Os factos político-judiciários, recentemente ocorridos no nosso país, corporizaram, aparentemente, uma nova crise nas relações entre um órgão da Justiça – o MP – e o poder político.
Muitos dos relatos mediáticos dessa crise, mais ou menos criativos, mais ou menos empenhados politicamente, procuram desvendar nela os sinais de uma qualquer urdidura; uma cabala concebida e planeada em algum centro de decisão do MP e mesmo fora dele, mas através dele.
De um lado, encontrar-se-ia, portanto, um grupo de procuradores mais ou menos interessado politicamente – não se sabe porquê, nem a soldo de quem – em confrontar e, se possível, derrubar um dos órgãos de soberania da República.
Do outro, mais uma vítima institucional da atuação antidemocrática, ilegítima, infundada e usurpadora do MP.
Durante muitos anos, a leitura política que alguns faziam de qualquer atuação do MP que beliscasse os representantes do poder político, logo procurava identificar o grosso dos membros desta magistratura com um bando de subversivos esquerdistas: era o tempo das «forças de bloqueio» e das conspirações corporativas.
Agora, os mesmos intérpretes mediáticos da vida político-judiciária nacional, parecendo já ridículo falar dos «petits procureurs rouges», alertam-nos, ainda mais aterrorizados, para a crescente influência que a direita radical ganhou, entretanto, no seio da Justiça.
Procuram, deste modo, os verdadeiros e indizíveis fundamentos políticos que seguramente terão levado, hoje, o MP a tomar a iniciativa de abrir inquéritos criminais em face de denúncias de irregularidades graves – algumas, porventura, de natureza criminal – que afetam o funcionamento das instituições políticas.
Não lhes passa sequer pela cabeça que a maioria dos procuradores esteja hoje – como muitos, talvez a maioria, cidadãos – absolutamente desmotivada da política e viva, e continue a trabalhar, alheia a qualquer consideração de tal ordem.
O perigo reside, pois, no olhar que muitos cidadãos – neles se incluindo muitos magistrados – têm da atividade política e dos políticos.
Este, aliás, o verdadeiro perigo, até por permitir, aí sim, todo o tipo de manipulações.
O foco das notícias sobre a crise incide, contudo, quase sempre e como de costume, nas alegadas intervenções facciosas, nos assumidos fins políticos de tais intervenções judiciárias e no desvendar – talvez palpitar seja mais correto – de quem, por trás delas, as suscita e mexe os seus cordelinhos.
Raramente, portanto, os jornalistas e comentadores conseguem perceber e dissertar, fora daqueles cânones, sobre o significado real das mais incisivas ou incautas iniciativas judiciárias, mesmo quando a obrigação de o MP a elas proceder está plasmada na lei de uma maneira clara e objetiva, não permitindo margens muito largas para questionamentos ou hesitações.
Por tal razão – porque o que é claro e objetivo, não se mostra politicamente interessante – nasceu, inclusive, uma nova especialidade de decifração semiótica, destinada a conseguir interpretar a oportunidade e os sinais políticos, mais ou menos óbvios, dos despachos judiciários e, sobretudo, o significado profundo e oculto dos comunicados da PGR.
Durante uma noite inteira, é assim possível a um espectador ir vendo e ouvindo nas TVS, exércitos de especialistas em tal decifração, que coincidem, quase sempre, em realçar a estranheza e oportunidade da abertura dos inquéritos e de proceder às consequentes diligências de investigação e na divulgação de tais comunicados pelos órgãos do MP, até por que não conhecem, ou esqueceram já, a lei e as obrigações que esta estipula.
Embrenhando-se em explicações e dissertações quase cabalísticas, pegam num qualquer parágrafo – por mais pequeno, insignificante e objetivo que seja – e roem-no até mais nada poderem extrair dele, como se, verdadeiramente, dele tivessem extraído já alguma coisa.
O afã e o gosto visível que retiram de tais dissecações é de tal ordem, que se esquecem mesmo que, por de trás dessas preciosidades interpretativas e dos objetos sobre os quais elas incidiram, estão evidentes problemas jurídicos, que importaria ao país – portanto, também, ao poder político – resolver para melhorar eficácia das intervenções da Justiça e o normal funcionamento das instituições democráticas.
Na realidade, porém, não é naqueles detalhes conspirativos que a atenção dos cidadãos se prende: a importância de tais detalhes apenas existe na aproximação exotérica à realidade que os media e muitos dos seus profissionais praticam hoje-em-dia.
As notícias – repetidas até à náusea, de trás para a frente e da frente para trás – raramente abordam, todavia, as circunstâncias críticas, de ordem vária, em que a iniciativa e os despachos judiciários dos procuradores são tomados.
Tais circunstâncias são demasiado técnicas e, portanto, enfadonhas para comentar no prime time das TVs.
Quando me refiro a elas, quero significar distintas problemáticas.
Desde logo, a compreensão, incompreensão e assunção pelos magistrados sobre a necessária – mesmo que cautelosa – solidariedade institucional que deve existir no relacionamento entre as magistraturas, e mormente a do MP, com os órgãos de soberania de natureza política.
No que ao MP respeita, convém, aliás, recordar que não foi, certamente, por acaso que a Constituição determinou que o PGR devia ser nomeado pelo Presidente da República, sob proposta do Primeiro-Ministro.
Além de que, quem está à cabeça desta magistratura não tem necessariamente de ser magistrado, nem sequer jurista.
