Um, dois, três: Quantos MP existem e queremos que existam?


A reforma do Estatuto do MP só teria tido sentido se, simultaneamente, se revisse e alargasse, no Código de Processo Penal, o tipo de intervenções processuais que sua a hierarquia poderia e deveria exercer.


Hoje, desculpem, o meu texto é mais longo, mas sinto ser necessário clarificar alguns pontos «escaldantes» sobre o funcionamento da Justiça e o papel que nela, de facto, tem o Ministério Público (MP).

A propósito dos processos de que todos falam, a grande maioria dos opinion maker refere-se sempre à iniciativa e intervenção dos procuradores que os dirigem, ou nele intervêm, usando a fórmula abstrata e tradicional de: o Ministério Público (MP).

A utilização de tal fórmula teria tido algum sentido, antes, da última reforma do Estatuto do MP (EMP).

O novo EMP veio, com efeito, algo inopinadamente, restringir, grandemente, a possibilidade das intervenções processuais da hierarquia às que, se encontravam definidas já, no Código de Processo Penal (CPP) vigente.

Tal reforma do EMP, por ora, desacompanhada de uma renovada, mais alargada e detalhada definição das intervenções hierárquicas estabelecidas naquele outro diploma, acabou, assim, por limitar, drasticamente, a já de si reduzida margem de intervenção superior, que existia fundada, apenas, em normas estatutárias e regulamentares internas.

Numa única situação, passou, pois, a hierarquia a poder intervir na tramitação e destino final dos do inquérito: em caso de arquivamento determinado por um procurador titular do processo de grau inferior.

A reforma atual do EMP só faria, porém, todo o sentido se, simultaneamente, se tivesse revisto e alargado, no CCP, o tipo de intervenções processuais que a hierarquia do MP poderia e deveria exercer, de modo transparente e responsabilizante, no decurso da fase de inquérito, de cuja direção a lei incumbe o MP.

Tal reforma do EMP, desacompanhada, pois, do passo seguinte criou, não um novo MP, mas muitos, mesmo muitos MP: pelo menos tantos quantos os titulares dos inquéritos. 

Só por comodidade, se pode hoje, portanto, falar da intervenção processual do MP; como se ele ainda fosse um corpo hierarquicamente solidamente organizado de procuradores.

Daí, a sem razão de identificar o MP no seu todo com qualquer estratégia autónoma de afrontamento institucional.

O MP nunca foi pensado e constituído como um corpo de procuradores, tendo, como programa e estratégia definida superiormente, o confronto com os outros órgãos da República e seus representantes; a dita «classe política».

Pelo contrário, nele se reflete o concurso de uma legitimidade política por via do processo de nomeação do PGR pelo Presidente da República, com uma dimensão estritamente judiciária resultante do estatuto dos procuradores e da sua obrigação de total objetividade e imperiosa obediência à lei.

A alusão genérica ao MP, sempre que se fala da intervenção processual concreta de algum dos procuradores num processo, induz, pois, em erro os cidadãos.

Hoje, depois da reforma do EMP, os titulares dos processos – portanto o procurador A, B ou C – passaram a agir processualmente à margem intervenção hierárquica formal.

Eram tais intervenções – quando formalizadas por escrito – que permitiam, no entanto, à hierarquia do MP intervir, acompanhar e orientar, de acordo com a melhor interpretação da lei, a condução estratégica do processo, a oportunidade e razoabilidade de algumas diligências ou, inclusive, o momento do seu destino final.

Face à reforma do EMP, as possibilidades de intervenção hierárquica de natureza processual penal ficaram, porém, restringidas, como disse, às disposições constantes do Código de Processo.

Diz o atual artigo 97.º, n.º 4 e 5 do EMP:

«4 – A intervenção hierárquica em processos de natureza criminal é regulada pela lei processual penal.

5 – Salvaguardado o disposto no número anterior, as decisões finais proferidas pelos magistrados do Ministério Público em procedimentos de natureza não criminal podem ser objeto de reapreciação pelo imediato superior hierárquico.»

Diz, sobre tal intervenção hierárquica formal, o artigo 278.º do aludido Código:

«No prazo de 20 dias (…), o imediato superior hierárquico do magistrado do Ministério Público pode, por sua iniciativa ou a requerimento do assistente ou do denunciante com a faculdade de se constituir assistente, determinar que seja formulada acusação ou que as investigações prossigam, indicando, neste caso, as diligências a efetuar e o prazo para o seu cumprimento.»

