Sem-abrigo em França. Dos vagabundos da Idade Média aos “sem residência fixa” atuais

Sem-abrigo em França. Dos vagabundos da Idade Média aos “sem residência fixa” atuais


Dos mendigos e vagabundos aos ‘sem domicílio fixo’, a pobreza nas ruas francesas já teve muitos nomes. Mas o problema persiste. Sem soluções na habitação, há hoje mais de 200 mil sem-abrigo no país.


“Ser sem-abrigo é a forma mais extrema de exclusão social e está a crescer na União Europeia. Temos de agir já.” O alerta foi feito em setembro deste ano por Nicholas Schmidt, Comissário Europeu para os Direitos Sociais e Emprego, no âmbito do mais recente relatório da Federação Europeia de Organizações Nacionais que trabalham com os sem-abrigo (FEANTSA, na sigla em inglês).

O relatório estima que quase um milhão de pessoas esteja a viver na rua, denunciando o agravamento das condições de vida e o “falhanço” das políticas de habitação e de imigração na UE. O número de sem-abrigo continua a aumentar na maioria dos Estados-membros, mas é em França que esta realidade mais atinge a população, onde há cerca de 209 mil sem abrigo (o equivalente a 0,309% da população francesa).

A situação agravou-se, sobretudo, após a pandemia de covid-19 que arrastou milhares de pessoas para a pobreza. Mas a crise na habitação, a imigração sem regras e o aumento do custo de vida nos últimos quatro anos tiveram um impacto particular na população migrante e nos jovens.

 No início deste ano, teve lugar mais uma edição da Noite da Solidariedade, uma iniciativa da Câmara Municipal de Paris a fim de contar os sem-abrigo na capital francesa. Os cerca de dois mil voluntários que percorreram os parques de estacionamento, estações de metro e jardins da capital francesa identificaram, em menos de três horas, 3633 sem-abrigo, dos quais 3015 nas ruas do centro da cidade e 618 na grande metrópole parisiense, muito mais do que no ano passado, quando foram identificadas 2598 pessoas nesta condição.

O problema em Paris ganha agora novos contornos enquanto a cidade se prepara para receber os Jogos Olímpicos, no verão de 2024. Tendas, cobertores e caixas de cartão, que servem de casa a quem não tem morada, estão a ser varridas das ruas da cidade.

À semelhança do que aconteceu por cá em julho deste ano, – quando a Câmara Municipal de Lisboa realizou uma “operação de limpeza” junto de tendas de pessoas em situação de sem-abrigo na Avenida Almirante Reis, que foi associada à visita do Papa Francisco à capital portuguesa para a Jornada Mundial de Juventude (JMJ) –, também as autoridades francesas estão a ser acusadas de quererem expulsar os sem-abrigo à força para os esconder da vista daqueles que vão participar ou assistir aos Jogos Olímpicos de 2024.

O mesmo aconteceu na China, quando os sem-abrigo também foram varridos das ruas antes dos Jogos Olímpicos de Pequim em 2008. Ou ainda no Rio de Janeiro, onde foram forçados a abandonar as áreas mais turísticas durante os Jogos Olímpicos de 2016.

De acordo com o Le Monde, o Governo francês tem vindo a solicitar desde março deste ano a oficiais de todo o país a criação de “acomodações regionais temporárias” para alojar os sem-abrigo de Paris durante o grande evento. Entre abril e setembro, mais de 1800 pessoas sem-abrigo, a maioria dos quais migrantes, foram deslocadas de Paris para outras regiões de França e estima-se que estejam a ser levadas até 150 pessoas por semana para outras cidades do país.

Segundo a AFP, na altura, o então ministro da habitação Olivier Klein expôs no Parlamento francês que esta era uma ação necessária, uma vez que muitos hotéis de Paris, normalmente usados como acomodação de emergência para estes sem-abrigo, pretendem libertar espaço para receber turistas e aficionados.

A capacidade dos hotéis disponíveis para acomodar sem-abrigo “vai cair em cerca de três a quatro mil camas devido a estes eventos”, disse, sublinhando ser necessário “preparar a situação”, criando espaços para quem precisa de estadia de emergência.

 

Os sem-abrigo ao longo da história, uma definição que evolui

O fenómeno dos sem-abrigo em França enquanto conceito é relativamente recente, mas tem as suas raízes nos mendigos e vagabundos da Idade Média e é quase sempre associado a comportamentos errantes e à delinquência.

Mas como surgiu este termo? “Sem-abrigo” é na verdade a tradução do termo inglês “homelessness”. “A partir dos anos 1980, na América do Norte, tornou-se um termo genérico correntemente utilizado”, explicou John David Hulchanski, professor da Universidade de Toronto, na revista da FEANTSA, acrescentando que nessa altura de maior precariedade torna-se necessário nos países do Ocidente “dar um nome ao aumento evidente do número e da diversidade de pessoas que se encontram sem casa”.

Em França, os velhos termos “vagabundo”, “clochard” (termo francês que designa aquele que vive numa cidade sem trabalho nem habitação), ou “mendigo”, ligados à marginalidade, já não são suficientes ou adequados para retratar a realidade. Mas também o conceito de “sem-abrigo” se tornou demasiado restrito. Inicialmente associado às vítimas de catástrofes naturais, encontra-se então cada vez mais em desuso, concorrendo agora com uma outra designação: os SDF ou “sem domicílio fixo”.

Esta denominação propaga-se sobretudo “desde há uma dezena de anos, essencialmente a partir dos trabalhos realizados pela FEANTSA”, refere o sociólogo Julien Damon, citado pelo Le Monde.

Esta federação europeia trabalha na evolução da exclusão ligada à habitação na Europa, bem como na tomada de decisões dos poderes públicos nesta matéria. “Como a FEANTSA utilizava muito esta palavra, a sua utilização progrediu entre os peritos e depois entre os decisores políticos. É assim que começa a entrar na linguagem comum”, acrescenta.

O historiador francês André Gueslin também traça a evolução ao longo dos séculos dos vários significados que a pobreza adota: dos mendigos e vagabundos da Idade Média, passando pela figura do “clochard” aos “sem-abrigo” do início do século XXI.

No livro D’ailleurs et de nulle part, publicado em 2013, Gueslin escreve que no final da Idade Média o aumento da pobreza, determinado em grande parte por crises económicas, epidemias e acidentes climáticos, tem o efeito de alterar as representações da pobreza. A figura do vagabundo é cada vez menos tolerada, além do sentimento de insegurança que transmite por questões de delinquência e crime. Essas mudanças de representação em relação a vagabundos e mendigos anunciam o tempo da repressão e da demonização.

Com o advento da sociedade industrial e as suas repetidas crises, o número de vagabundos em França acentua-se, com as populações mais pobres dos meios rurais a migrarem para as cidades. Prisão para os mais capazes, o hospício para os idosos e o hospital para os doentes: estes são os destinos comummente observados neste mundo de quem vagueia pelas cidades, retrata o autor.

Só no final do século XIX e início do século XX, com o estabelecimento gradual do Estado social se garante a proteção contra muitos dos riscos sociais associados à pobreza, invalidez, e ao desemprego, etc. Menos numerosos nesta época, os vagabundos também são mais aceites na sociedade.

O último período tratado por Gueslin, de 1970 até à atualidade, é marcado por um aumento da pobreza desencadeada pela crise de 1973 que, na sua perspetiva, anuncia para as próximas décadas o surgimento de uma nova categoria de pobres, os “sem-abrigo”. Aos efeitos das crise económicas que se seguem junta-se ainda a falência de uma política habitacional.