Crónica sobre habitação e memória


Apesar da breve existência, o Gabinete de Estudos de Urbanização (GEU, 1954-1959) legou interessante matéria para discussão acerca de um período de reconstrução urbana em escala global no qual a habitação fazia cidade.


A habitação tem sido um tema corrente na sociedade pós-industrial e a sua discussão, hoje, exige algum resgate à memória para revisitar experiências prévias. Para tal, não é preciso ir muito atrás e basta recuar algumas décadas para contextualizar o caráter contínuo do debate sobre a crise na habitação. Neste sentido, voltaremos ao tempo em que a promoção da habitação – tema que mantém elevada relevância – determinava a construção da cidade. No meio do atual debate que envolve o direito à habitação, revisitar os passos dados pode ser um importante elemento para orientar futuros caminhos.

Em Lisboa, pelo menos duas exposições acerca deste tema foram apresentadas ao público no corrente ano. No primeiro semestre, a retrospetiva dos 200 anos de política habitacional em Lisboa (“Políticas de Habitação em Lisboa, da Monarquia à Democracia”) evidenciou a longevidade do tema. Neste segundo semestre, a exposição “Habitar Lisboa” coloca em discussão os desafios contemporâneos de habitar (n)esta cidade. Circunscrito a essas duas esferas de reflexão – de um lado, o percurso histórico; e do outro, possíveis soluções para a crise atual –, proponho olhar para a atuação do Gabinete de Estudos de Urbanização (GEU, 1954-1959), que apesar da breve existência legou interessante matéria para discussão acerca de um período de reconstrução urbana em escala global no qual a habitação fazia cidade.

Tratava-se de tempos de urgência por extensas operações urbanas, urgência por reparar os danos – da guerra finda, para alguns; do fascismo corrente, para outros – e abrir novos caminhos em direção a um horizonte democrático que se faria através do direito de habitar em sentido lato, da cidade à unidade habitacional. Em Lisboa, desse período resultaram espaços como os bairros de Alvalade, Olivais Norte e Olivais Sul. Estes últimos pensados como partes do planeamento urbano coordenado pelo GEU, que pretendia consolidar a ocupação urbana a oriente vinculada à zona industrial, ancorada pelos aeroportos (Portela e Cabo Ruivo) e que havia sido ensaiada no Bairro da Encarnação.

No conceito de cidade investido pelo GEU eram fulcrais o uso da habitação coletiva (aumento de densidades e otimização de infraestruturas urbanas) e a criação de espaços verdes públicos como tecido conectivo. Os princípios basilares desse novo Plano Diretor alinhavam-se com o debate internacional que assumia a habitação como elemento estruturante do desenvolvimento urbano e regional, associado aos sistemas de circulação e produção económica. O tema da habitação implicava discutir arquitetura, cidade e paisagem que levou ao desenvolvimento de aproximadamente 169 estudos de urbanização locais. Até agora, foi possível aceder a uma pequena parcela que incluem propostas do Restelo aos Olivais, de Campo de Ourique a Picheleira, de Benfica a Telheiras. Uma Lisboa (invisível) que se vê pensada a partir das dinâmicas do habitar sob conceitos que hoje são recuperados sob o título genérico de cidades sustentáveis.

O argumento aqui não é resgatar a solução desenvolvida para outros tempos para que, reaquecidas, sejam aplicadas – o que seria no mínimo anacrónico e contraproducente. Mas antes recordar que o Plano Diretor de Urbanização de Lisboa (PDUL) de 1959 planeou uma cidade para 1.100.000 habitantes com uma densidade bruta de 125,68 habitantes por hectare (hab/ha) e relação de áreas verdes por habitante de 55 m2/hab. O PDM (Plano Diretor Municipal) de Lisboa de 2012) apontava 36 m2/hab, superior ao mínimo de 12 m2/hab estabelecido pela Organização Mundial de Saúde (OMS), mas inferior ao plano da década de 1950. Essa população estaria distribuída em 15 Malhas Urbanas organizadas a partir de suas características pré-existentes e tendência de crescimento, sendo estimado limites populacionais para garantir uma equilibrada distribuição da população pelo território urbano. Desse plano, apenas a Malha 13 (Olivais) projetada para uma população de até 40.000 habitantes, foi desenvolvida, sendo Olivais Norte a porção que manteve maior aproximação ao plano de conjunto proposto em 1955.