 

A leitura conjugada das normas estatutárias com as citadas disposições do CPP (278.º) obsta, pois, claramente, à possibilidade de os superiores hierárquicos dos titulares de um inquérito penal nele intervirem ao longo da investigação.

Cada procurador titular do processo é, hoje, assim – como um juiz –, o único magistrado, total e completamente, responsável pela condução da investigação que lhe foi atribuída.

Falar-se da atuação e responsabilidade global do MP, pelo menos nos termos em que antes se falava, não tem já – repito – qualquer sentido.

A intervenção hierárquica processual permitida cinge-se, no essencial, à revisão das decisões de arquivamento de processos findos.

Isto, num momento em que a oportunidade da realização de muitas das diligências necessárias à descoberta da verdade pode, entretanto, ter-se perdido.

Tal opção legislativa, sem a reforma do CPP, propiciou – repita-se – que o único e verdadeiro responsável pela condução e destino do processo tivesse passado a ser, exclusivamente, aquele procurador que assumiu a titularidade de um inquérito.

 Por absurdo que pareça, de acordo com este regime, quem pode o mais – o superior hierárquico que, no final, pode mandar e reabrir um inquérito e ordenar novas diligências de prova – não pode o menos; intervir antes e tempestivamente no processo.

O MP, enquanto órgão de justiça pensado para, coerentemente, atuar tendo em vista uma orientação judiciária comum e propiciadora d eum tratamento igual dos cidadãos em casos iguais ou semelhantes desapareceu, portanto.

Que o diga a atual PGR que, através de uma diretiva interna, tentou atalhar este problema sem, no entanto, o ter conseguido, uma vez que, da medida que para esse efeito tomou, houve recurso para o STA ainda não decidido.

Encontra-se, por isso, na posição ingrata de lhe pedirem responsabilidades e de ter de responder pela ação de uma instituição atomizada e sobre a qual não tem reais poderes hierárquicos e de direção processual concreta.

Hoje, os procuradores agem à semelhança dos juízes de instrução; ou seja, cada um por si.

Objetivamente, no que respeita ao inquérito penal, não se pode, pois, falar mais em MP, a não ser na perspetiva das funções que, no processo, cada um dos procuradores exerce, segundo o seu critério próprio e exclusivo.

O MP transmutou-se: deixou de poder ser entendido como um corpo organizado de magistrados, para passar a ser, apenas, no processo, um sujeito processual singular.

Hoje, cada procurador é, por si só, o MP e o MP é, hoje-em-dia, apenas, a função processual que cada um deles exerce no processo.

O resto – o que nos termos do EMJ ainda compete à hierarquia – são, na sua maioria, funções de pura intendência.

Seria, pois, mais prudente, e mais honesto também, que os que pretendem – com toda a legitimidade – criticar as opções tomadas em investigações processuais concretas identificassem e nomeassem sempre o procurador titular da investigação criminal em causa.

É isso que fazem, de quando em vez, sempre que se referem à atuação de um juiz: raramente implicam nela a «judicatura».

Tal referência, generalizante, ao MP é, pois, tão imerecida quanto aquela que é feita, com a mesma injustiça, à chamada classe política: a «casta», no dizer de alguns populistas.

Só por demagogia e – noutros casos por irresponsável ignorância – é possível, assim, continuar a invocar a responsabilidade do MP, da PGR e da Justiça pelo exercício processual de procuradores concretos.

Tal MP, lamentavelmente, já não existe.

O que hoje há, pelo menos na jurisdição penal, é um conjunto de procuradores independentes, com idiossincrasias, caraterísticas, experiências e qualidades diferentes.

Mas, nem a estes podem ser assacadas todas as responsabilidades de atos processais que, no inquérito, contendem com as liberdades; muitos destes atos são, no inquérito, da competência exclusiva dos juízes de instrução e não da PGR, ou da hierarquia do MP, como, recentemente, ouvi uma muito excitada e baralhada comentadora afirmar na TV.

Sempre defendi a autonomia e independência do MP, enquanto corpo coeso, hierarquizado e organizado de magistrados, face aos diferentes poderes constitucionais e fáticos.

Hoje, é essa, de resto, a orientação comum do Conselho da Europa, do Tribunal Europeu dos Direitos do Humanos e do Tribunal de Justiça da União Europeia.

