De terroristas a heróis: A justiça de vencedores e vencidos


A resposta está na razão por que muitas praças e rotundas de cidades de distintos países e continentes ostentam, hoje, estátuas glorificando figuras antes consideradas e acusadas como terroristas por aqueles que elas combateram e derrotaram.


A responsabilização e condenação coletiva de todo um povo – de um grupo alargado de pessoas que, por qualquer razão (ou imposição), vivam num mesmo lugar ou, não vivendo, mantenham laços de qualquer tipo que lhes permitam assumir uma identificação e pertença comuns – por atos cometidos por alguns dos seus elementos, parecia estar hoje arredada já do nosso comum modo de pensar.

Com efeito, depois da Segunda Grande Guerra – até pelo horror que se abateu sobre o povo judeu – tal tipo de acossamento baseado numa indefinida culpa coletiva, fundada, pura e simplesmente, sem qualquer motivo racional, na existência execrada de uma categoria de pessoas, foi banida de qualquer pensamento e ordenamento legal civilizado.

A maneira – quase sempre inadvertida, quero crer – como, todavia, muitos jornalistas e comentadores mediáticos de assuntos políticos insistem em referir-se, ainda hoje, aos palestinianos como integrando, necessariamente, uma culpa coletiva pela prática de crimes de terrorismo concretizados por elementos de organizações terroristas que, abusivamente, invocam agir em seu nome, parece, pois, ter-nos feito recuar muitos anos nos marcos da civilização.

Os palestinianos, o povo palestiniano, passam assim – em virtude desta, no mínimo, leviana linguagem – a ser publica e genericamente apontados como terroristas, porque alguns deles integram forças paramilitares de organizações de inspiração assumidamente político-religiosa que agem à margem dos seus representantes internacionalmente reconhecidos.

Os cidadãos de Israel, porém, se alguns deles cometerem o mesmo tipo de atos – desde que dirigidos, enquadrados e ao serviço das forças armadas do Estado a que pertencem – poderão ser acusados de muitos crimes, mas não dos de pertencerem a organizações terroristas ou de praticarem atos terroristas.

No imaginário público, uns passarão, assim, a ser sempre estigmatizados como terroristas e os outros não.

A legislação internacional sobre terrorismo e organizações terroristas, na medida em que apenas consegue identificar a prática de crimes terroristas quando levados a cabo por organizações terroristas e por terroristas individuais que agem por determinação própria e sem vinculação a quaisquer instituições reconhecidamente estatais, acaba, deste modo, por diferenciar a resposta judicial aos atos que, muito dificilmente, os cidadãos comuns conseguem distinguir.

O paradoxo reside, pois, neste caso, no facto de um determinado ato objetivamente terrorista poder passar, em função do enquadramento institucional em que foi praticado, a ser legalmente pensado e punido, de modo distinto.

Por exemplo, os atos de guerra praticados por militares de um dado Estado internacionalmente reconhecido como tal – como é Israel -, ainda que, como dissemos, idênticos a crimes de terrorismo e perpetrados com igual crueldade, serão enquadrados legalmente como crimes de outra natureza: em geral, como crimes de guerra, podendo ainda caber na definição de genocídio e de crime contra a humanidade.

Acresce que a jurisdição competente para julgar tais atos e os seus autores muda também.

Os crimes de terrorismo, e quem os cometeu, serão julgados, em princípio, pelas jurisdições nacionais dos Estados em que eles foram cometidos.

Os crimes de guerra (e os de genocídio e contra a humanidade) praticados em nome de um Estado, por elementos das suas forças militares, poderão, em certas condições, ser julgados por tribunais com jurisdição internacional, como o Tribunal Penal Internacional, com todas as dificuldades e obstáculos que isso comporta.

A questão complica-se mais se tivermos de analisar em que consiste, para o Direito Internacional, o conceito jurídico de guerra.

Pode, ou não, um Estado declarar guerra, não a um outro Estado, mas a uma organização terrorista criada no seio de um povo que não tem Estado?

Uma ação militar conduzida pelas forças armadas de um Estado contra um grupo terrorista constituído, na sua maioria, por elementos originários de um «não-estado» pode, ou não, ser considerada, à luz do Direito Internacional, como um verdadeiro ato de guerra, ou terá de bastar-se com a menos bem definida categoria de ato perpetrado num conflito armado?