Com base no Censo de 2021, Lisboa apresentava metade da população prevista no PDUL de 1959 (544.851 habitantes, densidade bruta 54,55 hab/ha) e registava decréscimo populacional de -1.4% entre 2011 e 2021. Segundo a mesma fonte, a população da freguesia dos Olivais (32.179 habitantes) ainda não teria atingido o limite populacional previsto para 1970. A lógica matemática não é suficiente para explicar como numa mesma área territorial e metade da população prevista vive-se hoje uma crise de acesso à habitação. E, então, voltamos ao PDUL de 1959 no qual a garantia da promoção e do acesso à habitação estava atrelada a uma ação ativa do Estado que se havia tornado no grande proprietário das áreas a serem urbanizadas – um capítulo dessa história escrito pela ação contundente do Ministro Duarte Pacheco – e que através do novo Plano Diretor sistematizava as regras para ocupação do território.

Essa dinâmica que tinha como objetivo limitar a ação especulativa e a partir desse dado não é difícil imaginar as tensões e pressões orientadas ao arquivamento desse plano, que coincidiu com a mudança do Presidente da Câmara Municipal de Lisboa (assumida por França Borges no lugar do de Salvação Barreto) e o DL 42.454 de agosto de 1959. Um novo Decreto-Lei (DL 42.454 de agosto de 1959) causaria a extinção do GEU e a criação do GTH (Gabinete Técnico de Habitação) responsável por conduzir uma nova política habitacional, de grande escala, mas que não estava integrada a um plano de unidade para toda a cidade – que deu origem a Olivais Sul e Chelas.

Fazer essa discussão passa, forçosamente, por discutir os interesses económicos que movem o modelo de cidade que hoje se pratica e aceitar sua falência para que novo(s) modelo(s) sejam investigados. Ao fim e ao cabo, a história demonstra que levar o interesse coletivo ao centro do debate não é tarefa isenta de confrontos, mas o único caminho para um percurso que se propõe sustentável.

 

Estudante de doutoramento do Programa Doutoral em Arquitetura do Instituto Superior Técnico / Centro para a Inovação em Território Urbanismo e Arquitetura (CiTUA)

Crónica sobre habitação e memória


Apesar da breve existência, o Gabinete de Estudos de Urbanização (GEU, 1954-1959) legou interessante matéria para discussão acerca de um período de reconstrução urbana em escala global no qual a habitação fazia cidade.


A habitação tem sido um tema corrente na sociedade pós-industrial e a sua discussão, hoje, exige algum resgate à memória para revisitar experiências prévias. Para tal, não é preciso ir muito atrás e basta recuar algumas décadas para contextualizar o caráter contínuo do debate sobre a crise na habitação. Neste sentido, voltaremos ao tempo em que a promoção da habitação – tema que mantém elevada relevância – determinava a construção da cidade. No meio do atual debate que envolve o direito à habitação, revisitar os passos dados pode ser um importante elemento para orientar futuros caminhos.

Em Lisboa, pelo menos duas exposições acerca deste tema foram apresentadas ao público no corrente ano. No primeiro semestre, a retrospetiva dos 200 anos de política habitacional em Lisboa (“Políticas de Habitação em Lisboa, da Monarquia à Democracia”) evidenciou a longevidade do tema. Neste segundo semestre, a exposição “Habitar Lisboa” coloca em discussão os desafios contemporâneos de habitar (n)esta cidade. Circunscrito a essas duas esferas de reflexão – de um lado, o percurso histórico; e do outro, possíveis soluções para a crise atual –, proponho olhar para a atuação do Gabinete de Estudos de Urbanização (GEU, 1954-1959), que apesar da breve existência legou interessante matéria para discussão acerca de um período de reconstrução urbana em escala global no qual a habitação fazia cidade.

Tratava-se de tempos de urgência por extensas operações urbanas, urgência por reparar os danos – da guerra finda, para alguns; do fascismo corrente, para outros – e abrir novos caminhos em direção a um horizonte democrático que se faria através do direito de habitar em sentido lato, da cidade à unidade habitacional. Em Lisboa, desse período resultaram espaços como os bairros de Alvalade, Olivais Norte e Olivais Sul. Estes últimos pensados como partes do planeamento urbano coordenado pelo GEU, que pretendia consolidar a ocupação urbana a oriente vinculada à zona industrial, ancorada pelos aeroportos (Portela e Cabo Ruivo) e que havia sido ensaiada no Bairro da Encarnação.

