O país, que tem estabilidade política, uma maioria absoluta e recursos financeiros limitados, terá hoje um orçamento de Estado para 2024 aprovado na generalidade. Entre as realidades e as perceções, entre as boas notícias e as más sub-reptícias, a fermentação orçamental já fez o seu caminho essencial, com o enfoque a ser colocado no aumento do IUC para compensação da redução das portagens nas autoestradas do interior sem as ditas. Em tempos de coexistência de gordos encaixes de receitas do Estado e de incertezas nos quotidianos e nos horizontes, com gulodices nos impostos diretos e novas ameaças de dieta nos impostos indiretos, que discretamente rapam os ganhos obtidos, não se hesitou em voltar a fazer da opinião pública uma espécie de focus grupo das opções governativas, criando uma cortina de fumo com o IUC, para depois, de algum modo, recuar na especialidade. É um pouco como aquela estratégia comercial das promoções atrativas de bens e produtos disponibilizadas para conseguir novos clientes que deixam os existentes furiosos por proporcionarem melhores condições, que afinal são possíveis.
Esta reincidente fermentação das opções políticas na praça pública é reveladora de duas preocupantes dimensões do exercício, ao contrário do que afirma a estrela da constelação da comunicação do governo, agora comentador, a propósito do aumento do IUC. São demasiadas as vezes que se decidem sem o estudo e a ponderação adequada das opções, sem conhecimento da realidade concreta do país e das consequências das opções tomadas. São recorrentes os ensaios públicos da avaliação das propostas políticas destinadas a gerar a perceção popular de que poderia ter sido pior, quando será sempre mau e sinónimo de perda em relação ao quadro de referência anterior.
O problema da fermentação orçamental e de outras experiências de medição da perceção popular é que boa parte das pessoas estão mesmo a viver com dificuldades, ainda existem cicatrizes de exercícios similares anteriores e a atual governação vai a caminho dos 9 anos de poder. O tema do IUC como o do IMI são mesmo temas relevantes porque mexem com a possibilidade de ataque ao que foi construído ao longo da vida e que é mobilizado para a vivência do dia-a-dia e o aforro face às incertezas do futuro.
É por isso um exercício de fermentação desastroso, embora revelador do risco existente, que o secretário dos Assuntos Fiscais, Nuno Félix, de forma pueril e transparente, tenha anunciado em entrevista que existe “um desalinhamento do Valor Patrimonial Tributário dos imóveis face àquilo que é a realidade do mercado” pelo que o governo pretende atualizar “brevemente” este indicador, de forma a refletir a valorização do mercado. O encontrão no vespeiro da agitação social foi prontamente corrigido pelas finanças com um tradicional sacudir da água do capote para os proprietários e os municípios, sem esconder a incontornável existência de um pensamento estruturado para a possibilidade de reforço de uma fonte de receita do Estado. “Aquando da aprovação de novos zonamentos, as revisões não se refletem direta e imediatamente no IMI a pagar, sendo apenas aplicados nos casos em que se verifique uma nova avaliação do imóvel, designadamente, a pedido do proprietário ou por iniciativa dos municípios”. Em suma, o risco existe, o trabalho estará feito para que o aumento do IMI possa ser realidade e até servir de arma de arremesso contra os municípios quando reclamarem do Poder Central. Querem mais dinheiro? Podem atualizar os valores patrimoniais dos imóveis e aumentar o IMI. Isto é, paguem a fatura local do aumento que depois partilhamos a receita.
Fermentações e experiências à parte, a maioria fará forte a proposta orçamental para 2024, com as narrativas do enfardo para acautelar os riscos do futuro, das melhorias diretas sugadas pelas incidências indiretas, dos recuos em algumas propostas contestadas para gerar o “podia ser pior” e das condescendências simbólicas com restantes partidos para afirmar a humildade da maioria absoluta e são funcionamento da democracia. E é aqui que reside algum do interesse do debate orçamental que se segue. Saber se a maioria cede aos antigos parceiros de solução governativa naquilo que poderia fazer de modo próprio para responder às pessoas e ao país? Saber se volta a ir nos encantamentos pseudo-modernos do PAN depois da viabilização do governo de direita na Madeira ou se tenta resgatar eleitorados rurais e do Interior perdidos com os enleios anteriores? Saber se é conquistada alguma coerência e moderação num conjunto de opções políticas, ora de defesa da liberalização, ora de condicionamento do mercado, sem ganhos aparentes para as pessoas e para o país, porque lesivos da previsibilidade mínima na gestão da coisa pública. E depois há, em paralelo, um conjunto de contestações e disrupções na saúde, na educação, na justiça e nos serviços públicos que persistem num quadro de necessidade em que as cedências serão geradoras de novas efervescências setoriais perante a incredulidade dos cidadãos contribuintes.
Definitivamente, as fermentações vão prosseguir, de massa mãe em massa mãe até um dia em que o pão duro ditará a sua lei, implacável com a persistência do exercício.
NOTAS FINAIS
DESUMANIDADE DENTRO DE CASA. Vê-se tanta efervescência com outras latitudes e longitudes e condescende-se com o que não podia acontecer no burgo, em 2023, quase 50 anos depois de Abril. Grávida enviada para casa com bebé morto na barriga por falta de vaga no Hospital de Loures. Terá estado nesse estado entre terça e quinta.
PATOS BRAVOS. Sem compromisso com nada que seja valores e princípios gerais, em modo vigente de sobrevivência política do quadro de vale tudo em política, só os interesses particulares contam, pavoneiam-se entre “o que é que eu ganho” e “o que é melhor para o chefinho”. É esta a fornada político-partidária que temos para futuro, desalinhados com a memória e o património de valores.