Um MP sem autonomia não pode, sequer, segundo tais instituições, ser considerado, na Europa, como uma autoridade judiciária autorizada a exercer, assim, muitas das mais relevantes competências que o nosso CPP lhe atribui.

Por não respeitarem e concretizarem estatutariamente o desenho independente dos seus MP, alguns países da UE têm sido questionados e arriscam sansões.  

Sempre defendi, também, para que a hierarquia se exerça de forma responsabilizante, a existência de fortes garantias estatutárias que protegessem cada um dos procuradores de eventuais pressões indevidas no exercício, sempre difícil, de fazer aplicar a lei pelos tribunais.

Dizer não, é, reconheço, difícil: até porque não é não.

 Tratando-se, porém de magistrados, a questão das pressões e das consequências do seu não acatamento, nem deveria colocar-se.

Entre nós, os procuradores não respondem, sequer, disciplinarmente, de forma direta, pelos seus atos e decisões processuais ante os seus diretos superiores hierárquicos.

Respondem, apenas, perante o Conselho Superior do MP – órgão de composição plural e pluralista de governo das carreiras e disciplina dos procuradores – que, por sua vez e em contrapartida, não tem, nem deve ter, poderes de direção processual.

Sustentei sempre, ainda, que as intervenções hierárquicas dirigidas aos processos penais – enquanto, também elas, atos de incidência processual efetiva – deveriam ser transparentes, revestir a forma escrita e constar dos autos para que as partes soubessem quem é quem no processo, e quem foi, de facto, responsável por uma dada orientação ou decisão concreta.

O regime de suspeições e impedimentos dos procuradores a isso obriga.

Propus, também, que a estrutura orgânica do MP deveria favorecer uma corresponsabilização entre os magistrados com funções hierárquicas e maior experiência profissional e de vida e os que, na base, são os titulares dos processos.

Os responsáveis hierárquicos não podem, nem devem, ser vistos  – ou verem-se a si mesmos – como magistrados de luxo, como, em tempos, clamava, certeiro, um conhecido e prestigiado inspetor do MP, quando os então Procuradores de Círculo prescindiam de intervir nos processos.

Abandonar magistrados menos experientes a si mesmos, e lavar, depois, as mãos sobre o que possa suceder, não corresponde ao propósito de uma magistratura organizada hierarquicamente e responsável estatutariamente. 

Não posso, por isso – e muito menos agora que a criminalidade é mais sofisticada, alterou de feição, e galgou de classe social, exercitando, mesmo, o seu poder em palcos onde antes raramente se fazia sentir – apoiar a fragmentação do MP.

O resultado a obter de processo penal não pode, também, hoje, ser configurado e justificar-se por si próprio; para poder salvaguardar o interesse da sociedade, tem, além disso, de, frequentemente, ser articulado com ações de natureza administrativa e civil.

Mais do que com um processo, tem o MP de lidar com um «caso», uma situação crítica que reveste múltiplas configurações e exige, simultaneamente, em muitas circunstâncias, respostas articuladas e uma intervenção processual em diferentes instâncias judiciais. 

 Só assim, o MP pode – como um todo coerente – agir de modo a que não lhe baste fazer punir os criminosos pelos tribunais, mas consiga, também, evitar, reduzir e recuperar os danos causados pela violação das leis e pelos crimes a elas associados.

Isso exige organização e liderança aos mais diversos níveis: exige, reconheçamos, poderes da hierarquia para orientar e coordenar as intervenções processuais que concretizam as funções atribuídas ao MP.

Se disso, alguma vez, tivesse tido dúvidas, a experiência de nove anos na Eurojust, resolveram-nas: sem uma coordenação ágil e forte, desenvolvida terminantemente por procuradores com legitimidade e experiência para tal, não haverá nunca sucesso na maneira como a Justiça lida com o crime atual.

Além de que, só uma magistratura coerente – como era o MP – é capaz, se quiser, de promover uma reflexão séria sobre os seus próprios erros e êxitos e transmitir e impor os ensinamentos daí retirados aos que, no futuro têm de lidar com casos idênticos.

Só assim é possível perspetivar novas e melhores leituras da lei, mais eficazes estratégias e mais atuais formas de intervenção processual.

Nada disso acontecendo, a responsabilidade estatutária do MP, enquanto instituição coesa ao serviço da República, morrerá solteira.

De nada servirá, então, pedir-lhe contas; esse MP já não existe.

