Na passada quinta-feira, tencionava ir ver um filme num dos raros cinemas que teimam em existir no Concelho de Cascais e que ainda não passa, por hábito, filmes de qualidade duvidosa.
Chegado, com tempo, à bilheteira para ver o filme, que deveria iniciar-se às 21h, alguém, de uma loja em frente, alertou-me que esta só abria, por norma, um quarto de hora antes do início da sessão: quer isto dizer, às 20h45.
Às 21h, havia já, pelo menos, uma dúzia de pessoas esperando pela abertura da bilheteira e da sala do cinema, mas estas continuavam fechadas e sem nenhum aviso do que acontecera.
Perguntado na referida loja sobre a não abertura do cinema, o respetivo dono tentou o contacto pessoal com o encarregado do mesmo, não tendo obtido resposta.
Pelas 21h25, todos nos fomos embora, sem uma qualquer explicação sobre a razão por que, nessa noite, o cinema não abria.
Disse, então, para com os meus botões: «isto não é de um país normal!»
E, mal pensei em tão anormal incidente, recordei-me de um texto antigo que escrevi sobre um, então, inovador tema político – «a crise da Justiça» – a que, precisamente, atribuíra o título de «Uma Justiça dúctil para um país normal».
Tratou-se, com efeito, de uma contribuição para o livro, «Justiça em crise? Crises na Justiça», composto por vários depoimentos, recolhidos e coordenados por António Barreto, e editado no ano 2000: há já 23 anos.
Motivado pelo episódio do cinema, decidi-me, portanto, a relê-lo.
Fi-lo, inicialmente, com alguma curiosidade e, depois, também, com algum fastio, pois, o que nele fui lendo, me pareceu tão gasto e, simultaneamente, tão estranhamente atual.
Analisado, agora, o título então escolhido, perguntei-me se a ordem dos fatores ali consignados não estaria, porventura, errada.
Seria de facto possível, sem previamente caracterizar o que era, ou devia ser, «um país normal» encontrar uma Justiça dúctil a ele adaptada?
Tal pergunta fez-me, de imediato, recordar, também, um episódio igualmente antigo; a perplexidade que vi estampada na cara de um juiz alemão quando eu e outros colegas lhe explicávamos as nossas regras processuais e o seu sistema rígido de nulidades.
Para ele, confessou-nos, não era «normal» o conjunto de barreiras que, a cada passo, nos nossos códigos se erguiam para dificultar o regular desenvolvimento da lide processual por parte do juiz.
Lá lhe foi explicado que, depois de tantos anos de inquisição e de ditadura fascista, os portugueses desconfiavam de facto, por princípio, da atuação das autoridades – judiciais, judiciárias e todas as outras – e que, portanto, era preciso encontrar fórmulas que permitissem um controlo processual sucessivo e objetivo dos atos judiciais praticados.
Veio tal esclarecimento, não de mim, nem dos colegas portugueses, mas de um já muito versado Procurador-chefe espanhol que, dada a experiência comum dos nossos países, reconheceu e expôs, de imediato, a radical diferença cultural e institucional em que assentavam os dois sistemas judiciários: o português e o alemão.
Lembrou, ironicamente, ao magistrado alemão que – como ele, melhor do que ninguém, devia saber – confiar demasiado e cegamente na autoridade dos poderes estatais, também levava a vícios graves, que, no limite, podiam transformar-se em crimes de lesa humanidade.
Regressemos, porém, à ideia de «país normal» que parece ter, também, mais recentemente, vindo a esvanecer-se na Europa: ela implica, na verdade, uma relação confiante, mesmo que crítica, entre cidadãos e os poderes constitucionais.
Tal relação de confiança, porém, não existe – talvez nunca tenha existido – entre nós.
O que permanece é, pelo contrário, uma suspeita atávica dos cidadãos nos poderes do Estado, neles se incluindo, obviamente, o poder judicial.