Esta opção revela bem a natureza de tal cargo.
Em última análise, ele deve funcionar como possível e último fusível nas relações entre o MP e os outros órgãos constitucionais de natureza política.
Tal opção constitucional é muito relevante para perceber, portanto, o tipo de relações e de responsabilidades que, por via das caraterísticas de tal nomeação, se pretende estabelecer entre o MP, como órgão judiciário promotor de Justiça, e inserido constitucionalmente nos tribunais, e os órgãos de soberania de pendor político.
É neste contexto que importa, aliás, analisar, também, o relacionamento funcional entre o PGR e os procuradores, que, estatutariamente, só podem agir nos processos com objetividade, isenção e subordinados ao princípio da legalidade – obrigatoriedade – no exercício da ação penal.
É, ainda, neste contexto que toda a problemática da organização e intervenção hierárquica no seio do MP tem de ser reexaminada.
Mais ainda, é neste contexto que é importante analisar o princípio da responsabilidade que, nos termos da Constituição e do Estatuto, enforma a condição funcional dos procuradores.
Daí, também e não menos importante, seja o problema da transparência: permitir às partes e, em determinadas fases processuais, aos cidadãos, saber quem, em cada momento, tomou no processo decisões judiciárias que, de uma maneira ou de outra, podem afetar direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e, de algum modo, ditar, por fim, o destino dos autos.
Sem transparência na evidência de quem, afinal, decidiu, ou não, as iniciativas processuais do MP, falece, exatamente, a possibilidade de responsabilizar quem, em concreto, atuou de determinado modo, ou quem se absteve de atuar: falece a possibilidade de responsabilizar o autor de um ato judiciário ou quem o omitiu.
De acordo com a lei, os procuradores devem, como disse, intervir no processo com objetividade e isenção, investigando e apurando a verdade, seja ela favorável a uma acusação ou a um arquivamento do processo.
Torna-se, pois, fundamental que, no Código de Processo Penal, as intervenções hierárquicas que incidam direta ou indiretamente no destino dos autos sejam reguladas de modo simples, transparente e clara, permitindo efetivamente tornar claro e responsabilizar quem, na verdade, as tomou.
Regressemos, porém, à questão do relacionamento entre o PGR e os órgãos do poder político que o nomearam, no pressuposto lógico de que naquele conflui todo o conhecimento e responsabilidade do que sucede com a ação do MP.
Atentemos, por isso, na importância do conhecimento pelo PGR – e, assim, a sua possibilidade de intervenção hierárquica direta ou indireta, mas sempre responsável e transparente – dos processos que, pelo menos, respeitam a situações graves que contendem com o normal funcionamento das instituições democráticas.
Tal conhecimento só pode destinar-se a justificar uma sua intervenção, quando necessária.
É, ainda, por tal razão e por tal tipo de intervenções judiciárias em processos de repercussão pública e política poderem, inadvertidamente, criar um curto circuito – como se verificou poder acontecer – no funcionamento da governação do país, que importa revisitar o exercício dos canais hierárquicos do MP, a sua razão de ser, os seus reais poderes e, ainda, os seus necessários, mas rigorosos limites.
Uma vez que a recente reforma do Estatuto do MP não foi acompanhada, imediatamente, de um segundo, mas imprescindível, passo – a reforma do CPP – somos, agora, confrontados com um hiato no sistema legal que a todos deixa perplexos e que exige, portanto, uma urgente iniciativa legislativa complementar.
Ora, a verdade é que, mesmo precipitada por uma pura intervenção judiciária – mais ou menos oportuna, mais ou menos correta e mais ou menos inadvertida – o que assistimos foi, de facto, a uma crise de natureza política que se desenvolveu e aprofundou, entre órgãos de natureza política e com fundamentos e responsabilidades puramente políticas.
A primeira das crises é, manifestamente, de natureza política e – mesmo com recurso a explicações, mais ou menos, fantasiosas – desenvolveu-se, unicamente, no contexto do relacionamento entre órgãos de soberania de natureza política e das suas responsabilidades constitucionais.
A segunda – mesmo que aproveitada por alguns políticos com responsabilidades, por forma a enjeitar responsabilidades legislativas na origem das crises que afetaram o sistema judicial e político – é, puramente, de natureza judiciária.
Ela situa-se e justifica-se no desajustado funcionamento do MP e no plano da assunção e clarificação das responsabilidades processuais que faltam, hoje, à sua hierarquia.
Num outro plano, esta ultima crise resultou, ainda, mesmo que indiretamente, de uma cultura securitária, que se vem sedimentando em algumas áreas do MP e que, em alguns casos, desconsidera a sua função de defensor da legalidade democrática e de proteção dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Uma cultura que não identifica o MP com as elevadas responsabilidades constitucionais próprias de uma magistratura, antes nivelando algumas das suas intervenções com o estilo operacional dos órgãos que têm de assegurar funções executivas na área da segurança.
Assim, devemos sumariar o sucedido da seguinte forma: a crise política teve razões puramente políticas e cabe, por inteiro, aos responsáveis políticos que nela intervieram e só a eles pode responsabilizar.
A crise judiciária, que já precedia aquela, mas que ajudou a desencadeá-la, resulta da continuada dificuldade política do MP em conseguir comunicar e sensibilizar o legislador para os riscos de não retificar, em tempo útil, uma incompletude legislativa há muito evidenciada e, bem assim, alertá-lo para as consequências graves que dela poderiam resultar.