As reações e atitudes dos atuais governantes e representantes diplomáticos de Israel, relativamente a uma das intervenções do Secretário-Geral da ONU sobre o conflito com o Hamas, revelam mais da sua natureza e prática políticas do que muitos dos discursos que fazem para tentar convencer o seu povo e a opinião pública mundial da razão de ser da sua desapiedada atuação sobre a população civil da Faixa de Gaza.
O tom sobranceiro que usaram para invetivar tal discurso, muito mais do que as já de si abusivas e inaceitáveis interpretações que dela oportunisticamente fizeram, evidencia bem o respeito (ou a falta dele) que, desde sempre, lhes mereceram e merecem as intervenções e decisões da ONU: nenhum!
Quem assim procede demonstra – além da soberba de quem sempre pouco cuidou dos que dominou, mas não lhe pertencem – o radicalismo político que usa para lidar com um problema humano sério, método que se resume a tudo fazer para que ele não tenha solução.
Num aspeto, parece que ambas as partes envolvidas no conflito partilham do mesmo discurso e dos mesmos propósitos.
O Hamas quer, sobretudo, destruir o Estado de Israel e expulsar os judeus da Palestina.
As atuais autoridades israelitas justificam a sua esmagadora ação militar em Gaza com o propósito idêntico: destruir o Hamas, mesmo que para isso seja necessário massacrar e expulsar de Gaza todos os outros palestinianos que lá residem.
Que, no meio de tais propósitos, morram e sofram, sobretudo, palestinianos e israelitas que nada têm a ver com os intentos cruéis dos responsáveis de uma e outra parte, parece-lhes indiferente.
Do ponto de vista jurídico, a única resposta civilizada aos atos de rara atrocidade levados a cabo por militantes do Hamas – uma organização, também ela, de inspiração religiosa e fundamentalista e que nada tem a ver com a autoridade palestiniana – só deve dirigir-se, pois, aos que ordenaram e concretizaram tais atos abomináveis.
Quer isto dizer que, em termos jurídicos, em qualquer Estado de Direito digno desse nome, o apuramento de responsabilidades e punição dos crimes cometidos é, tem de ser, apenas pessoal, pois assenta na culpa individual e não numa sempre injusta culpa coletiva.
Os israelitas, mais do que os cidadãos de qualquer outro país, deviam assumir claramente a recusa dessa dimensão coletiva e abstrata da culpa: só uma tal atitude tornará definitivamente indesculpável o que sucedeu aos judeus no Holocausto.
A responsabilização e punição coletiva de um povo, com ou sem Estado, como as que Israel impõe, neste momento, ao povo de Gaza, não são admissíveis, nos termos do Direito Internacional Humanitário vigente.
Não o são também, nos termos de uma moral comum e aceite por todos os que comungam de uma mesmo sentimento de piedade inspirado nos ensinamentos religiosos das três religiões monoteístas, ensinamentos que deram corpo aos mesmos valores e aos consequentes e posteriormente sobrevindos direitos humanos codificados e adotados pela ONU.
Não há, nem pode haver, culpa coletiva que mereça ser sancionada indiscriminadamente por causa dos atos criminosos praticados por um número concreto de pessoas que integrem uma organização específica.
Isto, mesmo que tal organização se reivindique, indevida e abusivamente, da representação e defesa exclusiva desse mesmo povo.
Este princípio de apuramento da culpa e responsabilização individual por atos criminosos tanto serve – devia servir – para os dirigentes do Hamas, como para os governantes de Israel.
O contrário – o que sucede neste momento – faria lembrar, inevitavelmente, o tipo de retaliação coletiva que durante a II Guerra Mundial os militares alemães e as SS usavam para vingar os atos de resistência à ocupação dos países que invadiam: juntavam um grupo de civis inocentes para fuzilar, como represália, pelos atos de sabotagem praticados pelos membros da resistência.
Defender no mesmo plano, em termos legais e humanitários, as populações que, nos dois lados, são alvo de tais crimes é, pois, legítimo e forçoso.
Mais, nos termos da Carta que instituiu a ONU, constitui um dever legal, político, moral e cívico para o seu secretário-geral.
A ONU e o seu secretário-geral não têm – não podem, nem devem – assim de optar pela defesa privilegiada dos direitos dos cidadãos de um povo em detrimento dos do outro.
Em termos estritamente jurídicos, o que importa é, como dissemos, identificar, responsabilizar e punir quem ordenou e cometeu crimes que tanto podem ser enquadrados como crimes de terrorismo, como crimes de guerra, dependendo isso de quem os cometeu e das circunstâncias em que o fez.
Com efeito – todos sabemos, mas convém repetir – nem o Hamas, como organização armada, nem Israel, como Estado reconhecido pela comunidade internacional, podem, nos termos da lei, ser, respetivamente, responsabilizados por crimes de terrorismo ou de guerra cometidos pelos seus responsáveis.