A desconfiança nas instituições públicas está de tal modo arreigada na nossa cultura cívica, política e judicial que, para muitos cidadãos, todas – ou quase – as decisões tomadas por representantes de órgãos do governo central ou local são, desde logo e dada a sua origem, suspeitas.
Esta suspeição dos cidadãos em relação aos atos do poder encontra, inevitavelmente, eco na maneira como muitos magistrados olham para as iniciativas dos governantes, das autoridades e dos serviços públicos.
É o princípio da desconfiança por antecipação, aplicado, com alguma rigidez e não rara leviandade, à iniciativa processual de natureza criminal.
Um princípio que, de resto, tem, pelo menos, duas faces, que constituem, precisamente, o verso e o reverso uma da outra: uma judicial e outra política.
Também do lado dos representantes do poder político e dos agentes administrativos e económicos, que com aqueles negoceiam a realização das obras e tarefas do Estado, parecem sempre suspeitas e, sobretudo, politicamente sugestionadas e direcionadas, muitas das legalmente inevitáveis iniciativas judiciárias e judiciais de investigação criminal que procuradores e juízes desencadeiam e desenvolvem.
Hoje, tal como ontem, a desconfiança reina, domina, envenena e atrasa as tomadas de decisões, sejam elas as respeitantes ao exercício do poder político e administrativo, sejam elas, inclusive, as que respeitam às iniciativas e decisões do poder judicial.
Não por acaso, os últimos acontecimentos político-judiciários e judiciais parecem apontar, no mínimo, para uma visível carência de «normalidade», ou antes, para a sedimentação acrítica de uma já normal anormalidade no relacionamento entre as instituições públicas entre si e entre estas e as privadas.
Daí, logo, o incremento e aproveitamento, necessariamente políticos, do já velho sentimento de desconfiança que os cidadãos manifestam em relação aos órgãos de poder: órgãos do poder legislativo, executivo e judicial.
Donde, a difusão de tal sentimento social negativo sobre os poderes constitua, sem dúvida, a melhor estratégia para debilitar a democracia e promover os demagogos, cujo discurso ideológico é cada vez mais simples e, por isso, mais claro; resume-se ele à miraculosa frase feita «lutar contra a corrupção».
Discurso, esse, que, comprovadamente, rende e foi já, também, assimilado por muitos outros políticos e setores da sociedade, desorientados e desalentados pelo desprestígio que atinge os poderes públicos.
Maleabilizar, para – como então propus – tornar mais eficiente o sistema de Justiça parece, pois, agora, longe dos horizontes e pretensões imediatas de políticos e profissionais do foro: tal maior plasticidade nas respostas do sistema judiciário só pode ocorrer numa sociedade «normal», que tenha confiança nos seus poderes públicos.
A normalidade, que seria de esperar na maneira como os cidadãos olham, em democracia, para os poderes públicos não existe entre nós; nem sei se alguma vez existiu.
Por isso, ninguém quer, de boa mente, assumir a responsabilidade de uma reflexão rigorosa sobre este tema e identificar – à margem do discurso mediático e populista – os problemas mais profundos que afetam realmente a Justiça, para aprovar, depois, em conformidade e sem demagogia, soluções que a tornem mais acessível e eficiente.
Relendo, porém, o texto que escrevi, decidi repescar algumas ideias que, então, ali exprimi e que me parece deverem ser, ainda assim, de novo questionadas, pois podem abrir algumas pistas úteis para a compreensão e solução dos problemas da Justiça.
Escrevi eu, então, sobre a cultura dominante no seio da magistratura e a forma de como ela se sedimentou e foi, deliberadamente, reproduzida ao longo dos tempos:
«É numa herdada e autorreprodutiva cultura de assepsia, de irresponsabilidade político-social, e de estrito positivismo jurídico que aquele cidadão comum e auditor no CEJ é formado e que o futuro magistrado tem hipótese de progredir na carreira.
