Marcelo Rebelo de Sousa é tudo menos convencional. É o que sempre foi, em inteligência, hiperatividade e traquinice, apesar das funções institucionais e de um certo nível de recato que se impunha para não ser tomado pelas circunstâncias, quando elas são congeminadas ou acontecem, mais ou menos de supetão.
O Presidente herdou do anterior uma solução governativa liderada por quem não ganhou as eleições legislativas, mas amanhou uma maioria de governo assente num compromisso. Quando esse compromisso foi quebrado pela esquerda à esquerda do PS, pelo chumbo de um orçamento de Estado. Marcelo dissolveu o Parlamento e devolveu a palavra ao povo.
O povo falou, pelo voto, e conferiu uma maioria absoluta ao Partido Socialista, o que não impediu o Presidente da República de estabelecer pressupostos para a governação, ao consagrar a personalização de uma eleição assente na eleição de mandatos de deputados. Em poucos anos, quem ganha não governa, porque mandam os deputados, e quem governa só pode ser o candidato a primeiro-ministro do mais votado, porque não mandam os deputados.
Apesar de condições de estabilidade únicas e de recursos financeiros relevantes, a governação à vista, sem senso, ética e exigência no desempenho de funções, conduziu à emergência de um processo judicial envolvendo o primeiro-ministro e a sua envolvente, gerada ou tolerada. Verificada a cessação do pressuposto da governação, Marcelo ouviu os partidos e o Conselho de Estado, tendo devolvido a palavra ao povo para 10 de março de 2024, com prévio impulso de estabilidade pela aprovação do Orçamento de Estado para 2024, dada a existência de uma maioria parlamentar.
Chegados aqui, entre as guerras de alecrim e manjerona entre São Bento e Belém, a escolha de uma nova liderança para o PS e as crónicas disfunções da sociedade portuguesa, importa dedicar um pouco de atenção ao que se passa na região autónoma dos Açores. É que, aplicando todos os critérios doutrinados e plasmados na ação política dos últimos anos, a haver chumbo do orçamento regional dos Açores, por implosão da maioria política de suporte da solução de governo, o Presidente da República só pode devolver a palavra ao povo, também nos Açores.
Nos Açores, não governa quem ganhou as eleições, mas um governo do PSD/CDS-PP/PPM, inicialmente apoiado no Parlamento Regional pelo Chega e pela Iniciativa liberal.
Nos Açores, quem ganhou nem teve oportunidade de apresentar um governo no parlamento, porque o Presidente da República e o seu representante na região resolveram queimar etapas e validar uma solução assente num compromisso político de estabilidade.
O pressuposto da governação dos Açores deixou de existir em março deste ano, com a rutura da solução política por um deputado do Chega e pelo representante da Iniciativa Liberal, colocando em causa a aprovação do orçamento regional que está em debate esta semana. Oito meses depois do fim do compromisso de suporte ao Governo, sem uma palavrinha do Presidente da República ou do representante da República, é chegada a prova dos nove.
Havia uma maioria parlamentar que, tudo indica, já não existe. Reprovado o orçamento regional, estamos na órbita da crise de 2021 e da atualidade na República, por ausência dos pressupostos, com agravantes.
Nos Açores, não há maioria para aprovar o orçamento para 2024, como acontecerá na República. A conjuntura política geral não possibilita nenhuma alteração das circunstâncias que pudessem conduzir à aprovação de um segundo orçamento, porque quer o Chega, quer a Iniciativa liberal, parceiros iniciais do PSD e da agremiação de governo, têm todo interesse político em ir a votos, com uma perspetiva de crescimento da representação eleitoral na região.
A atual solução de governo nos Açores implodiu por dentro, não tem reparação à vista, resta ao Presidente da República seguir o padrão, dissolver um parlamento pela terceira vez e voltar a dar a palavra ao povo, quanto antes. Não o fazer, significaria que Marcelo em vez de ficar com o rótulo de Presidente dissolvente, ficaria com a marca de insolvente, por ter um critério de geometria variável perante realidades similares: a ausência dos pressupostos das soluções governativas.
Nos Açores, chumbado o orçamento, é necessário devolver a palavra ao povo.
NOTAS FINAIS
TVDE, ATÉ QUE ENFIM. É triste que a incomensurável capacidade para ignorar os sinais e as dinâmicas, só seja quebrada quando os alarmes sociais de reportagens mediáticas tornam insustentáveis as disfunções do funcionamento da sociedade. Era suposto ser para isso que existem as instituições, os decisores e os fiscalizadores, mas não. É sempre a toque de caixa.
O TRIUNFO DA CIRCUNSTÂNCIA DA MEMÓRIA SELETIVA. As legítimas manifestações face aos acontecimentos no Médio Oriente, enfunadas por movimentos e partidos que esquecem seletivamente que muitos dos regimes e organizações que estão a defender não permitem essa expressão de liberdade, não toleram direitos humanos básicos e perseguem conquistas do mundo civilizado, na liberdade religiosa, na igualdade de género, entre outros.
O PS E O TRIUNFO DOS TEMPEROS. Na política dos fins, todos os temperos têm potencial para ser mobilizados para a confeção dos pratos pretendidos. É por isso, normal a carga de especiarias a que alguns precisam de recorrer para demonstrar a harmonia, a moderação ou a acutilância de que a matéria-prima base não dispõe. Tudo pelo poder, do chá preto à camomila.
LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DE MANIFESTAÇÃO NÃO É O MESMO QUE BANDALHEIRA. Acariciados por setores da sociedade, dos media e de partidos, há quem, em defesa do clima, destrua património público e lance a desordem no funcionamento das instituições, sem um pingo de respeito pelas esferas de liberdade dos outros e capacidade para ser consequente junto de quem efetivamente pode alterar o quadro de alterações climáticas. Que tal manifestações junto das embaixadas de quem mais polui e dos partidos que apoiam esses regimes?