E, se não puder, como qualificar e punir os atos violentos e ilegais à luz do Direito Internacional, quando cometidos, indiscriminadamente e com o assumido sacrifício de um povo acantonado, mas sem verdadeiro território pátrio, como resposta à prática de atos terroristas executados por membros de uma organização terrorista de cariz religiosa e fundamentalista?

Ninguém põe em dúvida a natureza cruel e hedionda, e por isso seriamente condenável, dos atos cometidos por uma organização terrorista integrada, sobretudo, por palestinianos – caso do Hamas – contra cidadãos do Estado de Israel só por estes serem quem são.

Ninguém pode, igualmente com justiça, pôr em causa o grau de impiedade dos contra-ataques e retaliação – consentidamente indiscriminados – levados a cabo pelas forças armadas desse país contra uma área diminuta e cercada, de todos os modos e de todos os lados, onde reside amontoada e desprezada parte significativa da população palestiniana: a ONU e o seu secretário-geral, têm dado desses atos, e da sua natureza, público testemunho, condenando-os severamente.

Só que, neste caso, unicamente como crimes de guerra, de genocídio ou de crimes contra a humanidade, podem os mandantes e autores de tais atos ser perseguidos.

A diferença na abordagem jurídica de tais atos reside, pois, no facto de estes poderem ser atribuídos, num caso, a uma organização qualificada juridicamente como terrorista e, no outro, não.

Estas circunstâncias determinam, necessariamente, regimes de procedimento e punição diferentes, mas não atenuam a responsabilidade criminal e, sobretudo, moral de quem os ordenou e executou.

O Tratado de Roma, que institui o Tribunal Penal Internacional, e as mais antigas Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949, dão – nos artigos 3.ºs destas últimas – algumas, mas insuficientes, respostas a estas questões.

Tais documentos legais merecem, contudo, ser lidos com atenção, pois, apesar de tudo, identificam bem os atos considerados crimes de guerra e, por outro lado, as limitadas condições em que aquele Tribunal é competente para investigar e julgar tais delitos.

Esta resumida, mas algo complexa, abordagem – reconheça-se – mostra bem como o Direito pode, conforme os casos, ser utilizado para condenar e punir certos atos em função, sobretudo, da posição e qualidade institucional dos seus autores e dos motivos que os determinam, e não, estritamente, da identidade e gravidade dos factos e atos objetivamente praticados.

Num ponto, ambos os regimes penais – o dos crimes de terrorismo e o dos crimes de guerra – coincidem: a responsabilização penal incide sobre pessoas concretas que ordenam ou executam os crimes e não sobre entidades abstratas, como povos e Estados.

A verdadeira diferença na apreciação judicial de tais atos e na qualificação pública dos seus autores reside, contudo, não na qualificação penal e no procedimento criminal contra quem os cometeu, mas, mais evidentemente, na situação política de facto que se segue à sua prática.

Tudo depende, enfim, de saber quem ganha ou perde, no plano político e militar, o conflito armado em que ambas as partes se envolveram.

Será esse resultado que ditará, em rigor, a solução jurídica dos atos criminais cometidos por uns e outros.

É essa, de resto, a razão por que muitas praças e rotundas de muitas cidades de países dos vários continentes ostentam, hoje, estátuas glorificando figuras anteriormente consideradas e acusadas como terroristas por aqueles que elas combateram e derrotaram.

A explicação mais simples para a consagração e as homenagens prestadas a esses «ex-terroristas» reside, tão só, no facto de eles terem vencido, militar e politicamente, os seus adversários.

Recordemos, a propósito, que, também, o Prémio Nobel da Paz foi atribuído a um israelita e a um palestiniano, ambos, anteriormente, apodados de terroristas: refiro-me a Menachem Begin e a Yasser Arafat.

É por estes motivos – e não só – que haverá sempre que evitar generalizações na responsabilização e difusão de epítetos, designadamente em relação aos povos que, de uma maneira ou de outra, se veem, queiram ou não, envolvidos em conflitos armados.

Assim é, trate-se de guerra entre Estados, trate-se de conflitos internos respeitantes a um único Estado, trate-se, ainda, de conflitos entre um Estado e uma organização armada que, a partir do seu interior ou do exterior, o ataca.

À luz do Direito Internacional, a responsabilidade criminal é, em todos estes casos – recordemos – sempre de quem, pessoalmente, ordena ou executa os atos criminosos contra cidadãos indiferenciados, sejam tais atos qualificados juridicamente como terroristas, como crimes de guerra, de genocídio ou contra a humanidade. 

