma rede ilegal de ‘barrigas de aluguer’. As atividades incluíam a recolha de óvulos e a implantação de embriões. A polícia descobriu instalações dedicadas a essas práticas num prédio residencial, com salas equipadas para procedimentos cirúrgicos, laboratório e sala de cirurgia.
No segundo andar, foram encontrados aventais cirúrgicos, pacotes cirúrgicos e instrumentos como dilatadores vaginais e pinças. O terceiro andar abrigava um laboratório e uma sala de cirurgia interligados para a retirada de óvulos e transferência de embriões. O laboratório continha incubadoras e placas identificadas com nomes diferentes.
Especialistas em reprodução assistida e agentes de vigilância sanitária confirmaram que os equipamentos e medicamentos apreendidos foram utilizados em procedimentos ilegais relacionados à gestação de substituição na China.
Naquele país, além do recurso a ‘barrigas de aluguer’, o acesso de mulheres solteiras a tecnologias de reprodução assistida, incluindo o congelamento de óvulos, também é proibido.