Um dos escândalos mais controversos da democracia francesa

Um dos escândalos mais controversos da democracia francesa


A nova série da Netflix, O Caso Bettencourt: Escândalo Com a Mulher Mais Rica do Mundo, destaca a controversa vida de Liliane Bettencourt, que foi uma das mulheres mais poderosas e influentes da França. Em pouco tempo, tornou-se a série mais vista da plataforma de streaming.


Todos nós temos segredos, uns mais graves, outros totalmente inofensivos. Sejamos nós um cidadão comum, uma estrela de rock, um político, um grande empresário, todos nós temos segredos e, cada um, arranjará a sua forma de escondê-los, mantê-los no silêncio. Quando falamos de pessoas influentes, é natural que existam dois caminhos de pensamento possíveis: é muito complicado conseguir mantê-los na escuridão já que o mundo está atento, ou, por outro lado, os meios disponíveis (graças ao dinheiro), permitem que se guardem a sete chaves. A história já provou que o caminho mais natural é o primeiro.

Este é um dos escândalos mais controversos da democracia francesa dos últimos anos. E, ao contrário daquilo que normalmente acontece, desta vez, no centro da polémica esteve uma mulher: Liliane Bettencourt, herdeira de Eugène Schueller, fundador do grupo L’Oréal. Em 2016, a revista Forbes chegou a classificá-la como a 11ª pessoa mais rica do mundo. 

No dia 8 de novembro, a Netflix lançou a série documental O Caso Bettencourt: Escândalo Com a Mulher Mais Rica do Mundo que, em três episódios, retrata o caso que ocorreu entre 2007 e 2013 e que envolve a progenitora, Liliane, herdeira da L’Oréal, que faleceu em 2017; a sua filha, Françoise, que é atualmente, a mulher mais rica do mundo (com uma fortuna avaliada em cerca de 75 mil milhões de euros), e ainda o fotógrafo de celebridades, François-Marie Banier. Françoise Bettencourt registou uma queixa contra o fotógrafo por abusar da suposta “fragilidade psicológica” da sua mãe para lhe extorquir presentes – desde pinturas, viagens, seguros de saúde, dinheiro em mão e há quem fale mesmo de uma ilha – que, ao todo, somavam quase mil milhões de euros. Em poucos dias, a série tornou-se a mais assistida da plataforma de streaming. 

Liliane conheceu Banier em 1987, durante uma sessão de fotografia para a revista de luxo Egoíste. Estava habituada a receber muita gente em sua casa, mas desta vez foi diferente. Pouco depois, os dois iniciaram uma relação de amizade bastante extravagante, apesar do homem ser rude. O fotógrafo era 25 anos mais novo – à época ela tinha 65 anos, ele 40 – e, segundo algumas fontes, era abertamente homossexual. Por isso, muitos questionavam o que motivava a herdeira do império L’Oréal a oferecer tantos presentes extravagantes ao amigo. 

Sabe-se que Liliane era uma pessoa bastante solitária e vivia um casamento infeliz com André Bettencourt. Casou aos 28 anos, em 1950. O seu marido, que lhe “emprestou” o nome, ocupou cargos na política, sendo deputado, senador e ministro em quatro governos diferentes. Muito do que hoje se sabe sobre a matriarca, na verdade, veio a partir do escândalo deflagrado pela queixa da filha. A produção da Netflix ouviu diversas fontes, entre amigos e jornalistas, que tratam a empresária como uma figura presente nas rodas da alta sociedade francesa, no entanto, extremamente reservada sobre sua vida pessoal. 

O marido morreu em 2007, pouco tempo antes do início do conflito familiar. Atualmente sabe-se que ambos não eram próximos e, durante as últimas décadas, dormiam em quartos separados e tinham vidas distintas. Segundo o documentário, foi François (o fotógrafo) que a auxiliou a sair dessa “nuvem negra”. 