Não deixaria de ser curioso, aliás, estudar em que medida o próprio projeto político inicial do CEJ, contribuiu, estrategicamente, para esse tipo de “normalização”.»
E lembremos – especialmente para os que, pouco ou nada percebendo da questão, enchem, todavia, a boca com o discurso simplista do quem controla quem – que o Centro de Estudos Judiciários (CEJ) é a única instituição da Justiça sobre o qual o poder executivo tem, ainda, responsabilidade e influência direta.
Muito mais importante do que discutir sempre a composição dos conselhos superiores das magistraturas portuguesas e os seus poderes, hoje, em geral aceites como equilibrados e correspondendo a exigências do Direito Europeu, tal como definido pelo Tribunal de Justiça da UE e valorizado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, do Conselho da Europa, é, pois, preciso voltar a revisitar, com espírito crítico, o modelo de formação dos magistrados portugueses.
Talvez aí – na formação não especificamente jurídica dos magistrados de hoje – se encontre, porventura, o cerne de muitos dos problemas que afetam a nossa Justiça.
Disse, ainda, no referido texto, a propósito da configuração organizacional do MP no plano do exercício da ação penal e criticando, já então, o modelo instituído dos DIAPs:
«Por via de uma errada especialização funcional por fases processuais [os procuradores] perderam, por vezes, o verdadeiro sentido final da sua função. Tudo, afinal, traduzindo-se numa perigosa diluição de responsabilidade, agravada, de resto, por um exercício hierárquico legal e processualmente pouco transparente.»
Numa outra e não menos importante dimensão – a relação entre Política e Justiça – dizia, com rara atualidade ainda, Vito Caferra, magistrado italiano e um dos autores que citei no meu texto:
«… a intervenção do judiciário não resolve duradouramente as patologias do sistema, o motor e a garantia do “viver justo” são alheios à sala de audiência».
Este importante ensinamento deveria estar sempre presente na cabeça dos estagiários e magistrados portugueses, para, quando lidarem com processos social e politicamente fraturantes, não serem manipulados, ou caírem na esparrela de eles próprios julgarem que, por via de tais processos, podem condicionar, de algum modo, o sentido da vida política de um país.
À Justiça apenas incumbe ajuizar da responsabilidade pessoal dos cidadãos imputados por crimes prévia e claramente definidos na lei.
Não lhe compete julgar a política, os políticos (enquanto tal), as suas políticas e os resultados políticos delas: tais julgamentos pertencem aos cidadãos e são exercidos nas eleições.
Se os magistrados o tentarem fazer, terão de ter a consciência de que as mudanças radicais que julgam poder vir a desenvolver na sociedade ocorrerão, afinal e no pior sentido, no seio do sempre mais frágil sistema de poder judicial.
Tais mudanças terão, quase certo, o efeito de lhe tolher a autonomia de iniciativa processual, reduzindo, assim, o âmbito de incidência da sua independência decisória e, deste modo, dificultando, ainda mais, a concretização do princípio constitucional de que todos são iguais perante a lei.
O sentido da política que o país adotará resultará sempre, afinal, da combinação e confronto de forças políticas e sociais e dos caminhos que a sociedade decidir tomar e não de qualquer – bem ou mal sucedida – iniciativa processual.
Realizar o Estado de Direito, sim: é essa a função «política» das magistraturas e ponto.
Por tal razão, concluí então, nesse meu texto, referindo-me à sobrevivência e saúde do Estado de Direito em Portugal: «talvez assim […], sem recurso a sempre deslegitimadoras revisões constitucionais, mas modernizando razoável e coerentemente o funcionamento a Justiça que temos, se evite que a derrocada do muro de Berlim venha a soterrar, de uma vez, não uma, mas duas utopias.»
Estávamos, então, no ano 2000 e este meu texto e os receios que ele então expressava, parecem-me, ainda hoje, justos e atuais.
É pena.