 

 

 

De terroristas a heróis: A justiça de vencedores e vencidos


A resposta está na razão por que muitas praças e rotundas de cidades de distintos países e continentes ostentam, hoje, estátuas glorificando figuras antes consideradas e acusadas como terroristas por aqueles que elas combateram e derrotaram.


A responsabilização e condenação coletiva de todo um povo – de um grupo alargado de pessoas que, por qualquer razão (ou imposição), vivam num mesmo lugar ou, não vivendo, mantenham laços de qualquer tipo que lhes permitam assumir uma identificação e pertença comuns – por atos cometidos por alguns dos seus elementos, parecia estar hoje arredada já do nosso comum modo de pensar.

Com efeito, depois da Segunda Grande Guerra – até pelo horror que se abateu sobre o povo judeu – tal tipo de acossamento baseado numa indefinida culpa coletiva, fundada, pura e simplesmente, sem qualquer motivo racional, na existência execrada de uma categoria de pessoas, foi banida de qualquer pensamento e ordenamento legal civilizado.

A maneira – quase sempre inadvertida, quero crer – como, todavia, muitos jornalistas e comentadores mediáticos de assuntos políticos insistem em referir-se, ainda hoje, aos palestinianos como integrando, necessariamente, uma culpa coletiva pela prática de crimes de terrorismo concretizados por elementos de organizações terroristas que, abusivamente, invocam agir em seu nome, parece, pois, ter-nos feito recuar muitos anos nos marcos da civilização.

Os palestinianos, o povo palestiniano, passam assim – em virtude desta, no mínimo, leviana linguagem – a ser publica e genericamente apontados como terroristas, porque alguns deles integram forças paramilitares de organizações de inspiração assumidamente político-religiosa que agem à margem dos seus representantes internacionalmente reconhecidos.

Os cidadãos de Israel, porém, se alguns deles cometerem o mesmo tipo de atos – desde que dirigidos, enquadrados e ao serviço das forças armadas do Estado a que pertencem – poderão ser acusados de muitos crimes, mas não dos de pertencerem a organizações terroristas ou de praticarem atos terroristas.

No imaginário público, uns passarão, assim, a ser sempre estigmatizados como terroristas e os outros não.

A legislação internacional sobre terrorismo e organizações terroristas, na medida em que apenas consegue identificar a prática de crimes terroristas quando levados a cabo por organizações terroristas e por terroristas individuais que agem por determinação própria e sem vinculação a quaisquer instituições reconhecidamente estatais, acaba, deste modo, por diferenciar a resposta judicial aos atos que, muito dificilmente, os cidadãos comuns conseguem distinguir.

O paradoxo reside, pois, neste caso, no facto de um determinado ato objetivamente terrorista poder passar, em função do enquadramento institucional em que foi praticado, a ser legalmente pensado e punido, de modo distinto.

Por exemplo, os atos de guerra praticados por militares de um dado Estado internacionalmente reconhecido como tal – como é Israel -, ainda que, como dissemos, idênticos a crimes de terrorismo e perpetrados com igual crueldade, serão enquadrados legalmente como crimes de outra natureza: em geral, como crimes de guerra, podendo ainda caber na definição de genocídio e de crime contra a humanidade.

Acresce que a jurisdição competente para julgar tais atos e os seus autores muda também.

Os crimes de terrorismo, e quem os cometeu, serão julgados, em princípio, pelas jurisdições nacionais dos Estados em que eles foram cometidos.

Os crimes de guerra (e os de genocídio e contra a humanidade) praticados em nome de um Estado, por elementos das suas forças militares, poderão, em certas condições, ser julgados por tribunais com jurisdição internacional, como o Tribunal Penal Internacional, com todas as dificuldades e obstáculos que isso comporta.

A questão complica-se mais se tivermos de analisar em que consiste, para o Direito Internacional, o conceito jurídico de guerra.

Pode, ou não, um Estado declarar guerra, não a um outro Estado, mas a uma organização terrorista criada no seio de um povo que não tem Estado?

Uma ação militar conduzida pelas forças armadas de um Estado contra um grupo terrorista constituído, na sua maioria, por elementos originários de um «não-estado» pode, ou não, ser considerada, à luz do Direito Internacional, como um verdadeiro ato de guerra, ou terá de bastar-se com a menos bem definida categoria de ato perpetrado num conflito armado?

