Em Portugal, a regra é as regras não serem acatadas, mas toleradas. Não são um pressuposto orientador dos comportamentos individuais e comunitários, porque o modelo de funcionamento da sociedade não é fiável, previsível e coerente com o que foi sonhado em Abril e construído até hoje. Tenho para mim que boa parte disto tudo, para além dos interesses instalados ou de circunstância, se pode atribuir a um deficiente equilíbrio entre direitos e deveres, reais ou percecionados, sendo inacreditável o nível de exigência cívica que colocamos individual e coletivamente na gestão do bem comum.
Este conjunto de disfunções é mãe e o pai do pilares do desenrascanço nacional, entre o chico-espertismo e a sobrevivência face às realidades. Essa fuga em relação à norma, à orientação ou ao funcionamento dito normal, tem diversas expressões estruturais, quotidianas, de maior ou menor monta, em função do que está em causa em termos do simbolismo, da relevância para a vida em comunidade ou dos custos. Não vou teorizar sobre a cunha, o jeitinho ou qualquer outro atalho instalado na sociedade portuguesa para gerar uma situação benéfica para um interesse parcial, mas não posso deixar que nos queiram fazer a todos de parvos com um caso que não é um caso, mas uma expressão de disfunção do funcionamento das instituições. É o caso das gémeas, tratadas pelo SNS, depois da intervenção do Presidente da República e da agilização de respostas pelo Governo, com a celeridade e a mobilização de recursos que não estão ao alcance do comum dos mortais, enleado na falta de médico de família, nos serviços encerrados por falta de profissionais e na miríade de burocracia que retardam o acesso aos adequados cuidados de saúde. É preciso ter presente a orientação subjacente e enunciada por um membro do governo aquando do processo de indemnização de Alexandra Reis: o Presidente não pode ser irritado, deve ser afagado, porque é um aliado fundamental do Governo. Foi assim na TAP, como nas diversas áreas, sobretudo naquelas mais polémicas. Era preciso afagar o Presidente para que continuasse em sintonia política com o Governo. O caso das gémeas é um evidente caso de afago do Presidente, nascido na centralidade de influência da descendência instalada no Brasil e nas confissões iniciais da progenitora das crianças. Foi assim que alguns protagonistas políticos mantiveram-se em funções apesar de todas as circunstâncias, até ao posterior choque frontal em relação ao ministro das infraestruturas a propósito da TAP.
Por diversas razões, as maiores das quais são a falta de vontade política para transformar e a ausência de capacidade de construção de compromissos sustentados em relação a temas centrais para o cumprimento escrupuloso e eficazes das funções do Estado, as condições de vida e a geração de oportunidades para a realização individual, boa parte do acesso a bens essenciais e dos serviços públicos são um desastre para qualquer crivo de exigência acima da indigente gratidão pela existência ou pela concessão em modo de benesse.
O Presidente sabia que qualquer reencaminhamento da Casa Civil para o Governo era similar a uma ordem, bem diferente de qualquer reclamação ou queixa que um cidadão apresente em relação a uma disfunção no acesso ou no funcionamento de serviços essenciais, sempre projetada para as calendas.
O Presidente sabia do poder da sua influência, exercido discretamente em privado, em temas de Estado e em questões onde deveria estar quieto e calado a deixar o mercado funcionar.
O Governo sabia da doutrina do afago, não disponível para o comum dos contribuintes.
Num tempo de irregular funcionamento dos serviços públicos, que já contaminaram negativamente o funcionamento do setor e das respostas do privado, não é possível haver nenhuma tolerância com este estado de coisas.
O país não pode permitir que se perpetuem este tipo de situações, nos quotidianos em que se procuram contornar as regras mais básicas, nos grandes projetos em que mobilizam esquemas para contornar burocracias e burocratas sem sentido e na urgência de ajustamento o tempo da resposta ao das necessidades, sob pena de colocar em causa o regime democrático e a vivência em comunidade.
Não podemos aceitar que este seja o modelo de sociedade que nos têm para oferecer, porque esse é meio caminho andado para não valorizar o que de positivo foi feito em cinquenta anos de democracia, não corrigir as disfunções, injustiças e poucas vergonhas existentes e continuar a não gerar esperança de realização na diversas gerações, em especial, nas mais jovens, conscientes que são de outros modelos de organização social.
Em tempo de escolhas, era bom que se discutisse e colocasse um ponto final neste modelo e modo de organizar e viver, individualmente e em sociedade. Será pedir demais?
NOTAS FINAIS
SENSO NAS ILHAS DE BRUMA. Depois de semanas a teorizar sobre o imperativo da apresentação de um segundo orçamento regional, depois de um eventual chumbo por implosão interna da solução de apoio político de governo que existia, o PSD rendeu-se ao voltar a dar a voz ao povo em eleições, com esperança na força da vitimização perante as culpas próprias. Há muito que não se via um tamanho flik-flak nas convicções.
CLIMÍNIMOS. É estranho não ver protestos consequentes dessas forças esclarecidas de ocupas mimados junto das embaixadas de países que não contribuem positivamente para a COP28. Preferem as cócegas e a destruição de património.