Os dois amigos passaram então a viajar juntos e a divertirem-se, tudo às custas da dona da L’Oréal. A morte do marido acabou por fazer com que a empresária ficasse paranoica e se quisesse informar sobre as pessoas que a poderiam trair. A situação agravou-se o que fez com que a sua contabilista, Claire Thibout, e o mordomo de longa data, Pascal Bonnefoy, contassem a Françoise sobre os presentes que esta ofereceu a Banier entre 1997 e 2007. Claro que a filha já desconfiava da proximidade de ambos. Quais seriam realmente as intenções reais do artista? 

Pelas ordens da herdeira, Pascal Bonnefoy começou a gravar as várias reuniões da matriarca com várias pessoas e foi possível ficar a conhecer movimentações de dinheiro que evitavam o pagamento de impostos ao fisco francês. O escândalo judicial abriu, por isso, a porta para outros tumultos envolvendo a herança da empresária. Os áudios gravados por Bonnefoy geraram outros problemas para a classe política francesa: o caso gerou uma suspeita de corrupção que recaiu principalmente contra o então Ministro do Orçamento, Éric Woerth, e o próprio presidente Nicolas Sarkozy. Os diálogos gravados mostravam que Liliane Bettencourt teria passado milhões em dinheiro aos políticos para financiar campanhas. Além disso, outras gravações denunciaram ao fisco francês que a dona da L’Oréal ocultava a posse de uma ilha e uma fortuna guardada na Suíça. O caso ficou conhecido como o Watergate francês. No entanto, Sarkozy, Woerth e Liliane negaram sempre todas as acusações. No final do processo, em 2013, os políticos foram declarados inocentes pela justiça francesa, que disse não ter encontrado provas de que os pagamentos de fato ocorreram. 

Mais tarde, confrontada em tribunal, Liliane apresentou sinais da doença de Alzheimer. 

Em 2007, Banier propôs mesmo que Liliane o adotasse. Esse teria sido o gatilho para que a filha da empresária decidisse denunciar o fotógrafo à revelia da vontade da mãe. Apesar de o plano não ter seguido, sabe-se que a empresária chegou a fazer um testamento em que o elegia seu único herdeiro, um documento que foi posteriormente revogado. Além disso, os depoimentos da série, dão conta que a influência de Banier sobre Liliane Bettencourt ia avançando conforme esta ficava mais velha e com mais problemas de saúde. “A cronologia dos presentes dados por Liliane a Banier é impressionante. Especialmente a partir de setembro de 2006, quando a saúde da Liliane começou a piorar”, afirmou a jornalista especializada no sistema judiciário francês Corinne Audoin, que teve acesso ao processo contra o fotógrafo e concedeu entrevista à Netflix. Ao longo dos anos de luta judicial, uma avaliação psicológica acabou por concluir que Liliane Bettencourt era incapaz de gerir o seu património. “Detetamos problemas de comunicação, de compreensão e de audição”, afirma o psicólogo Bruno Danizeu, que conduziu o exame, à série documental.

Banier foi condenado por abuso financeiro de Bettencourt a três anos de prisão. Porém, recorreu e evitou pagar quaisquer danos à família Bettencourt, que ascendiam aos 158 milhões de euros. O tribunal superior manteve a condenação de que o artista beneficiou de forma criminosa da saúde mental de Liliane. No entanto, hoje, é um homem livre e continua a trabalhar em Paris. Atualmente com 76 anos, continua a expor os seus trabalhos de fotografia. 

Já o mordomo foi acusado de fazer as gravações ilegalmente. No entanto, em 2017, o tribunal acabou por absolvê-lo.  

Em 2010, cinco anos antes da condenação do fotógrafo, Liliane e Françoise acabaram por fechar um acordo e houve retirada mútua de processos que moviam uma contra a outra. A matriarca aceitou a tutela passando a ter toda a vida e finanças geridas diretamente pela filha, pelo genro Jean-Pierre Meyers e pelos netos Jean-Victor Meyers e Nicolas Meyers. A empresária acabou mesmo por ser diagnosticada com Alzheimer e demência senil.

Atualmente, Françoise, de 70 anos, possui cerca de 33% das ações da L’Oréal.