No conceito de cidade investido pelo GEU eram fulcrais o uso da habitação coletiva (aumento de densidades e otimização de infraestruturas urbanas) e a criação de espaços verdes públicos como tecido conectivo. Os princípios basilares desse novo Plano Diretor alinhavam-se com o debate internacional que assumia a habitação como elemento estruturante do desenvolvimento urbano e regional, associado aos sistemas de circulação e produção económica. O tema da habitação implicava discutir arquitetura, cidade e paisagem que levou ao desenvolvimento de aproximadamente 169 estudos de urbanização locais. Até agora, foi possível aceder a uma pequena parcela que incluem propostas do Restelo aos Olivais, de Campo de Ourique a Picheleira, de Benfica a Telheiras. Uma Lisboa (invisível) que se vê pensada a partir das dinâmicas do habitar sob conceitos que hoje são recuperados sob o título genérico de cidades sustentáveis.

O argumento aqui não é resgatar a solução desenvolvida para outros tempos para que, reaquecidas, sejam aplicadas – o que seria no mínimo anacrónico e contraproducente. Mas antes recordar que o Plano Diretor de Urbanização de Lisboa (PDUL) de 1959 planeou uma cidade para 1.100.000 habitantes com uma densidade bruta de 125,68 habitantes por hectare (hab/ha) e relação de áreas verdes por habitante de 55 m2/hab. O PDM (Plano Diretor Municipal) de Lisboa de 2012) apontava 36 m2/hab, superior ao mínimo de 12 m2/hab estabelecido pela Organização Mundial de Saúde (OMS), mas inferior ao plano da década de 1950. Essa população estaria distribuída em 15 Malhas Urbanas organizadas a partir de suas características pré-existentes e tendência de crescimento, sendo estimado limites populacionais para garantir uma equilibrada distribuição da população pelo território urbano. Desse plano, apenas a Malha 13 (Olivais) projetada para uma população de até 40.000 habitantes, foi desenvolvida, sendo Olivais Norte a porção que manteve maior aproximação ao plano de conjunto proposto em 1955.

Com base no Censo de 2021, Lisboa apresentava metade da população prevista no PDUL de 1959 (544.851 habitantes, densidade bruta 54,55 hab/ha) e registava decréscimo populacional de -1.4% entre 2011 e 2021. Segundo a mesma fonte, a população da freguesia dos Olivais (32.179 habitantes) ainda não teria atingido o limite populacional previsto para 1970. A lógica matemática não é suficiente para explicar como numa mesma área territorial e metade da população prevista vive-se hoje uma crise de acesso à habitação. E, então, voltamos ao PDUL de 1959 no qual a garantia da promoção e do acesso à habitação estava atrelada a uma ação ativa do Estado que se havia tornado no grande proprietário das áreas a serem urbanizadas – um capítulo dessa história escrito pela ação contundente do Ministro Duarte Pacheco – e que através do novo Plano Diretor sistematizava as regras para ocupação do território.

Essa dinâmica que tinha como objetivo limitar a ação especulativa e a partir desse dado não é difícil imaginar as tensões e pressões orientadas ao arquivamento desse plano, que coincidiu com a mudança do Presidente da Câmara Municipal de Lisboa (assumida por França Borges no lugar do de Salvação Barreto) e o DL 42.454 de agosto de 1959. Um novo Decreto-Lei (DL 42.454 de agosto de 1959) causaria a extinção do GEU e a criação do GTH (Gabinete Técnico de Habitação) responsável por conduzir uma nova política habitacional, de grande escala, mas que não estava integrada a um plano de unidade para toda a cidade – que deu origem a Olivais Sul e Chelas.

Fazer essa discussão passa, forçosamente, por discutir os interesses económicos que movem o modelo de cidade que hoje se pratica e aceitar sua falência para que novo(s) modelo(s) sejam investigados. Ao fim e ao cabo, a história demonstra que levar o interesse coletivo ao centro do debate não é tarefa isenta de confrontos, mas o único caminho para um percurso que se propõe sustentável.

 

Estudante de doutoramento do Programa Doutoral em Arquitetura do Instituto Superior Técnico / Centro para a Inovação em Território Urbanismo e Arquitetura (CiTUA)