Um, dois, três: Quantos MP existem e queremos que existam?


A reforma do Estatuto do MP só teria tido sentido se, simultaneamente, se revisse e alargasse, no Código de Processo Penal, o tipo de intervenções processuais que sua a hierarquia poderia e deveria exercer.


Hoje, desculpem, o meu texto é mais longo, mas sinto ser necessário clarificar alguns pontos «escaldantes» sobre o funcionamento da Justiça e o papel que nela, de facto, tem o Ministério Público (MP).

A propósito dos processos de que todos falam, a grande maioria dos opinion maker refere-se sempre à iniciativa e intervenção dos procuradores que os dirigem, ou nele intervêm, usando a fórmula abstrata e tradicional de: o Ministério Público (MP).

A utilização de tal fórmula teria tido algum sentido, antes, da última reforma do Estatuto do MP (EMP).

O novo EMP veio, com efeito, algo inopinadamente, restringir, grandemente, a possibilidade das intervenções processuais da hierarquia às que, se encontravam definidas já, no Código de Processo Penal (CPP) vigente.

Tal reforma do EMP, por ora, desacompanhada de uma renovada, mais alargada e detalhada definição das intervenções hierárquicas estabelecidas naquele outro diploma, acabou, assim, por limitar, drasticamente, a já de si reduzida margem de intervenção superior, que existia fundada, apenas, em normas estatutárias e regulamentares internas.

Numa única situação, passou, pois, a hierarquia a poder intervir na tramitação e destino final dos do inquérito: em caso de arquivamento determinado por um procurador titular do processo de grau inferior.

A reforma atual do EMP só faria, porém, todo o sentido se, simultaneamente, se tivesse revisto e alargado, no CCP, o tipo de intervenções processuais que a hierarquia do MP poderia e deveria exercer, de modo transparente e responsabilizante, no decurso da fase de inquérito, de cuja direção a lei incumbe o MP.

Tal reforma do EMP, desacompanhada, pois, do passo seguinte criou, não um novo MP, mas muitos, mesmo muitos MP: pelo menos tantos quantos os titulares dos inquéritos. 

Só por comodidade, se pode hoje, portanto, falar da intervenção processual do MP; como se ele ainda fosse um corpo hierarquicamente solidamente organizado de procuradores.

Daí, a sem razão de identificar o MP no seu todo com qualquer estratégia autónoma de afrontamento institucional.

O MP nunca foi pensado e constituído como um corpo de procuradores, tendo, como programa e estratégia definida superiormente, o confronto com os outros órgãos da República e seus representantes; a dita «classe política».

Pelo contrário, nele se reflete o concurso de uma legitimidade política por via do processo de nomeação do PGR pelo Presidente da República, com uma dimensão estritamente judiciária resultante do estatuto dos procuradores e da sua obrigação de total objetividade e imperiosa obediência à lei.

A alusão genérica ao MP, sempre que se fala da intervenção processual concreta de algum dos procuradores num processo, induz, pois, em erro os cidadãos.

Hoje, depois da reforma do EMP, os titulares dos processos – portanto o procurador A, B ou C – passaram a agir processualmente à margem intervenção hierárquica formal.

Eram tais intervenções – quando formalizadas por escrito – que permitiam, no entanto, à hierarquia do MP intervir, acompanhar e orientar, de acordo com a melhor interpretação da lei, a condução estratégica do processo, a oportunidade e razoabilidade de algumas diligências ou, inclusive, o momento do seu destino final.

Face à reforma do EMP, as possibilidades de intervenção hierárquica de natureza processual penal ficaram, porém, restringidas, como disse, às disposições constantes do Código de Processo.

Diz o atual artigo 97.º, n.º 4 e 5 do EMP:

«4 – A intervenção hierárquica em processos de natureza criminal é regulada pela lei processual penal.

5 – Salvaguardado o disposto no número anterior, as decisões finais proferidas pelos magistrados do Ministério Público em procedimentos de natureza não criminal podem ser objeto de reapreciação pelo imediato superior hierárquico.»

Diz, sobre tal intervenção hierárquica formal, o artigo 278.º do aludido Código:

«No prazo de 20 dias (…), o imediato superior hierárquico do magistrado do Ministério Público pode, por sua iniciativa ou a requerimento do assistente ou do denunciante com a faculdade de se constituir assistente, determinar que seja formulada acusação ou que as investigações prossigam, indicando, neste caso, as diligências a efetuar e o prazo para o seu cumprimento.»