E, se não puder, como qualificar e punir os atos violentos e ilegais à luz do Direito Internacional, quando cometidos, indiscriminadamente e com o assumido sacrifício de um povo acantonado, mas sem verdadeiro território pátrio, como resposta à prática de atos terroristas executados por membros de uma organização terrorista de cariz religiosa e fundamentalista?

Ninguém põe em dúvida a natureza cruel e hedionda, e por isso seriamente condenável, dos atos cometidos por uma organização terrorista integrada, sobretudo, por palestinianos – caso do Hamas – contra cidadãos do Estado de Israel só por estes serem quem são.

Ninguém pode, igualmente com justiça, pôr em causa o grau de impiedade dos contra-ataques e retaliação – consentidamente indiscriminados – levados a cabo pelas forças armadas desse país contra uma área diminuta e cercada, de todos os modos e de todos os lados, onde reside amontoada e desprezada parte significativa da população palestiniana: a ONU e o seu secretário-geral, têm dado desses atos, e da sua natureza, público testemunho, condenando-os severamente.

Só que, neste caso, unicamente como crimes de guerra, de genocídio ou de crimes contra a humanidade, podem os mandantes e autores de tais atos ser perseguidos.

A diferença na abordagem jurídica de tais atos reside, pois, no facto de estes poderem ser atribuídos, num caso, a uma organização qualificada juridicamente como terrorista e, no outro, não.

Estas circunstâncias determinam, necessariamente, regimes de procedimento e punição diferentes, mas não atenuam a responsabilidade criminal e, sobretudo, moral de quem os ordenou e executou.

O Tratado de Roma, que institui o Tribunal Penal Internacional, e as mais antigas Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949, dão – nos artigos 3.ºs destas últimas – algumas, mas insuficientes, respostas a estas questões.

Tais documentos legais merecem, contudo, ser lidos com atenção, pois, apesar de tudo, identificam bem os atos considerados crimes de guerra e, por outro lado, as limitadas condições em que aquele Tribunal é competente para investigar e julgar tais delitos.

Esta resumida, mas algo complexa, abordagem – reconheça-se – mostra bem como o Direito pode, conforme os casos, ser utilizado para condenar e punir certos atos em função, sobretudo, da posição e qualidade institucional dos seus autores e dos motivos que os determinam, e não, estritamente, da identidade e gravidade dos factos e atos objetivamente praticados.

Num ponto, ambos os regimes penais – o dos crimes de terrorismo e o dos crimes de guerra – coincidem: a responsabilização penal incide sobre pessoas concretas que ordenam ou executam os crimes e não sobre entidades abstratas, como povos e Estados.

A verdadeira diferença na apreciação judicial de tais atos e na qualificação pública dos seus autores reside, contudo, não na qualificação penal e no procedimento criminal contra quem os cometeu, mas, mais evidentemente, na situação política de facto que se segue à sua prática.

Tudo depende, enfim, de saber quem ganha ou perde, no plano político e militar, o conflito armado em que ambas as partes se envolveram.

Será esse resultado que ditará, em rigor, a solução jurídica dos atos criminais cometidos por uns e outros.

É essa, de resto, a razão por que muitas praças e rotundas de muitas cidades de países dos vários continentes ostentam, hoje, estátuas glorificando figuras anteriormente consideradas e acusadas como terroristas por aqueles que elas combateram e derrotaram.

A explicação mais simples para a consagração e as homenagens prestadas a esses «ex-terroristas» reside, tão só, no facto de eles terem vencido, militar e politicamente, os seus adversários.

Recordemos, a propósito, que, também, o Prémio Nobel da Paz foi atribuído a um israelita e a um palestiniano, ambos, anteriormente, apodados de terroristas: refiro-me a Menachem Begin e a Yasser Arafat.

É por estes motivos – e não só – que haverá sempre que evitar generalizações na responsabilização e difusão de epítetos, designadamente em relação aos povos que, de uma maneira ou de outra, se veem, queiram ou não, envolvidos em conflitos armados.

Assim é, trate-se de guerra entre Estados, trate-se de conflitos internos respeitantes a um único Estado, trate-se, ainda, de conflitos entre um Estado e uma organização armada que, a partir do seu interior ou do exterior, o ataca.

À luz do Direito Internacional, a responsabilidade criminal é, em todos estes casos – recordemos – sempre de quem, pessoalmente, ordena ou executa os atos criminosos contra cidadãos indiferenciados, sejam tais atos qualificados juridicamente como terroristas, como crimes de guerra, de genocídio ou contra a humanidade.