Questão diferente, mas não menos importante, é a de procurar entender e explicar, politicamente, como se iniciou e se mantém, há mais de setenta anos, um conflito duradouro que levou ao aparecimento de organizações qualificadas como terroristas, no campo dos que, num dado momento da História, perderam, no plano da guerra, a capacidade política própria para se organizarem num Estado viável e consistente.
A intervenção judicial para apurar responsabilidade criminais concretas dos que ordenaram e executaram crimes de terrorismo e de guerra pode vir a ser necessária para punir, nos termos do Direito Internacional, os autores de tais delitos.
Para, todavia, resolver, de vez, o conflito político e as causas e consequências que geraram, não se pode, nem deve, olvidar ou sequestrar a verdade da História e as responsabilidades políticas dos que nela, ao longo do tempo, e num e noutro sentido, intervieram ativa e decididamente.
O ataque desmedido dos responsáveis israelitas contra o secretário-geral da ONU, por ele ter invocado as circunstâncias históricas que originaram o Hamas e outras organizações do mesmo tipo, tem, assim, totalmente a ver com este último aspeto do atual conflito armado e com as respostas políticas e humanitárias que lhe devem ser dadas, mas não são.
Em rigor, tais respostas pouco respeitam ao enquadramento jurídico e judiciário dos atos e das responsabilidades penais pessoais dos autores de crimes de terrorismo e de guerra que nesse conflito se sucedem todos os dias.
Elas desenvolvem-se num outro patamar de soluções políticas para o conflito e no da intervenção internacional para as favorecer.
A não ser assim, já as potências que, de facto, governam o mundo teriam imposto, como se apressaram a fazer no caso da guerra da Ucrânia, a criação de mecanismos judiciais de investigação que, alegadamente, têm em vista recolher provas e preparar a atuação futura de tribunais penais especiais, para julgar os crimes cometidos por responsáveis – ainda quero crer, embora realidade o negue – de todas as partes envolvidas nesse outro conflito.
Do que se trata nas reações descontroladas dos responsáveis de Israel contra o secretário-geral da ONU é, antes, de – no plano político – procurar moldar a História de forma a, moralmente, justificar a inqualificável violência própria.
O que se procura é uma justificação política e moral para ações identificadas e consideradas ilegais e hediondas pelo Direito Internacional.
Todos os crimes têm história, mas alguns têm-na mais do que outros.
É este o caso.
Os crimes ora cometidos naqueles territórios estão carregados de História e só ela pode enquadrar – não justificar – a loucura furiosa com que, de um lado e do outro, eles acontecem.
As circunstâncias e explicações políticas e históricas deste conflito constituem, na realidade, matéria sensível, pois a legitimidade da existência atual do Estado de Israel funda-se, precisamente, na perseguição e extermínio que o nazismo conduziu contra o povo judeu.
São elas que servem para assegurar e validar, ou não, as narrativas que se constroem sobre o conflito atual e, sobretudo, para desculpabilizar, ante o Direito e a História, a face visível, mas medonha, dos que determinam e conduzem, hoje, os mais cruéis atos desta guerra.
Tais atos de uns e de outros – alegadamente de autodefesa- inserem-se melhor numa estratégia de liquidação total do outro: sendo esse outro um exército regular de um Estado, ou um bando de combatentes sem pátria, os cidadãos de um estado reconhecido, ou os que nem podem ainda ter o direito a uma verdadeira cidadania, pois não lhe é permitido, pelos primeiros, erguer um verdadeiro Estado.
A referência, aliás extremamente vaga, do secretário-geral da ONU à necessidade imperiosa de se ter de ter em conta essa dimensão da verdade histórica fez, só por si, cair a máscara respeitosa e civilizada dos que se sentem justificados para continuar, indefinidamente, a explorar o ódio e a guerra, tendo em vista impedir a criação de dois Estados: um para o povo judeu e outro para o povo palestiniano.
Foi essa alusão, quase impercetível, sobre os motivos políticos mais profundos da guerra atual, que expôs à opinião pública mundial o sentido verdadeiro e indesculpável da atual ação militar e dos métodos propostos para a conduzir por parte dos atuais responsáveis de Israel.
Recordemos, porém, que, mais ou menos, no território do que é hoje o Estado de Israel, a Cisjordânia e a faixa de Gaza existiu, séculos passados e durante muitos anos – bem mais dos que tem hoje Israel – um estado cristão, imposto à força pelos cruzados aos muçulmanos e judeus aí residentes e que, pela sua artificialidade, acabou por soçobrar.
Tal memória histórica e os pesadelos que ela ainda suscita a muitos, em vez de conduzirem, como devia ser, a uma solução de paz e justiça sustentável entre israelitas e palestinianos – cada um com o seu Estado – tem, na verdade, empolgado e mobilizado, pelo contrário, apenas os fanáticos das soluções extremas de um e outro lado.
Isto, pasme-se, depois de tantos anos de História e da evidência e clareza das lições que ela oferece.