 

A leitura conjugada das normas estatutárias com as citadas disposições do CPP (278.º) obsta, pois, claramente, à possibilidade de os superiores hierárquicos dos titulares de um inquérito penal nele intervirem ao longo da investigação.

Cada procurador titular do processo é, hoje, assim – como um juiz –, o único magistrado, total e completamente, responsável pela condução da investigação que lhe foi atribuída.

Falar-se da atuação e responsabilidade global do MP, pelo menos nos termos em que antes se falava, não tem já – repito – qualquer sentido.

A intervenção hierárquica processual permitida cinge-se, no essencial, à revisão das decisões de arquivamento de processos findos.

Isto, num momento em que a oportunidade da realização de muitas das diligências necessárias à descoberta da verdade pode, entretanto, ter-se perdido.

Tal opção legislativa, sem a reforma do CPP, propiciou – repita-se – que o único e verdadeiro responsável pela condução e destino do processo tivesse passado a ser, exclusivamente, aquele procurador que assumiu a titularidade de um inquérito.

 Por absurdo que pareça, de acordo com este regime, quem pode o mais – o superior hierárquico que, no final, pode mandar e reabrir um inquérito e ordenar novas diligências de prova – não pode o menos; intervir antes e tempestivamente no processo.

O MP, enquanto órgão de justiça pensado para, coerentemente, atuar tendo em vista uma orientação judiciária comum e propiciadora d eum tratamento igual dos cidadãos em casos iguais ou semelhantes desapareceu, portanto.

Que o diga a atual PGR que, através de uma diretiva interna, tentou atalhar este problema sem, no entanto, o ter conseguido, uma vez que, da medida que para esse efeito tomou, houve recurso para o STA ainda não decidido.

Encontra-se, por isso, na posição ingrata de lhe pedirem responsabilidades e de ter de responder pela ação de uma instituição atomizada e sobre a qual não tem reais poderes hierárquicos e de direção processual concreta.

Hoje, os procuradores agem à semelhança dos juízes de instrução; ou seja, cada um por si.

Objetivamente, no que respeita ao inquérito penal, não se pode, pois, falar mais em MP, a não ser na perspetiva das funções que, no processo, cada um dos procuradores exerce, segundo o seu critério próprio e exclusivo.

O MP transmutou-se: deixou de poder ser entendido como um corpo organizado de magistrados, para passar a ser, apenas, no processo, um sujeito processual singular.

Hoje, cada procurador é, por si só, o MP e o MP é, hoje-em-dia, apenas, a função processual que cada um deles exerce no processo.

O resto – o que nos termos do EMJ ainda compete à hierarquia – são, na sua maioria, funções de pura intendência.

Seria, pois, mais prudente, e mais honesto também, que os que pretendem – com toda a legitimidade – criticar as opções tomadas em investigações processuais concretas identificassem e nomeassem sempre o procurador titular da investigação criminal em causa.

É isso que fazem, de quando em vez, sempre que se referem à atuação de um juiz: raramente implicam nela a «judicatura».

Tal referência, generalizante, ao MP é, pois, tão imerecida quanto aquela que é feita, com a mesma injustiça, à chamada classe política: a «casta», no dizer de alguns populistas.

Só por demagogia e – noutros casos por irresponsável ignorância – é possível, assim, continuar a invocar a responsabilidade do MP, da PGR e da Justiça pelo exercício processual de procuradores concretos.

Tal MP, lamentavelmente, já não existe.

O que hoje há, pelo menos na jurisdição penal, é um conjunto de procuradores independentes, com idiossincrasias, caraterísticas, experiências e qualidades diferentes.

Mas, nem a estes podem ser assacadas todas as responsabilidades de atos processais que, no inquérito, contendem com as liberdades; muitos destes atos são, no inquérito, da competência exclusiva dos juízes de instrução e não da PGR, ou da hierarquia do MP, como, recentemente, ouvi uma muito excitada e baralhada comentadora afirmar na TV.

Sempre defendi a autonomia e independência do MP, enquanto corpo coeso, hierarquizado e organizado de magistrados, face aos diferentes poderes constitucionais e fáticos.

Hoje, é essa, de resto, a orientação comum do Conselho da Europa, do Tribunal Europeu dos Direitos do Humanos e do Tribunal de Justiça da União Europeia.

Um MP sem autonomia não pode, sequer, segundo tais instituições, ser considerado, na Europa, como uma autoridade judiciária autorizada a exercer, assim, muitas das mais relevantes competências que o nosso CPP lhe atribui.

Por não respeitarem e concretizarem estatutariamente o desenho independente dos seus MP, alguns países da UE têm sido questionados e arriscam sansões.  

Sempre defendi, também, para que a hierarquia se exerça de forma responsabilizante, a existência de fortes garantias estatutárias que protegessem cada um dos procuradores de eventuais pressões indevidas no exercício, sempre difícil, de fazer aplicar a lei pelos tribunais.

Dizer não, é, reconheço, difícil: até porque não é não.

 Tratando-se, porém de magistrados, a questão das pressões e das consequências do seu não acatamento, nem deveria colocar-se.

Entre nós, os procuradores não respondem, sequer, disciplinarmente, de forma direta, pelos seus atos e decisões processuais ante os seus diretos superiores hierárquicos.

Respondem, apenas, perante o Conselho Superior do MP – órgão de composição plural e pluralista de governo das carreiras e disciplina dos procuradores – que, por sua vez e em contrapartida, não tem, nem deve ter, poderes de direção processual.

Sustentei sempre, ainda, que as intervenções hierárquicas dirigidas aos processos penais – enquanto, também elas, atos de incidência processual efetiva – deveriam ser transparentes, revestir a forma escrita e constar dos autos para que as partes soubessem quem é quem no processo, e quem foi, de facto, responsável por uma dada orientação ou decisão concreta.

O regime de suspeições e impedimentos dos procuradores a isso obriga.

Propus, também, que a estrutura orgânica do MP deveria favorecer uma corresponsabilização entre os magistrados com funções hierárquicas e maior experiência profissional e de vida e os que, na base, são os titulares dos processos.

Os responsáveis hierárquicos não podem, nem devem, ser vistos  – ou verem-se a si mesmos – como magistrados de luxo, como, em tempos, clamava, certeiro, um conhecido e prestigiado inspetor do MP, quando os então Procuradores de Círculo prescindiam de intervir nos processos.

Abandonar magistrados menos experientes a si mesmos, e lavar, depois, as mãos sobre o que possa suceder, não corresponde ao propósito de uma magistratura organizada hierarquicamente e responsável estatutariamente. 

Não posso, por isso – e muito menos agora que a criminalidade é mais sofisticada, alterou de feição, e galgou de classe social, exercitando, mesmo, o seu poder em palcos onde antes raramente se fazia sentir – apoiar a fragmentação do MP.

O resultado a obter de processo penal não pode, também, hoje, ser configurado e justificar-se por si próprio; para poder salvaguardar o interesse da sociedade, tem, além disso, de, frequentemente, ser articulado com ações de natureza administrativa e civil.

Mais do que com um processo, tem o MP de lidar com um «caso», uma situação crítica que reveste múltiplas configurações e exige, simultaneamente, em muitas circunstâncias, respostas articuladas e uma intervenção processual em diferentes instâncias judiciais. 

 Só assim, o MP pode – como um todo coerente – agir de modo a que não lhe baste fazer punir os criminosos pelos tribunais, mas consiga, também, evitar, reduzir e recuperar os danos causados pela violação das leis e pelos crimes a elas associados.

Isso exige organização e liderança aos mais diversos níveis: exige, reconheçamos, poderes da hierarquia para orientar e coordenar as intervenções processuais que concretizam as funções atribuídas ao MP.

Se disso, alguma vez, tivesse tido dúvidas, a experiência de nove anos na Eurojust, resolveram-nas: sem uma coordenação ágil e forte, desenvolvida terminantemente por procuradores com legitimidade e experiência para tal, não haverá nunca sucesso na maneira como a Justiça lida com o crime atual.

Além de que, só uma magistratura coerente – como era o MP – é capaz, se quiser, de promover uma reflexão séria sobre os seus próprios erros e êxitos e transmitir e impor os ensinamentos daí retirados aos que, no futuro têm de lidar com casos idênticos.

Só assim é possível perspetivar novas e melhores leituras da lei, mais eficazes estratégias e mais atuais formas de intervenção processual.

Nada disso acontecendo, a responsabilidade estatutária do MP, enquanto instituição coesa ao serviço da República, morrerá solteira.

De nada servirá, então, pedir-lhe contas; esse MP já não existe.